Cartas de uma trincheira do espírito

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Silvano Landi é um escritor à beira dos 50 anos, quase uma celebridade. Um dia, um casal o encontra sentado na areia de uma praia deserta sem falar coisa com coisa, naquilo que o atendimento médico de emergência diagnostica como um súbito ataque de esquizofrenia. Sem distúrbios anteriores do tipo, sem histórico familiar da doença, sem demonstrações públicas de qualquer tipo de desequilíbrio, ele fica três meses internado sob a tutela de uma clínica psiquiátrica. Nesse tempo, passa da prosa ao desenho, obsessivamente, e tudo que esboça são duas figuras esquemáticas, que repete em traços diversos: uma árvore e um posto de gasolina.

O álbum em quadrinhos umahistória, do cartunista italiano Gipi (codinome de Gian-Affonso Pacinotti), é uma admirável investigação de como se conectam os fios de uma história, sejam esses fios os da realidade, os da psique, os da invenção ou os cordões dos leitores e observadores externos. O mais impressionante é que essa investigação se dá a partir de dentro, do impacto da história na alma do narrador, turvada pelos remédios psiquiátricos. A exemplo de Maus, de Art Spiegelman, umahistória rompeu o dique entre a literatura e os quadrinhos na Itália, tornando-se a primeira HQ a ser indicada ao Prêmio Strega, o mais importante da literatura italiana (que premiou autores como Umberto Eco e Primo Levi), em seu lançamento, em 2013.

A visionária Veneta Editora lança agora no Brasil uma caprichada edição dessa obra magistral de Gipi, com a exuberante arte que passa do croqui às aquarelas em um ritmo orgânico, envolvente, único. Em 2018, a editora brasileira já tinha lançado dele o álbum A Terra dos Filhos, que virou um filme de Claudio Cupellini.

Parafraseando aquela famosa digressão do Efeito Borboleta da Teoria do Caos (“uma borboleta bate as asas na Tailândia e um furacão devasta a costa do Caribe”), é possível dizer que a história de Silvano Landi segue o mesmo princípio: ao folhear uma série de cartas do seu bisavô, que lutou na Primeira Guerra Mundial, ele desata uma série infinita de debates éticos e sociais que tem ressonância profunda no presente. Uma frase é escrita num buraco, e uma nova Lua nasce em algum planeta vermelho.

Passado, presente e de certa forma o futuro estão intimamente interligados. O escritor e sua filha, o bisavô e as visões, os psiquiatras e o editor. Uma baronesa entediada (e sexy) desafia um inventor do passado a criar algo que abrevie as guerras, já que essas são inevitáveis. O onanista inventor desenha a metralhadora, uma nova máquina de matar.

Ao sair vivo de uma trincheira na qual dividiram irmanamente o cigarro, a oração, as botas e o medo, o bisavô de Silvano, Mauro, leva consigo a bênção e a maldição de ter conseguido sobreviver ao massacre de toda sua divisão. É como se Gipi conseguisse, como um autor clássico, nos colocar de frente ao grande dilema da existência humana, mas sem jamais se aventurar a julgar personagens.

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