Caetano Veloso: nervoso, teimoso, manhoso

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Caetano Veloso
Caetano Veloso no vídeo de "Não Vou Deixar" - foto Aline Fonseca

É triste que o lançamento de Meu Coco, de Caetano Veloso, coincida no calendário com a morte prematura do maestro Letieres Leite, no último dia 27, aos 61 anos. Primeiro trabalho autoral do compositor e cantor baiano em nove anos, Meu Coco reata a experiência de fusão entre orquestra e percussão afro testada em Livro, de 1997, no que parecia uma apropriação do fenômeno de massa da axé music baiana em termos intelectuais, jazzísticos, eruditos. Não muito antes do lançamento de Livro, Letieres havia voltado da Áustria, onde vivera uma década e estudara música no Franz Schubert Konservatorium. De volta ao Brasil, enquanto Caetano cortejava o jazz e a música de orquestra, Letieres se tornou diretor musical da ascendente Ivete Sangalo, então em início de carreira solo (o primeiro CD saiu em 1999), depois de seis anos e seis discos à frente da Banda Eva, um dos principais grupos da avalanche axé.

Abigail Moura
O maestro Abigail Moura – foto Acervo de Carlos Negreiros/Facebok Orquestra Afro-Brasileira Oficial

Letieres seguiu com Ivete até 2011, mas antes mesmo, em 2006, começou a construir um imaginário próprio, ao fundar a Orkestra Rumpilezz, ancorada fortemente na combinação sem hierarquia entre sopros jazzísticos/erudidos e percussões afro-baianas e reunindo instrumentistas baianos com os dois perfis. Letieres começava a tatear a retomada de um projeto, que passava, sim, pelo Livro de Caetano, mas tinha origens mais remotas, na tradição de maestros negros como o pernambucano Moacir Santos (1926-2006), autor do mitológico disco Coisas (1965), no entrecruzamento múltiplo entre vanguarda erudita, jazz, bossa nova, samba-jazz, afro-samba etc., ou, antes ainda, o mineiro Abigail Moura (1905-1970), que fundou a Orquestra Afro-Brasileira e fez experiências de mistura entre a música de orquestra e os cantos e batuques de candomblé, no também histórico disco Obaluayê! (1957). Moacir Santos suavizava as questões raciais denominando suas peças simplesmente de “Coisas” (a mais popular delas é a “Coisa Nº 5”, popularizada como “Nanã” em versões como a cantarolada por Nara Leão ou a de Wilson Simonal , acrescida de letra afro-religiosa). Antes e depois disso, Abigail jogou gasolina na fogueira racial em títulos como “Amor de Escravo”, “Liberdade” (1957), “Palmares”, “Saudações aos Orixás” (1968) etc. Por décadas, a sociedade branca relegou Abigail e sua orquestra ao total apagamento. Moacir, ainda em 1965, migrou para Pasadena, nos Estados Unidos, de onde nunca mais retornou.

Orquestra Afro-Brasileira
Abigail e sua Orquestra Afro-Brasileira – foto Acervo de Carlos Negreiros/Facebook Orquestra Afro-Brasileira Oficial
Moacir Santos
O maestro Moacir Santos viveu em Pasadena (EUA) de 1965 até sua morte
Letieres Leite
O maestro Letieres Leite (1959-2021) – foto Fernando Eduardo

Caetano tem funcionado como um elo perdido (ou encontrado, porque com grande trânsito junto à cultura de massa) entre esses dois mundos díspares, o do pop do pop do pop e aquele que Abigail, Moacir e Letieres cultivavam em espaços muito mais restritos, na chamada vanguarda. Moacir, sobretudo, teve carreira de êxito nos Estados Unidos e foi mais uma entre muitas provas da máxima de que santo de casa não faz milagre – ou, na perfeita tradução de Aldir Blanc Elis Regina, de que “o Brazil não conhece o Brasil”. As coisas têm mudado lentamente desde o tempo da axé music (apelido que desagradava Letieres), rumo a um cenário radicalmente diferente nos dias atuais, de auto-afirmação racial inédita na história do Brasil. O encontro de palco entre Caetano Veloso e Letieres Leite & Orkestra Rumpilezz, em 2019, em torno justamente das Coisas de Moacir Santos (mas também de canções de Caetano), é um marco que comprova a mudança de ventos contínua desde, pelo menos, o sacolejo entre classes sociais (e raciais) dos anos Lula e Dilma.

Se Letieres não poderá acompanhar os desdobramentos futuros da crescente ascensão de pretos e mestiços, Caetano retoma mais uma vez o fio da meada em Meu Coco, depois da áspera trilogia de tropicália-rock formada por Cê (2006), Zii & Zie – Transambas (2009) e Abraçaço (2012). O carioca Jaques Morelenbaum, maestro de Livro, está mais uma vez presente, mas com menos centralidade que em 1997. Para além disso, Meu Coco dá demonstrações abundantes de ter assimilado a modernização afro-erudita movida por sopros e percussões da Rumpilezz – Letieres está presente em pessoa, no arranjo de sopros, na regência e na flauta de “Pardo”, canção de discussão racial gravada primeiro em levada reggae, por Céu, em 2019.

A letra de “Pardo” é ambígua ao gosto de Caetano, na simulação de um diálogo entre preto e pardo: “Nego/ teu rosa é mais rosa que o rosa da mais rosa rosa/ (…) sou pardo e não tardo a sentir me crescer o pretume/ sou pardo e me ardo de amores por ti sem ciúme”. “Pardo” aparece ensanduichada entre “Cobre” e “Você-Você”, num trio racial e geopolítico em Meu Coco. Sob cama de violinos, violoncelos, violas e caxixis, “Cobre” ronda os mesmos temas de “Pardo”, mas mais engajada nas questões candentes dos dias atuais e com reflexão mais profunda: “Tua pele é o cobreado/ da Bahia de nós dois/ grei de escravizados e opressores/ reis do Estado que virá depois”. Já “Você-Você” investiga a relação colonialista importa por Portugal ao Brasil e o afastamento entre os dois países, tratados como dois amantes (“depois que nós nos perdemos/ amor, amor, nossos demos/ afastam-nos ano a ano”). Caetano canta com português de Portugal, mas a partir do ponto de vista do lado colonizado, mais que do colonizador: “Eu cá nesta Americáfrica/ vivo entre miséria e mágica/ não sei dizer o que valho”. “Você-Você” é interpretada em duo com a cantora portuguesa Carminho, e ela vocaliza alguns orgulhos históricos brasileiros, não portugueses: “‘O orvalho vai caindo’/ não podes negar que é lindo/ requer de nós grande arte/ (…) Ary, Noel, Tom e Chico”. Por fim em uníssono, ambos tentam operar a reconciliação: “Amália, blues, tango e rumba/ atabaque e bailarico/ Peri, Ceci, Ganga Zumba”.

“Você-Você” é uma das várias canções enumerativas de Meu Coco, somando Noel RosaAry BarrosoTom JobimChico Buarque e a portuguesa Amália Rodrigues. A faixa-título abre o álbum com a voz crepuscular de Caetano enumerando Nara Leão, Maria Bethânia, Elis Regina, João Gilberto, Noel Rosa, Dorival Caymmi, Ary Barroso, suas próprias canções “Um Índio” (1977) e “Irene” (1969), os Buarque de Hollanda, Zumbi, Zabé da Loca. Antes de todos, surgem, no plural as janaínas, o narrador espremido entre Janaína Diniz (filha da atriz Leila Diniz) e a infame Janaína Paschoal. “Os nomes dizem mais do que o que cada uma diz”, filosofa, para então se abrir à geleia racial brasileira: “Somos mulatos, híbridos e mamelucos/ e muito mais cafuzos do que tudo o mais/ o português é um negro dentre as eurolínguas/ superaremos cãibras, furúnculos, ínguas”. Ao fundo, bailam sopros jazzísticos bastante tributários da sonoridade da Rumpilezz. A dimensão religiosa é acrescentada à geleia geral (“católicos de axé e neopentecostais/ nação grande demais para que alguém engula”). Em consonância com a terminologia dos anos 2020, Caetano declarou-se “fluido” ao jornal O Globo, estendendo o caleidoscópio de identidades também às sexualidades.

Logo no início Caetano explica o porquê do título de sabor espirituoso, quase humorístico, do álbum: “João Gilberto falou/ e no meu coco ficou/ quem é, quem és e quem sou?:/ ‘somos chineses'”. É a primeira agulhada, bem leve, em bolsonaristas e outros negacionistas que demonizam a “vacina chinesa”. Os nomes de filhos enfileirados em “Meu Coco” se articula, cinco canções adiante, com “Enzo Gabriel”, um comentário meio bobo sobre um dos nomes masculinos compostos mais registrados no país em anos recentes. Explícita ou não, a enumeração prossegue no ritmo puxado para o baião de Luiz Gonzaga, e na citação a sua “Coração Vagabundo” (1967) e ao “Viramundo” (1967) de Gilberto Gil. “Enzo Gabriel/ sei que a luz é sutil/ mas já verás o que é nasceres no Brasil”, conclui, numa pequena observação que abarca imensidões.

“GilGal” volta a enumerar, sob melodia especialmente doce, ao redor do espírito de corpo tropicalista assentado no tripé racial-sexual montado por ele, Gil e Gal Costa: “Vem de Pixinguinha Jorge Ben/ pousa em DjavansWilson BaptistaJorge VeigaCarlos Lyra e o imenso Milton Nascimen (assim mesmo, sem a sílaba final) – vários pretos, apenas um não-preto. Eloquente: não há mulheres além da implícita Gal, na tradição que Caetano vê partir de Pixinguinha e desaguar em Jorge Ben (Jor). Mais uma vez adaptado aos novos ventos, Caetano faz o triângulo tropicalista reencontrar uma outra ancestralidade baiana, por muito tempo silenciada: “Nossas almas irmãs/ rasgaram manhãs/ mas sem chegar aos pés dos Tincoãs“. Sempre focado em valorações, comparações e competições, presta homenagem ao afro-jazz de candomblé dos Tincoãs de Mateus Aleluia, mais um elo perdido naquela linha evolutiva secreta preta baiana iniciada por Abigail Moura e Moacir Santos e recuperada por Letieres Leite – seu Mateus costuma se referir aos de memória apagada e/ou marginalizados como “recuados“. Diferente da maior parte das canções de Meu Coco, “GilGal” é estruturada apenas em palmas coletivas de samba de roda do Recôncavo Baiano e no conjunto sino, surdo, agogô e tambores rum, pi e lé, todos executados pelo filho Moreno Veloso.

"BXD in Jazz" (2021), de Yoùn
A capa de “BXD in Jazz” (2021), da dupla Yoùn

As várias indicações de que a linha evolutiva de Meu Coco, para Caetano, termina em própria geração são revertidas na penúltima faixa, “Sem Samba Não Dá”, cerzida em coro, violão, baixo, banjos e acordeom, além da percussão pilotada por Pretinho da Serrinha, com cavaco, tantã, surdo, pandeiro, repique de anel, ganzá, caixa, repenique, tamborim, reco-reco, agogô, cuíca e apito (outra vez, estão ausentes a orquestra e o jazz não-brasileiro). A letra enumerativa sustenta que toda música feita no Brasil é, de alguma forma, samba. Os eleitos por ele são, nesta ordem, AnavitóriaMarília MendonçaFerrugemGloria GrooveMaiara e Maraísa, YoùnDjongaBaco Exu do BluesDuda BeatGabriel do BorelHiranMajurSimone e SimariaLeo SantanaDidá Banda Feminina. Os sucessivos apagamentos, parece, jamais serão superados. Por outro lado, iluminado por Caetano, o duo preto Yoùn, vindo da Baixada Fluminense e revelado em apresentações no metrô carioca, encarna bem a geleia cultural preconizada por Meu Coco: liquidifica, num som puxado no rhythm’n’blues, gêneros variados (e quase sempre negros) como jazz, blues, rock, samba, rap…

Os maiores diálogos de Meu Coco sobre a realidade atual se encontram nas duas primeiras músicas lançadas também em vídeo, “Anjos Tronchos” e “Não Vou Deixar”. A primeira, a mais belchiorana das letras de Meu Coco, chapa o coco na distopia pós-cibernética e orbita entre termos como “Vale do Silício”, “denso algoritmo” ou “post vil”. No polo, digamos, clássico convivem com a barbárie virtual, em mais enumeração, os austríacos Anton Webern e Arnold Schoenberg e os estadunidenses John Cage e Billie Eilish, de um lado os gênios da vanguarda, do outro a jovem pop-rock-eletrônica que “faz tudo do quarto com o irmão”. Hermeto Pascoal, sempre rebelde, desta vez fica de fora dos hermetismos (não)pascoais.

O trecho revelador de “Anjos Tronchos” vai diretamente à política e menciona os resultados desastrosos das “primaveras” do início da década passada, imagina-se que entre elas o fatídico inverno brasileiro de 2013: “Primavera Árabe – e logo o horror/ querer que o mundo acabe-se/ sombras do amor/ palhaços líderes brotaram macabros/ no império e nos seus vastos quintais”. A autocitação, nessa música feita de guitarra, baixo, sintetizador, zabumba e triângulo, é à divisora de épocas “Alegria, Alegria” (1967, no verso “e eu vou, por que não?, eu vou, por que não?, eu vou”).

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Quanto a “Não Vou Deixar”, as divertidas expressões faciais de Caetano no vídeo orientam a interpretação de proposições por elas próprias já transparentes. Carrancudo e reprovador, seu olhar acompanha os versos iniciais que espicaçam a boçalidade instalada na presidência da República: “Não vou deixar, não vou, não vou deixar você esculachar com a nossa história/ é muito amor, é muita luta, é muito gozo, é muita dor e muita glória”. A carranca começa a se desanuviar em “não vou deixar que se desminta/ a nossa gana, o nosso drama, a nossa fama de bacana, a nossa pinta”, com expressão impagável de Caetano em “nossa pinta”. Entre sorrisos abertos (mas por vezes transitando rapidamente para a cara de mau), o velho tropicalista renova o “Apesar de Você” (1970) de Chico no golpe passado: “Apesar de você dizer que acabou/ que o sonho não tem mais cor/ eu grito e repito, eu não vou!”. Mais ainda, o comando “não vou deixar” remete ao antigo “Brasil, ame-o ou deixe-o”, lema da ditadura que já em 1976 Gil contestava com os Doces Bárbaros, em “O Seu Amor” (“o seu amor/ ame-o e deixe-o/ ir aonde quiser”). Noves fora o exílio londrino entre 1969 e 1972, deixar o Brasil em momentos de horror não foi e não é uma alternativa plausível para Caetano.

Caetano Veloso
Caetano Veloso – foto Fernando Young

No momento do grito, “Não Vou Deixar” sofre uma reviravolta que é um ponto culminante em Meu Coco. “O menino me ouviu e já comentou:/ o vovô tá nervoso, o vovô/ nervoso, teimoso, manhoso”, graceja. A canção reage ao próprio grito, tirando do armário a volta à infância que, dizem, é própria das idades mais avançadas. Num disco todo atravessado por referências à ininterrupta troca de guarda entre gerações, Caetano desmorona, aos 79 anos, diante dos encantos do neto Benjamim, personagem também de “Autoacalanto”. Ao som apenas de voz e de violão (de Tom Veloso, filho de Caetano e pai de Benjamim), esse é talvez o poema mais bonito de Meu Coco: “O autoacalanto de Benjamim/ que, por enquanto, é o caçula de mim/ é um deslumbramento/ ele emula o canto de um querubim-curumim/ o que é mesmo que isso me ensina?/ um ser que a si mesmo se nina/ um quase lamento já é nota de tom/ e tem cor de jasmim/ eu nunca tinha visto nada assim”. Vivendo e aprendendo, constata o velho coco de Caetano.

Meu Coco. De Caetano Veloso. Sony.

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