Três dias antes do ano de 2021 acabar, meu primo Edson caiu da escada em sua casa em Curitiba e bateu a cabeça em algum lugar duro.

Contaram que, após cair da escada e bater a cabeça, ele ainda conseguiu se levantar e foi se deitar. No dia seguinte, uma pessoa que foi fazer o café disse que ele tava na cama com o olhar parado, mas ainda respirava.

Levaram para o hospital, mas tinha tido morte cerebral. Ficou em coma até o penúltimo dia do ano, então morreu.

Há muitos anos, na adolescência, o primo Edson costumava ser meu melhor amigo.

Esperei um pouco, não queria começar o ano com notícia que pudesse transmitir um sentimento angustiante de tragicidade, mas resolvi que o primo apreciaria que eu escrevesse algo sobre ele. Não é que um texto vá lastrear alguma coisa para além da vida vivida, mas quem sabe a escrita não tenha o condão de liberar algo que também não pode ser enterrado?

Vou falar só do que me lembro.

Edson era filho do Tio Zé, um grandioso personagem do qual trato mais detidamente no livro O último pau de arara (Grafatório Edições, 2020)

Nascemos ao mesmo tempo e crescemos juntos, filhos diferentes de dois irmãos migrantes diferentes dos interiores da Paraíba. O pai dele moderno e empreendedor, meu pai rústico e avesso aos jogos do êxito.

Eu admirava o senso de humor anárquico do Edson, assim como sua despreocupação com o desenrolar das coisas muito sérias. Enquanto o mundo desabava aqui, ele já estava lá do outro lado, descortinando outro cenário, outras possibilidades.

Eu mais cariri, magro e bobo, Edson mais branco, safo e cadeirudo, sempre teve uns quadris largos. Era um serial joker, contava piadas em cascata, ria de tudo e debochava de todos.

Como admirássemos o seriado de Tarzã da TV, eu o apelidei de Gordo Scott, em homenagem a Gordon Scott, e ele devolveu com João Eli, tributo a Ron Eli (o Tarzã mais magrão e avesso à pancadaria). Essa referência é muito velha, espero que não se incomodem de boiarem nela.

Com o passar dos anos, a família de Edson mudou de cidade algumas vezes. Fui visitá-los em Iporã e Umuarama, que foi o paradeiro mais demorado. Em Iporã, nos envolvemos em uma briga feia e generalizada em um campinho de futebol, ele era um encrenqueiro nato e eu me vi na obrigação de entrar no rolo, por suposto dever de família. Mas eu acabei apanhando mais.

Quando o pai dele morreu, ele me ligou de um orelhão da rodoviária de Curitiba, disse que queria morar ali comigo. Mas já tinha vindo de mala e cuia. Eu o encontrei deitado em cima da mochila na praça em frente à rodoviária. Veio ele, depois Jack veio, Santana veio, minha quitinete acabou virando um verdadeiro formigueiro de exilados do Norte do Paraná, todo mundo ouvindo Zé Ramalho o dia todo.

Em Curitiba, quando havia grana para um PF na Rua XV, com bife e ovo, era uma farra. De madrugada, a gente quebrava os ossos do frio com quentão de vinho tinto com canela e surrupiava gibis do Leopércio para ler escondido.

Depois, mudamos para um lugar maior, perto do Corpo de Bombeiros. Lembro que Edson e Jack queriam a todo custo dar uma surra no Armandinho irmão do Itamar, que àquela altura viera morar conosco e consideravam um folgado. Eu os proibia de bater em alguém dentro de casa, era o máximo que minha autoridade podia alcançar.

Foi então que Edson conheceu uma garota lá para os lados de Santa Felicidade e passou no vestibular em Arquitetura, eu passei em Jornalismo na UEL de Londrina e nos separamos em Curitiba. Voltei depois para o casamento dele, num buffet gigantesco, e ele me pareceu um pouco como o Primo Basílio de Eça naquela família curitibana repentina, mas eu logo me dei conta que era minha alma demasiado crítica que o rotulava.

Só fomos nos ver de novo muitos anos depois, ele tava morando em Santa Felicidade, separado e com um filho. Trabalhava no escritório de arquitetura do Sergio Todeschini, se não me engano. Sua mãe, Ruth, também tinha ido viver ali perto, com os irmãos de Edson, na esperança de que o filho mais velho ajudasse na lida com a família. Depois, ela mudou lá para o lado de Pinhais.

Edson foi se tornando mais e mais parecido com o pai dele, o tio Zé. Em alguns momentos, lembrava o Kingpin, o personagem da DC Comics, com uma cabeça reluzente de míssil e os olhos apertados de ironia compulsória. Mais arredio com o tempo, impaciente com eventuais grilos-falantes, foi morar em um chalé em Araucária, de onde saía para ser efusivamente cumprimentado por todos os donos de bares das imediações, lembrou outro primo, o Gilberto.

Ele me ligou uma vez durante uma visita que fez à casa do meu pai, ria e chorava ao telefone com a mesma facilidade quando bebia de forma alentada. E dizia coisas que às vezes faziam sentido, mas na maioria das vezes não. Edson amava meu pai tanto quanto nós, os próprios filhos.

Outro dia ele se queixou ao meu irmão que eu tinha ficado metido e o estava evitando, mas juro que não o evitei, tínhamos os zaps um do outro. Apenas não o procurava porque não sabia muito bem do que iríamos conversar, aquelas conversas de infância e adolescência tinham se tornado repetitivas e fantasiosas e eu já tinha vivido outras infâncias e adolescências depois daquela. Mas hoje, revendo tudo para deixar aqui umas palavras sobre o primo Edson, vejo que foi de fato uma grandiosa diversão.

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