O livro Entre Integralistas e Nazistas, do historiador Sidney Aguilar Filho, conta uma história terrível iniciada há 90 anos, que perturba não apenas pelo próprio conteúdo, mas também pelos ecos ensurdecedores que dela reverberam até dias de quase 2022. Trata de uma fazenda no sertão paulista que, nos anos 1930 e 1940, adotava simbologia nazista e utilizava trabalho escravo de meninos retirados de um orfanato carioca. Estarrece perceber que em 1933 a escravização de seres humanos persistia de modo camuflado, 45 anos depois da dita abolição, mas pior ainda é constatar que não se trata apenas de um passado violento, mas sim de uma história continuada e até hoje não erradicada de servidão, que atravessa o Brasil desde 1500 até 2022.
A descoberta do caso começou em 1998, quando uma aluna do professor Aguilar observou, em aula, que havia tijolos gravados com a suástica nazista na fazenda de sua família, a Cruzeiro do Sul, no município de Campina do Monte Alegre, no interior de São Paulo. Entre lances detetivescos, Aguilar descobriu que também o gado da fazenda era marcado com a suástica e que o proprietário era assumidamente nazista e membro da Ação Integralista Brasileira (AIB). Simultaneamente, acontecera ali um caso de escravização de pelo menos 50 crianças que chegaram com idades entre 9 e 12 anos. Com exceção de dois, eram todos negros, como Aguilar constatou cruzando dados, documentos e depoimentos dos pouquíssimos ex-“alunos” que haviam ficado presos na “escola isolada” da Fazenda Cruzeiro do Sul e permaneciam vivos enquanto ele desenvolvia a tese de doutorado que originou Entre Integralistas e Nazistas.
Não era uma família qualquer aquela que mantinha crianças pretas e pardas escravizadas enquanto espalhava suásticas por tijolos, bois e bandeiras. Em 1916, Luís Rocha Miranda, filho do notório político, militar e fazendeiro fluminense Barão do Bananal, havia adquirido as terras do espólio do Brigadeiro Tobias de Aguiar, marido de Domitila de Castro Canto e Melo, a Marquesa de Santos, ex-amante do imperador Pedro I. Chamava-se Fazenda Lagoa do Sino e foi depois dividida entre os filhos de Luís Rocha Miranda, originando várias fazendas, entre elas a Cruzeiro do Sul, de Sérgio Rocha Miranda. Esse, assim como seus irmãos Otávio, Osvaldo e Renato, era integrante da Câmara dos 40, um dos principais órgãos da Ação Integralista Brasileira, liderada por Plínio Salgado. As crianças haviam sido trazidas de um orfanato carioca, o Educandário Romão de Mattos Duarte, pertencente à Irmandade de Misericórdia do Rio de Janeiro, da Igreja Católica. Fecha-se assim o círculo reacionário de tradição, família e propriedade.
O educandário era vizinho do Palácio Guanabara, antiga propriedade da Princesa Isabel e do Conde d’Eu e se tornaria residência oficial do presidente Getúlio Vargas durante o Estado Novo (1937-1945). Acolhia crianças excluídas do processo de reurbanização/”higienização” de bairros da região central do Rio como a Misericórdia, o Morro do Castelo (que seria demolido no processo) e a Glória, antes sede de mansões imperiais. Em meio a um surto de especulação imobiliária, de lá saíram, em diversas levas, as crianças de sexo masculino que teriam aulas (ou melhor, comporiam força de trabalho não-assalariada) na Fazenda Cruzeiro do Sul.
Aguilar desenrola os novelos da família Rocha Miranda e encontra no emaranhado a elite econômica e intelectual da época (ou de qualquer época). Otávio Rocha Miranda atuava na área da construção civil e foi sócio da Companhia Construtora Ipanema, que urbanizou a praia de Ipanema, além de diretor do Comitê Olímpico Brasileiro e, durante o governo de Eurico Gaspar Dutra, presidente da Legião Brasileira de Assistência (um de seus filhos, Edgard Rocha Miranda, seria autor teatral e dono do Teatro Glória). Renato Rocha Miranda foi fundador do Rotary Clube do Rio de Janeiro e dirigiu o Banco Nacional Brasileiro e a Companhia Carbonífera Próspera em Criciúma (SC), essa última em sociedade com a empresa alemã Krupp, fabricante de armamentos. Segundo o autor do livro, Sérgio Rocha Miranda (o dono da Cruzeiro do Sul) e Osvaldo Rocha Miranda “tinham seus interesses mais ligados à agropecuária, aos aviões, aos iates e às caçadas” (segundo o sobrevivente Aloysio Silva, que estampa a capa de Entre Integralistas e Nazistas, Sérgio era caçador de onças no Mato Grosso). Em sociedade (e parentesco) com a família Guinle, os Rocha Miranda foram à época proprietários ainda do Copacabana Palace, do Hotel Glória e do Iate Clube do Rio.
A família Krupp, segundo recupera Aguilar, incluía um ministro da Economia de Adolf Hitler e dois condenados pelo Tribunal de Nuremberg por exploração de trabalho escravo de judeus. Após a derrocada nazista na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), Arndt von Bohlen Krupp und Halbach, único herdeiro dos Krupp, faria refúgio numa das fazendas dos Rocha Miranda, comprada de Otávio. Segundo o historiador, a Krupp, também ligada à siderurgia, havia fornecido canhões para o Exército no massacre de Belo Monte, na Guerra de Canudos (1894-1897).
Em depoimento de dez anos atrás, Seu Aloysio Silva, já no final da vida, narra a circunstância da escolha dos meninos do educandário pelo representante dos Rocha Miranda: ele atirava balas do alto e selecionava os garotos que as pegassem com maior agilidade. O pretexto da transferência, que foi acompanhada por carros de polícia, era de que na fazenda os meninos seriam educados. O fazendeiro “falou que nós vinha pra cá conhecer São Paulo, porque quem quisesse aprender a andar a cavalo ia andar a cavalo, criar passarinho, andar de barco, tudo”, segundo rememora Aloysio.
As aulas duraram apenas um ano e não ocupavam mais que três horas diárias. Pela manhã desde às 5 horas e após as aulas vespertinas, exerciam trabalhos não-remunerados e passaram por experiências de castigos físicos, chicotadas, palmatória, encarceramento e fome. Seu Aloysio descreve a circulação dos integralistas por Campina do Monte Alegre e pelas fazendas dos Rocha Miranda: “Antigamente era o PRP (Partido Republicano Paulista) e o PC (Partido Comunista Brasileiro). O PRP era da Alemanha e o PC era da Rússia, comunista. A calça (dos integralistas) era branca. A camisa era verde e tinha um bibi (boina militar, segundo Aguilar) com um emblema aqui, um M (seria, segundo o autor, a letra grega sigma, o símbolo integralista). O ‘bom dia, ‘boa tarde’ desse PRP era ‘anauê!’. Não era ‘bom dia’, nem ‘boa tarde’, nem ‘boa noite’… Era ‘anauê!'”.
Aguilar monta à luz do presente o quebra-cabeça que a sociedade brasileira finge não perceber. Associa, assim, as políticas eugenistas que dominavam educação e saúde à escravização de crianças pela elite de então. O fato de os meninos serem quase todos negros o faz classificar, sem meias palavras, tais práticas de racistas (além de classistas, paternalistas, machistas etc.). “As relações entre o varguismo e o nazismo sempre foram as mais incômodas à exposição pública após a Segunda Guerra Mundial. Afinal, essa relação trazia a discussão do racismo como política de Estado e a implosão da teoria da ‘democracia racial’ no Brasil”, escreve.
Tudo mudou a partir de 1942, quando o Brasil, pressionado pelos Estados Unidos, rompeu relações diplomáticas com o Eixo e Getúlio desceu do muro a favor dos Aliados e contra nazistas e fascistas. “O nazismo e o integralismo já estavam proibidos há cerca de quatro anos pelo Estado Nacional Varguista e, a partir de1942, tornaram-se inconveniências políticas e econômicas. Um passado nazi-integralista tornou-se também inconveniente. Uma colônia nazista-integralista fazendo ‘educação eugênica’ tornou-se uma prática a ser extirpada e um passado a ser enterrado e esquecido”, escreve Aguilar.
Segundo Seu Aloysio, na derrocada os uniformes integralistas foram enterrados no campo de aviação da fazenda. Com a desmobilização, entre 1943 e 1944, os agora jovens rapazes foram simplesmente dispensados e abandonados à própria sorte, o mesmo que as classes dominantes haviam feito quando da “abolição”, em 13 de maio de 1888. Lembra Seu Aloysio: “No outro dia cedo, um atrás do outro, pegavam o caminho da (estação de trem) Hermilo… Uns foram pela linha de trem, outros (…) pela estrada, tudo a pé, sem um tostão no bolso, foram bater no Rio de Janeiro”. Segundo depoimentos reunidos no livro, um único jovem foi mantido pela família – tornou-se cozinheiro e mais tarde mordomo dos Rocha Miranda.
Em 1984, a antiga Fazenda Lagoa do Sino foi comprada pelo escritor paulista Raduan Nassar, que somente em 2010, no último ano de governo de Luiz Inácio Lula da Silva, conseguiu efetivar a doação das terras para a União. Como era desejo do escritor, foi instalado ali um campus da Universidade Federal de São Carlos. A história da Fazenda Cruzeiro do Sul (e de inúmeras outras dispersas pela geografia e pela história do Brasil) seria apenas uma memória triste se o Brasli tivesse ajustado contas com seu vergonhoso passado escravagista, militarista, integralista, fascista, nazista, golpista etc. Entre Integralistas e Nazistas conta, no entanto, uma história extremamente atual, e para constatá-lo basta substituir termos como eugenia e higienismo por gentrificação, trabalho escravo por reforma trabalhista, fascismo/nazismo/integralismo por bolsonarismo e assim por diante. O sangue humano continua a jorrar, ininterruptamente.
Entre Integralistas e Nazistas – Racismo, Educação e Autoritarismo no Sertão de São Paulo. De Sidney Aguilar Filho. Alameda, 342 pág., R$ 40.
O artigo menciona que só havia dois meninos brancos. Mas nas fotos do time de futebol e da escola vemos vários. Como se explica isso?