Após dois anos pelejando com a Agência Nacional de Cinema (Ancine) para colocar nas salas de exibição o filme Marighella, o diretor, ator e produtor Wagner Moura enfrenta agora uma nova via crúcis contra a perseguição política e a censura prévia do governo de Jair Bolsonaro. Em 18 de fevereiro de 2021, a produtora de Moura, Maria Dafe Produções Artísticas, do Rio de Janeiro, inscreveu na Ancine o projeto Marilena Ansaldi – A precursora da Dança Teatro no Brasil, procurando obter o número Salic e pleitear financiamento no mercado. Até hoje, não obteve qualquer sinal da Ancine – seja para solicitar informações, pedir enquadramento ou fazer novas exigências técnicas à produtora.
O comportamento da Ancine é claramente de má vontade e de tratamento de exceção. Conceder a aprovação e o número do Salic não significa apoio financeiro automático, é apenas uma formalidade técnica para habilitar o projeto a pleitear recursos, seja ao Estado brasileiro ou à iniciativa privada. O tema do projeto é de relevância incontestável – a bailarina, coreógrafa, produtora, autora e atriz paulistana Marilena Ansaldi (1934-2021) foi a precursora da dança-teatro no Brasil e a primeira primeira solista do Corpo de Baile do Teatro Municipal de São Paulo nos anos 1950 e 1960, quando foi para o Balé Bolshoi na Europa.
Inquirida pela produtora Maria Dafe Produções Artísticas sobre o atraso na apreciação, a Ancine informou apenas que o projeto aguarda deliberação da Diretoria Colegiada da Ancine e que seu status deverá ser informado no portal da agência. A indefinição, evidentemente, traz problemas para a produtora, já que se trata de um projeto autoral, centrado numa personagem do mundo da dança, com evidente apelo de interesse para as políticas públicas.
As estratégias de perseguição política do governo de extrema-direita bolsonarista, adotadas em todo o espectro da cultura (mesmo numa agência reguladora, cujo papel seria justamente resistir ao aparelhamento), têm fundamentos escorados na burocracia de contas, na criminalização ideológica e de costumes, nas operações-tartaruga (morosidade deliberada) e no privilégio aos apaniguados.
Um exemplo: no final de dezembro, a Ancine ameaçou em uma portaria a produtora Porta dos Fundos, do célebre grupo humorístico que é também “persona non grata” do bolsonarismo, de inclusão no cadastro de inadimplentes do Sistema de Apoio às Leis de Incentivo (Salic). A Ancine quer a devolução dos recursos utilizados para a produção do primeiro longa-metragem do grupo, Contrato Vitalício, produzido em 2015 – há 7 anos. O revisionismo de ocasião chega a fustigar contas de até 20 anos atrás, um atentado contra a prescrição, algo que já foi refutado pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Para manter Marighella na geladeira, a Ancine recorreu a artifícios de todo tipo. Primeiro, apontou o dedo para outro filme da mesma produtora, indeferindo um pedido de prorrogação de prazo, o que consequentemente inabilitou a atuação da empresa. A obra não tinha sido concluída no prazo inicialmente fixado, em junho de 2019, mas a Ancine nunca tinha analisado o pedido de prorrogação da produtora – a vacância de diretores na agência, situação causada pelo próprio governo, é que causara a demora.
Salic, o protocolo pleiteado pela produtora de Wagner Moura, significa Sistema de Apoio às Leis de Incentivo à Cultura, é o cadastro que unifica o sistema, permitindo o envio e o acompanhamento de propostas culturais ativas em todo o aparelho do Estado. A ação da atual diretoria da Ancine, em sincronia com os interesses antirrepublicanos do bolsonarismo, é considerada uma marca sombria desse período e deverá ser um dos grandes desafios a serem encarados pelo próximo governo brasileiro após a redemocratização.