Ana Cañas fazia fama como cantora da noite paulistana se apresentando no bar Baretto quando foi percebida pela multinacional Sony Music, em 2007. Mesmo assim, conseguiu impor à gravadora um disco de estreia quase todo autoral, chamado Amor e Caos. Seguiu daí em diante compondo a maioria das canções que interpreta, que lhe renderam mais cinco álbuns de estúdio, com ponto culminante no feminista e aguerrido Todxs, de 2018. Durante a pandemia, ela fez meia-volta e preparou, afinal, seu primeiro disco apenas como intérprete. Lançado agora sob o título Ana Cañas Canta Belchior, o álbum soma 14 faixas recolhidas do cancioneiro do menestrel cearense morto em 2017, já familiares para Ana desde que se uniu a um projeto coletivo de palco pilotado pela cantora e compositora Taciana Barros, ainda em 2017.
Ana afirma que a “faca com mel” da obra Belchior a atravessou e já repercute nas novas canções que vem compondo e pretende transformar num futuro álbum autoral que deve abordar temas tão profundos quanto a morte, inspirados nas perdas do pai, da avó e de um irmão de 24 anos, mas também numa experiência de quase-morte que viveu no mesmo e fatídico 2017. Enquanto dribla as dificuldades financeiras de 18 meses longe dos palcos, ela acaba de estrear o programa televisivo de entrevistas Sobrepostas, no Canal Brasil e no Globoplay, centrado nas questões (especialmente sexuais) da condição feminina que ela priorizou em Todxs. De quebra, anuncia o provável retorno ao lado de atriz (é formada em artes cênicas), numa série pop com elenco global.
Em 2016, chegou aos cinemas o filme Amores Urbanos, de Vera Egito, protagonizado pelo também músico Thiago Pethit e no qual Ana vivia uma cantora lésbica que não se assumia publicamente. Se essa era ainda a norma há apenas cinco anos, uma pequena revolução comportamental de lá para cá consolidou não apenas as carreiras de diversas cantoras-autoras, mas também tem quebrado, aos poucos, os tabus sobre sexualidade que ainda vigoram no Brasil. Ana, bissexual, comemora o fato de que a futura novela global Pantanal será protagonizada por um casal de atores assumidamente bissexuais. As mudanças comportamentais que temos vivido têm, entre inúmeras outras, as impressões digitais de Ana Cañas, primeiro com o videoclipe “Respeita” (2017), em seguida com Todxs e sem parar desde então. A partir de 2016, durante o golpe de Estado em Dilma Rousseff, Ana abraçou com garra a militância política, fosse em causas femininas, sexuais, raciais, dos movimentos sem terra e sem teto ou da campanha contra a prisão de Luiz Inácio Lula da Silva. Foi figura constante nos palanques de então, reinterpretando o hino “Como Nossos Pais”, composto pelo mesmo Belchior e lançado à celebridade em 1976 por outra cantora de fibra ativista, a gaúcha Elis Regina.
Angustiada pela roda viva das tarefas políticas, Ana se ressentiu de deixar a intérprete em segundo plano (“as pessoas não estavam mais me vendo como uma cantora, que é o meu ofício, o que sei fazer”), e Ana Cañas Canta Belchior marca a reconciliação. Mas o breque para tomar fôlego não é inofensivo – não à toa, as canções sempre bravas de Belchior têm calado forte no peito abrutalhado do Brasil destes últimos anos. Enquanto respira, a artista se prepara para encarar o próximo tabu, de falar sobre morte para um público que evita o assunto mesmo diante do número escandaloso dos (por enquanto) 600 mil brasileiros mortos por covid-19 desde 2020. Abaixo, Ana fala com voracidade sobre esses e outros muitos temas, com a peculiaridade de se antecipar e responder perguntas que ainda não foram feitas (e eventualmente nem o seriam). A exemplo de Belchior, “amar e mudar as coisas” parece ser o barato de Ana Cañas.
Pedro Alexandre Sanches: Como a pandemia mudou sua vida profissional?
Ana Cañas: A gente ainda sente muita falta dos palcos, tá foda. Estamos aguardando a retomada por diversos motivos – financeiros, emocionais. Vou fazer Blue Note dia 6, duas sessões que esgotaram 40 dias antes, o pessoal está no sangue. Mas são casas pequenas, ainda não dá para ter uma logística de turnê. As próprias casas estão bastante reticentes. Estamos num momento ainda bastante complexo. Acho que vai ser ano que vem mesmo, se essa variante não pegar, por Deus. Mudou tudo, toda a dinâmica, a rotina. Emocionalmente a gente reagiu diferente em cada momento. Primeiro pânico, medo do vírus, depois o começo de uma reabertura – cheguei até a fazer um show na praia em Pipa. Aí veio a segunda onda, com um punch muito violento. A morte do Paulo Gustavo é meio um símbolo desse momento, dessa perda tão sentida pelo país todo. E agora, que é a parte final, para mim bateu mais forte. É curioso isso. Fiquei bastante estressada por tudo que estou fazendo, que demanda muito trabalho. Descobri que hoje o artista trabalha cinco vezes mais para fazer um lançamento. Cantar, na minha vida, é 20%. O resto é rede social, vídeos de YouTube, plataformas, imprensa, e ainda estou com o programa também. É um momento novo, de algoritmo. E tem a parte financeira, difícil para artista de médio ou pequeno porte, independente, que não é mainstream, não está rico milionário, com aquela bufunfa no banco. Eu vivo com reserva para três ou quatro meses, aprendi a fazer isso. A gente teve que repensar tudo, renegociei meu aluguel, não compro mais as mesmas coisas no mercado. É a realidade nossa. A gente ainda fica grato por ter saúde, por estar vivo. E esse governo, a gente está vivendo o pior cenário do mundo, né? Além de enfrentar pandemia a gente tem que enfrentar um negacionista, um fascista, tudo isso aí que estamos cansados de saber.
PAS: Isso de 20% do tempo para cantar é pós-pandemia? Não era assim antes?
AC: Não, é essa reconfiguração de lançamento. A gente trabalha com vídeo, áudio, conteúdo, foto. Além de não estar na estrada, quando vai lançar um trabalho, 80% é num escopo que não é cantar em si. Para mim, que tenho 20 anos de música, mudou muito. Para todos os artistas. Você tem que fazer um conteúdo para Spotify, um para Deezer, Apple, Tidal, YouTube, Instagram, Facebook, Twitter… E é tudo formato diferente, cada avatar tem uma medida própria. A gente está trabalhando com uma cognição muito mais exigente e ampla das coisas.
PAS: E, o meio disso, surge o analógico Belchior?
AC: Pois é. É louco, ele é analógico mesmo. Ele exige um coração analógico. Tem uma metafísica ali, não é um entretenimento pura e simplesmente. Exige uma profundidade. E é um reflexo da pessoa que ele foi. Ele era um ser humano complexo, em vários sentidos e vieses. Vejo a música dele como literatura quase. A melodia não está na frente, não é o ponto das coisas como é para Dorival Caymmi ou Gilberto Gil. Caetano Veloso menos, nos últimos 15 anos Caetano está bem belchiorano, bem nas ideias. Ouvi Meu Coco outro dia e falei: nossa! E é curioso, eles tiveram um conflito ao longo da vida. Belchior teve conflitos com os baianos em alguns sentidos, especialmente Caetano. Ele tem uma admiração profunda, mas também tem uma mágoa, me parece.
PAS: Quando e como Belchior surge para você, a ponto de virar tema de um disco inteiro?
AC: Ele surge na minha vida pelo portal Elis Regina, na adolescência. Eu nem sabia quem era Belchior, mas lembro do impacto de “Como Nossos Pais” (1976) para mim. Faço um arco narrativo dramático da minha adolescência até este momento em que decido gravar “Como Nossos Pais”. É um diálogo com isso também.
PAS: “Como Nossos Pais” termina o disco.
AC: Começou, de verdade mesmo, quando Jotabê Medeiros lançou o livro dele e Taciana Barros fez um projeto a convite da Casa TPM e me convidou e convidou Karina Buhr para participar. Isso foi em 2017. Nesse show, eu já cantava as músicas, vamos dizer, mais icônicas e melodiosas. Taci me deu a missão de cantar as canções interpretadas pela Elis nesse show, e mais “Na Hora do Almoço” (1971) e “Alucinação” (1976). Saí desse projeto para lançar Todxs (2018), meu disco autoral anterior. Mas durante a turnê do Todxs sempre cantei “Alucinação”, porque eu estava muito envolvida com a militância, e essa para mim era a música que dialogava com tudo que eu estava vivendo ali, nos coletivos, shows na quebrada, no MST, nas ocupações, e com o feminismo até. Essas letras são realmente muito, Belchior é uma alma muito gigante. E toda vez que eu cantava “Alucinação” acontecia uma epifania. As pessoas choravam, já fui aplaudida de pé no teatro – é muito raro hoje em dia as pessoas se levantarem para aplaudir de pé, parece uma coisa de anos 1980 ou 1990. Mas acontecia, e eu tinha um feeling, cara, tem alguma coisa quando canto Belchior. Um amigo meu compositor fala uma coisa que acho bonita, que a voz feminina é um portal às vezes necessário para alguns compositores. A mulher conhece a opressão, o cerceamento, de uma forma real, pela estrutura de violência de gênero. Então tem Gal Costa cantando Caetano, Maria Bethânia cantando Roberto Carlos, sabe? Quando começou a pandemia, fiz a live (com músicas de Belchior), e nesse momento o YouTube estava derrubando uma live atrás da outra, um problema grave de direitos autorais. Eu não estava podendo cantar minhas próprias músicas, porque os fonogramas dos meus discos iniciais pertencem a gravadoras. Cara, eu não posso cantar minhas próprias músicas na pandemia no YouTube na minha casa, socorro! Falei: bom, vou fazer uma live homenageando alguém.
PAS: Belchior não daria problema com direitos autorais?
AC: A gente conseguiu entrar em contato com a editora dele e conseguiu a liberação. Foi mais fácil conseguir a dele do que a das minhas músicas. E pensei: não tem outra pessoa para cantar agora. Muita gente me pergunta por que Belchior é tão atual, e fiquei muito tempo pensando sobre isso. Obviamente tem a genialidade, a poesia, a capacidade idiossincrática dele de revelar a vida nas canções. Mas a gente tem que lembrar muito que Belchior escreve o disco Alucinação em 1976, numa moldura de ditadura, de Ato Institucional Nº 5, e isso dialoga totalmente com a distopia deste governo atual de extrema direita. Acho que faz muito sentido por isso. Belchior é muito concreto, direto, honesto, mas tem um quê de surreal, como quando ele cunha o verso “ano passado eu morri, mas neste ano eu não morro”, do Zé Limeira, um repentista do Nordeste. Não tem outra pessoa que para mim faça mais sentido hoje do que Belchior. É assustadora a sombra. E faço uma reflexão particular, de quando Belchior resolve fazer um auto-exílio, nos últimos dez anos de vida. Acho que isso magoa um pouco as pessoas que o amam. Ficou misterioso, é misterioso até hoje, ele nunca disse o porquê disso. Quando ele proclama um auto-exílio, está dizendo “me deixem em paz”, e as pessoas acataram, por respeito até. Então fica esse hiato provocado também por ele, sugestionado por ele. E quando ele falece, em 2017, é um grande momento de homenagear, falar. Estávamos havia dez anos sem saber de Belchior. Ele perdeu contato até com a família. E tem essa figura da mulher dele, a Edna (Prometheu), a gente não sabe se é uma relação abusiva. Os fãs que o hospedaram contam que Belchior estava proibido de encostar no violão. Ninguém sabia se era um acordo que ele tinha com a Edna, fato é que ele não cantava na casa das pessoas. Não dá para entender, mesmo o livro da Chris Fuscaldo, que é muito bem escrito, não tem uma resposta. Escorpião é um signo que morre e renasce muitas vezes, e o cara tem seis planetas em escorpião na vida dele. É muita coisa. Eu tenho quatro, metade do mapa astrológico regido por essa energia. Escorpião é um signo que pensa basicamente sobre dois assuntos: sexo e morte.
PAS: É o seu signo?
AC: É o signo solar dele, o meu é virgem. Por isso ele morre e renasce muitas vezes. Ele queria ser padre, aí vira médico, aí vira artista, aí se auto-exila. São muitas mortes e renascimentos simbólicos. E a temática do sexo está muito presente na obra, a catarse, a carne, paixão, devaneio, delírio, vertigem. Ele é um cara aguerrido, contracultural, marginal, o cara que rompeu com o sistema. No final da vida ele parece levar isso a cabo, não viver como as pessoas vivem. Ele tem essa epítome de pessoa radical, mas é um ser humano curiosamente muito doce. Em todas as dezenas de entrevistas que vi e tudo que li, ele era uma pessoa muito doce, sensível, educada.
PAS: Eu entrevistei Belchior, ele era exatamente assim.
AC: É mais uma dicotomia louca, um cara que no palco é tão visceral. Por exemplo, Cássia Eller era visceral no palco, mas a gente sabe que era muito tímida e extravasava no palco. Isso faz sentido. Mas acho muito louco a pessoa ser tão doce e amorosa e tão visceral no palco.
PAS: Você já gravou Led Zeppelin, Bob Dylan. O final dele tem uma mitologia rock’n’roll, você se identifica por aí também?
AC: Eu me identifico com ele em muitos aspectos. Essa doçura versus catarse no palco também, sou um pouco assim. E com certeza Bob Dylan, Belchior já entendia as coisas quando Bob Dylan surgiu, nos anos 1960. Imagina o impacto. Dylan é um divisor das mentes na história da música, assim como Elvis Presley é o divisor dos corpos. Acho ele nosso Bob Dylan, embora eu ache que Renato Russo também foi muito influenciado, “Faroeste Caboclo” (1987) é Bob Dylan. Belchior tocava um violão simples, para mim tenho que ele é um literato, um cara muito culto, cabeção mesmo, estudioso. Ele queria traduzir Dante Alighieri para o português. Belchior é subestimado, a gente precisa galgar esse patamar. Para mim é Caetano, Gil, Chico Buarque e Belchior.
PAS: A gravação do Emicida (“AmarElo“, de 2019, com sampler de “Sujeito de Sorte”) voltou a popularizar muito a famosa frase “ano passado eu morri, mas neste ano eu não morro”.
AC: Não me surpreendeu muito, sabe por quê? Quando comecei a pesquisar Belchior, fiz uma correlação dele com o rap. Primeiro por a melodia não estar na frente, e sim a letra. E todos os rappers que converso amam Belchior. Lembro de estar conversando com Black Alien e falar que ele precisava ouvir, porque tem uma correlação entre os dois. Ele parou para ouvir com calma e ficou assombrado, falou “cara, ele fala várias coisas que eu já falei nas minhas músicas”. Imagino o que Belchior estaria fazendo hoje, ele ia enlouquecer com Criolo, Emicida. Emicida tem uma voz muito forte, atinge uma molecada. Acho que estou atingindo pessoas de vários lugares, desde o público do Belchior mesmo até pessoas de média idade. Mas a força que Emicida tem de falar com a molecada da periferia, jovens, adolescentes, é magnífica. Foi uma grande sacada dele.
PAS: Você cantava essa música no show da Taciana?
AC: “Sujeito de Sorte” era Karina que cantava. Eu fiquei com as buchas. A maior bucha que uma cantora pode ter na vida é se meter nesse lugar de “Como Nossos Pais”, em sentido de comparação com Elis. Fiquei também com “Velha Roupa Colorida” (1976), também comparativamente com Elis, e mais “Na Hora do Almoço”, uma canção dificílima, e “Alucinação”, com uma letra quilométrica, que levei meses para decorar. Não à toa foi Elis, que era uma esponja brutal de tudo. Aliás, sempre me perguntei por que ela não pegou “Alucinação”, sabia? Acho que ela ia deitar e rolar, fazer um clássico. Não sei se é por não ter um refrão. As letras dele são imensas, de onde ele tirou “mas se você quiser me matar, por favor mate-me logo às 3 que à noite eu tenho um compromisso e não posso faltar por causa de vocês”? É o negócio mais antimusical que existe na face da Terra. Quando fui gravar o disco falei: nó! É muito difícil gravar Belchior. Como cantora já cantei de A a Z, desde a noite paulistana até Led Zeppelin, Bob Dylan, Gil, Caetano, e acho Belchior uma das coisas mais difíceis de cantar que existem, de verdade.
PAS: Você falou sobre as mulheres serem um portal para os compositores, mas é outra a sua época, que está permitindo às mulheres se expressar inclusive como compositoras. Como é parar esse lado para fazer um disco de intérprete?
AC: É, faço parte dessa geração. Nunca me esqueço que o disco da Céu em 2005 abriu essa porta, mesmo, para a minha geração, que tinha 20 e poucos anos. Foi um feito. Eu sabia que isso era acontecer, porque, comecei cantando na noite e cantava basicamente standards de jazz, Cole Porter, George Gershwin, e Tom Jobim, Chico Buarque – lembro de cantar no bar e Chico Buarque ir lá me ver, e cantei “Retrato em Branco e Preto” (1968) na frente dele. Eu cheguei numa gravadora por causa da intérprete. Para as gravadoras eu era intérprete. Eu cantava um repertório cabuloso, dificílimo, Edith Piaf, Nina Simone, “Ne Me Quitte Pas”, dentro de um bar. Acontecia uma mágica, o bar ficava em silêncio. Tive a sorte de trabalhar com um músico muito tarimbado da noite, o pianista Mário Edson, que tinha 70 anos, e eu tinha 22. Ele era maravilhoso, tinha trabalhado na Baiúca, no Beco das Garrafas, acompanhou Djavan, Emílio Santiago. Alcione começou com ele. Então fiz uma escola da intérprete que eu sabia que em algum momento ia voltar na minha vida. Na verdade nunca me deixou, em todos os meus shows autorais eu sempre interpretava alguma coisa de alguém, e era sempre um ponto alto dos meus shows. Antes do encontro com Belchior, eu achava que seria Cazuza ou Rita Lee. Aí aconteceu a pandemia. Belchior traduz tudo, faria menos sentido agora eu lançar um disco de intérprete cantando nem Cazuza nem Rita Lee. Só que eu nem sabia onde estava me metendo, honestamente, porque é muito difícil mesmo.
PAS: Decorou todas as letras?
AC: Ainda não, estou com a pastinha. Detesto fazer show assim, mas é difícil, porque a narrativa tem uma pitada de surrealismo, os versos são muito desconexos, não contam uma história linear, como a maioria das canções brasileiras têm. As dele são uma colagem, me vem na cabeça uma pintura do Picasso, aquela mulher chorando com o rosto todo entrecortado. É dificílimo. Quando fiz os primeiros shows, tinha uma canção do Belchior chamada “Noves Fora” (em 1972, mas só foi lançada em 1977), uma das primeiras parcerias dele com Fagner – é também outra relação muito complexa, de amor e ódio, entre os dois. É uma música, vamos dizer, menor no sentido da poesia, do pensamento. Por mais que a música fosse legal e trouxesse um suingue para o show, é uma música muito da fase inicial, você vê que ele estava buscando um hit ali. A própria Elis chegou a gravar, e ninguém conhece. Mas quando você vem cantando “Paralelas” (1975), “Alucinação”, “Como Nossos Pais”, “Fotografia 3×4” (1976), “Divina Comédia Humana” (1978) e canta “Noves Fora”, não dá. Ela fica muito aquém da literatura magistral que ele oferece. É puro entretenimento. Fica faltando aquela faca, aquela faca com mel, parece que passou um melzinho na navalha, mas ela vai te atravessar. “Mucuripe” (1972), que Elis também gravou, parece uma canção do Caymmi. É lindíssima, mas também destoava do disco. Ficaram faltando, tem muita música boa, fiz uma seleção de umas 35.
PAS: Foi difícil escolher quais seriam gravadas?
AC: Quando fiz a live, não pensei muito. Eu não tinha pretensão de fazer um disco, nem uma turnê, nada. Naquele momento, escolhi as que eu gostava mais, botei “Mucuripe”, “Galos, Noites e Quintais” (1977), “Tudo Outra Vez” (1979), botei bastante lado B até. Quando fiz a live, atingiu meio milhão de acessos muito rápido, recebi mensagens do mundo inteiro, a internet tem esse poder. Todo mundo começou a dizer que eu precisava gravar o disco, começaram a baixar o áudio da live para ouvir no carro. Achei que era um chamado, um convite do universo. Eu falava, gente, eu não tenho dinheiro para gravar um disco agora, e fizeram uma vaquinha para eu gravar. Tive que explicar para Taci, foi uma coisa que aconteceu, como eu ia falar não? Eu achei que tinha que fazer, fiquei um ano e meio fazendo, estou feliz de ter feito. Sou mais um prisma desse diamante, obviamente. Emicida é outro, Elis, Daíra (que lançou Amar e Mudar as Coisas em 2017, só com músicas de Belchior), Amelinha, Fafá de Belém, Elba Ramalho, Taciana – e Vanusa, que foi a primeira a gravar “Paralelas”. Muitas mulheres são apaixonadas por ele. A versão da Elba de “Paralelas” (1997) é foda, acho a melhor versão que existe. E tem a filha de Belchior, Vannick, menina jovem que está aí cantando. Belchior é de todo mundo. Acho que meu projeto agrega na sutileza, porque decidi não gritar mais. Sou uma cantora que grita, né? Tive uma crise existencial com isso no começo da pandemia, achei que precisava mudar meu canto, voltar para o meu início, quando as coisas eram mais doces e fáceis. Eu estava vindo da militância, quando eu quase adoeci, de saúde mental, porque todo o país me chamava para fazer tudo.
PAS: Por que você entrou na militância?
AC: Olha, começa com “Respeita” (2017), um single sobre violência de gênero. Convidei 90 mulheres para fazerem o clipe, e essas mulheres me convidaram para ir nos coletivos que elas faziam, e eu achei que tinha obrigação ética, de alma, de dar uma contrapartida. Comecei a ir e fazer shows nos coletivos, aí aconteceu a história do Lula, no momento da prisão dele. Quando vi, eu estava num furacão, absorvida, e minha saúde mental ficou desequilibrada.
PAS: São duas militâncias distintas aí, a feminina e a do Lula.
AC: É, mas está tudo interligado. Eu estava em todas as militâncias, todas. Tenho quatro casas em escorpião, se eu for fazer uma coisa eu vou fazer mesmo, de verdade. E a militância é assim, você puxa um fio de cabelo, sai a peruca. Você vai falar dos direitos das mulheres, começa a falar de LGBT, estrutura social e vulnerabilidades. Você entende que está tudo interligado. São os grupos vulneráveis, não é só a mulher. Dentro da mulher tem a mulher preta, a mulher periférica, a mulher trans, a mulher indígena. O abismo social é para todos esses grupos. São minorias políticas, não físicas, porque a maioria do Brasil é preta e pobre. Então vivi um período que fiquei realmente exausta, e não estava mais conseguindo cantar. Estava gritando. Porque eu recebia tanto pedido de ajuda… Se você perguntar para Luísa Mell o que chega de violência animal no celular dela, deve ser uma coisa insana. Quando você levanta uma bandeira tem uma demanda enorme, porque poucas pessoas levantam essas bandeiras – pessoas com real visibilidade, eu nem tinha muita. Mas fiquei em crise com isso, e sinto que Belchior me puxa. É uma música militante, que versa sobre o coletivo, a interseção, o social, mas ele me coloca num outro lugar, me recupera. Teve dia que recebi sete ligações pedindo shows, e eram shows gratuitos. Em dois anos, fiz mais de cem shows gratuitos. Chegou num ponto que os contratantes de shows que pagam não queriam pagar, porque eu fazia tudo de graça. Minha vida virou de cabeça para baixo, e o auge disso foi eu estar muito do lado do Lula naquele momento. Hoje todo mundo sabe, é muito claro, as pessoas que estão defendendo Bolsonaro são os bolsonaristas raiz mesmo. Aquele povo que estava meio à deriva, que entrou na onda, já percebeu a cagada. Mas naquele momento acho que éramos Chico César, Otto e eu ali, pelo menos em cima do carro de som. E eu era a única mulher. Foi uma experiência muito forte, mexeu muito com a minha vida particular, pessoal, financeira. Eu estava lidando com tudo sozinha, absorvendo uma violência que vinha. Virei um catalisador, canalizei essa demanda artisticamente. Eu era mais chamada para dar entrevista para falar de política do que de música. As pessoas não estavam mais me vendo como uma cantora, que é o meu ofício, o que sei fazer. Fiz o que fiz com muita entrega, não me arrependo, faria tudo de novo, mas é fato que me assustou quando às vezes não lembravam que eu cantava. Tive convite para me lançar como vereadora pelo Psol.
PAS: Não quis?
AC: Não, nunca me ocorreu isso, muito pelo contrário. Nada contra, José de Abreu agora se candidatou, mas o meu caminho é a música. Então precisei me fechar um pouco. Precisei me organizar, e aí Belchior surge. Ele exige muito tempo, dedicação, estudo, esforço, em diversos níveis, desde dicção. Eu, que sou uma cantora muito da melodia, do improviso, do jazz, do blues, parei para pensar na dicção. O disco Alucinação é uma obra-prima, mas tem momentos que você está mais mergulhado na energia da coisa do que entendendo direitinho o que ele está falando. Tem gente que me dá esse retorno, “nem sempre consigo entender tudo que Belchior está cantando”. É muita palavra, muito texto. Tenho sensação que ele escreve uma ideia, espreme e faz caber na música. Para que as pessoas entendessem as letras, eu precisava puxar para trás algumas coisas, os arranjos precisavam ser minimalistas. Se eu colocasse muita banda, muita fritação, ia destoar da live. Saí muito transformada, me curei.
PAS: E então veio o bolsonarismo. Que efeito ele teve na sua militância?
AC: Fiquei no front. Recebi muita agressividade, ameaça de morte. Em show me jogaram ovo, latinha de cerveja, pedrinha de cascalho. Eu estava falando sobre sexualidade feminina, Todxs é um disco que traz bem essa questão. Juntou com a minha militância. Minha mãe achava que eu ia morrer num show. Vi ela fazendo oração para eu voltar viva. Foi forte, uma experiência muito intensa. Mas Belchior tem um posicionamento muito claro das coisas, então não é que eu abandonei esse lado.
PAS: Você foi dar um respiro e encontrou Belchior?
AC: É, mas tudo em que a gente acredita está ali. E ele é um cara que nem acredita em política muito. Na entrevista icônica d’O Pasquim, fala que acredita numa utopia anárquica, que a gente não tem ainda escopo individual para viver uma anarquia, mas é o que ele gosta. Ele acha que, dentro da política, independente de esquerda ou de direita, o ser humano vai ser sempre seduzido pelo poder. Isso reverberou em mim de alguma forma. As músicas dele têm esse ideal, as coisas reais, “meu delírio é a experiência com coisas reais”. Ele é um cara da lida do dia a dia, tem essa coisa do “amar e mudar as coisas me interessa mais”, que é uma doçura. É lindo isso, e é doce, ele acredita no amor. Belchior tem essa rosa nas mãos, essa rosa vermelha. Ele dizia que a música, a arte, é maior que tudo: para que vou fazer política se a minha música perpetua ideias maiores? Isso foi uma coisa sábia dele, com que neste momento me identifico. Lula tem uma importância histórica, independente de se as pessoas vão votar nele ou não. A gente não pode deixar de reconhecer o legado dele. Na minha opinião foi o melhor governo que a gente teve, com problemas. Eu nem acho que seja possível no Brasil governar sem meter a mão na máquina corrupta. Dilma Rousseff é o melhor exemplo disso, tem uma honestidade comprovadíssima, e foi tirada, destituída do poder. Ela não jogou esse jogo. E acho que foi um ato muito misógino também esse golpe contra ela. Era muito porque era uma mulher também.
PAS: Sua resposta artística ao golpe em Dilma foi Todxs, que era um disco contra a misoginia acima de todas as coisas?
AC: A não política é um gesto político. É impossível. Seria muita falta de consciência da minha parte. Mas sou artista, sou emoção. Política é outro rolê, não sirvo para isso, cada um no seu quadrado. Sem dúvida, Todxs é um reflexo desse momento mesmo, sobre tudo, inclusive sobre legalização da maconha. A gente está dando passos lentos, mas está indo. Esse obscurantismo que nos encobre e asfixia neste momento é reflexo dos avanços que Lula e Dilma fizeram, é óbvio. É um backlash, um retrocesso que vem quando os pobres saem da miséria, começam a andar de avião, comprar casa própria, entrar na faculdade. É casa grande e senzala ainda, infelizmente. São outras formas, mas ainda é opressão, um backlash de opressão, espera aí, não vamos avançar tanto. É perpetuação de espaço de poder e privilégio, claramente. Vamos torcer para que o cenário mude mesmo, qualquer candidato para mim é melhor que esse. Obviamente torço pelo Lula, mas vamos entender o que vai ser.
PAS: Achei bastante militante o clipe de “Sujeito de Sorte”, com todos os grupos marginalizados representados, dizendo que não vão morrer neste ano.
AC: Como você vê, isso está em mim. Mas era um clipe mais militante ainda. A gente mexeu na edição, porque não era minha ideia voltar ao lugar da supermilitante. Era voltar para a cantora militante, talvez. Essa música não tinha outro caminho, eu não tinha como filmar um clipe, não podia filmar na rua, não tem grana para fechar um estúdio, fazer uma coreografia. Então falei: vou fazer um retrato histórico da pandemia, pedir para as pessoas gravarem com celular em suas casas, fazendo o que quiseram, sem nenhum direcionamento. Acho que cumpre esse papel, porque tem Elza Soares, Wagner Moura, Ney Matogrosso, artistas reconhecidos, que têm recursos, e tem artistas que são os que estão encarando de frente mesmo, os artistas indígenas, pretos, periféricos. E sabe que juntar a classe artística e musical é muito difícil? Como Elis falava, a classe musical é a mais desunida. É uma coisa rara e potente reunir, no caso a classe artística, porque tem muito ator e atriz ali também. “Respeita” reverbera até hoje, o número de views nunca estagnou. Acho que o clipe de “Sujeito de Sorte” é válido como esse retrato também. Elza Soares abre o clipe, é a voz que carrega mais bandeiras do Brasil hoje. No “Respeita” ela é o fecha, fala “respeita as mina, porra!”, e abre “Sujeito de Sorte”, acho muito legal. Com 80 anos vou poder dizer que tenho um clipe que Elza Soares fecha e outro que ela abre.
PAS: Gostei muito dos tratamentos de arranjos. Você já disse que a ideia era mesmo de fazer a palavra vir para a frente, mas mesmo assim são arranjos inventivos.
AC: Isso e a questão do meu canto, do meu grito. Para mim 41 anos bateu numa perspectiva em que gritar demais ensurdece, silencia. Ninguém quer ouvir ninguém gritando demais, ainda mais neste momento. Tive essa crise que vinha do canto militante, aguerrido, exausto. Chegou num ponto que parecia que eu estava gritando por todas as opressões. Cadê a doçura? Espera aí, deixa eu voltar. Na live eram dois músicos, que era o que eu podia pagar no momento ali, dois brothers. Como o disco é uma continuidade da live, eu não podia fazer completamente diferente de uma coisa que já tinha dado certo e já morava no coração das pessoas. Só que dei um passinho além, né? Tem algumas músicas com baixo e bateria, “Sujeito de Sorte” ganhou um beat, mas tem músicas que fui preciosista de manter como eram na live. Tenho ouvido o disco da Marina Sena, que é maravilhoso, mas é o disco do verão. Você dá o play, as músicas são gostosas, curtas, você vai na onda do rolezinho, da balada. Belchior não permite isso. Não é entretenimento, é questionar, pensar na vida. Eu quis esse caminho mais sutil. São dez baladas, e cantar balada é a coisa mais difícil que existe, pode perguntar para qualquer artista, da Ivete Sangalo ao Marcelo Camelo à Marisa Monte. Se você não entregar alguma coisa muito profunda sua, não vai emocionar ninguém. Para começar, você tem que se emocionar, isso foi uma coisa que aprendi no bar.
PAS: Como foi que, mesmo com o histórico anterior de intérprete, você conseguiu fazer uma estreia já mostrando a autora (com Amor e Caos, de 2007)?
AC: Quando a Sony e a Som Livre chegaram no bar, eu já estava num movimento de disco autoral, sozinha. Eu cantava de segunda a segunda nos bares, cada dia num, e depois fui contratada pelo Baretto. Até ali fiz muita coisa, cantei para duas pessoas, por prato de comida, fiz tudo que a faculdade da noite exige. Então quando a Sony me procura eu estou com umas demos, “Devolve, Moço”, a versão de “Coração Vagabundo” (1967, de Caetano), que já está no primeiro disco. Meu maior sucesso de audição é “Pra Você Guardei o Amor” (2009), que não é uma música minha, é do Nando Reis. Lembro que combinei com as duas gravadoras de irem no Baretto no mesmo dia, e não avisei que uma e a outra iam estar lá. Quando chegaram, se viram, e no dia seguinte eu tinha os contratos (ri). Acabei optando por assinar com a Sony. Mas quando a Sony me procurou falei que não queria a perpetuação da intérprete. Já tinha o disco da Céu. Eu queria fazer um negócio, embora hoje eu olhe para aquelas canções e ache muito ingênuas, muito distantes de uma boa composição. Mas já me perdoei por isso, estou em paz. Era o que eu consegui escrever naquele momento, ouvia muito Regina Spektor. Tem uma distância muito grande da compositora de lá para agora. Tenho escrito composições muito profundas para um próximo disco que vem aí, falando de temas da morte do meu pai, do meu irmão. Acho que isso já é um legado do Belchior na minha vida, dialogando com a compositora. Mas foi isso, quando a Sony fecha comigo, eu, toda metida, falei: assino com vocês, mas tem que ser estas músicas, quero meu disco autoral. O (diretor artístico) Bruno Batista falou que tinha que ter uma versãozinha pelo menos, porque as pessoas precisavam saber que eu era uma grande intérprete. Aí coloquei “Coração Vagabundo” e “Rainy Day Women #12 & 35” (1966), do Bob Dylan, que é um lado B, bem bootleg.
PAS: Esse já é um sinal dos tempos, não? Em 1988 Marisa Monte não conseguiu fazer um primeiro disco autoral.
AC: Marisa foi mais sábia do que eu. Acho que ela tinha consciência de que não era uma compositora madura ainda. Foi muito mais inteligente. Eu volto ao disco da Céu, com ele criou-se uma cena de compositoras. Na época da Marisa isso não existia. Se existisse talvez ela tivesse começado como compositora. Posso um dia perguntar isso para ela: Marisa, se houvesse um cenário de compositoras você teria lançado seu primeiro disco só como intérprete? Essa reflexão é muito boa, entender que não existia esse cenário. Tinha Adriana Calcanhotto, mas ela é pós-Marisa. Tinha Marina Lima, Rita Lee, coisas mais antigas, Dolores Duran.
PAS: Mesmo Adriana começou como intérprete, era a época das “cantoras ecléticas”.
AC: É, mas ela se firma com “Cantada”(2002), que é muito maravilhoso. Marisa está no cenário pós-Gal, Bethânia e Elis. O que vai ser daqui para frente? Talvez não fosse possível, mas acho que já vi em entrevistas Marisa dizendo que não se sentia pronta como compositora ainda. Cássia Eller mesmo é uma intérprete do começo ao fim, mas hoje a gente tem bootlegs de coisinhas que ela escreveu, que também não são grandes canções, sinceramente falando. Talvez ela quisesse desenvolver isso, mas não desenvolveu. Se ela tivesse investido, acho que escreveria coisas incríveis. Mas chegou num ponto para mim, da noite, que ser só intérprete me sufocou. Eu cantei tanto, aquilo estava me exaurindo e eu estava emanando uma energia para sair da noite. Eu tinha medo de ficar a vida inteira. Elas são importantes, conheço muitas cantoras que passaram a vida na noite, é um trabalho honesto, maravilhoso, mas algumas acabam ficando frustradas de não terem conseguido desenvolver uma carreira e crescer. É uma vida muito desgastante, você sai de casa à meia-noite e chega em casa às 5 horas da manhã. Eu saía do bar e ia para a USP fazer aula, e dormia na aula. E paga pouco, é muito sofrido. Eu ainda contava com o apoio de um marido que eu tinha na época, que me levava, me trazia, era superparceiro. Mas na mesma época apareceram Tulipa Ruiz, Mariana Aydar, Roberta Sá, todo mundo escrevendo. Foi muito legal essa cena de empoderamento feminino. Foi algo bonito, e vejo isso como um resultado também do governo Lula. A ascensão do rap também tem a ver com a estabilidade e o desenvolvimento da cultura nos governos Lula e Dilma. É uma ascensão da periferia cultural, e até do funk. Hoje eles são mainstream. Se você olhar o mainstream brasileiro no Spotify, as 50 mais tocadas, é rap, funk…
PAS: A avalanche trans de atualmente é um passo adiante nessa sequência?
AC: Também, isso é maravilhoso. No cenário de hoje, mainstream é Pabllo Vittar, Ludmilla, Iza, Anitta – que é mais padrão, mas vem da periferia. A gente tem um cenário de cantoras pop mainstream que não existia, não era possível sem esse governo. Para mim é um reflexo mesmo, a abertura de espaço, de acesso. E principalmente o rap, que na minha opinião hoje tem um papel que já foi do rock, de contestar, refletir socialmente. Na estética do rock hoje muito dificilmente você vai ver surgir algo como foi Los Hermanos, ou mesmo Titãs e Paralamas do Sucesso nos anos 1980. Rita Lee, que veio dos Mutantes e era muito mais rock’n’roll, hoje tem uma estética mais pop. Talvez ainda exista um cenário rock na gringa hoje, de festivais e bandas indie, mas no Brasil basicamente o rap é esse lugar de reflexão social que o rock já teve. Mas o rock do Brasil era um rock branco. Branco e classe média alta.
PAS: De algum jeito as mulheres, os pretos e as trans são os roqueiros de hoje?
AC: Também, isso é maravilhoso.
PAS: Você é uma roqueira quando quer, não?
AC: Acho que sim. Um amigo meu fala que sou uma roqueira com canto do blues. As cantoras que ouço mesmo para valer, que me emocionam há 20 anos, são Billie Holiday, Nina Simone, Aretha Franklin. Apesar de cantar em português, eu tenho essa escola. E no Brasil, a Rita Lee, que é uma roqueira. Rita para mim é o maior legado da música feminina que se impõe. Amo Marina Lima também, mas Rita é como Belchior, faz 50 anos e o bagulho está aí, faz sentido. São pessoas muito visionárias, muito geniais.
PAS: Pelo jeito podemos esperar para o futuro um Ana Cañas Canta Rita Lee?
AC: Ai, Pedro, não dá para meter outro desses, senão vou parecer aquela perigueira interesseira. Não, vou viver este momento nos palcos com Belchior, que acho que mereço, por todo esse trabalho, mas depois vou voltar para minha seara compositora. Já tenho canções que não só eu considero, mas amigos que já ouviram dizem que são minhas melhores músicas, e que isso já é um reflexo desse mergulho no Belchior. Refletiu muito positivamente na minha escrita. Foi a primeira vez que aconteceu de eu tocar músicas inéditas para os amigos e eles chorarem. Ah, meu Deus, acho que estou avançando na vida. A Céu também vai lançar agora um disco de versões, e acho que ela deve sentir o mesmo que eu, que é muito difícil fazer versão de músicas incríveis. Onde vou agregar? O que vou dizer que ainda não foi dito? Belchior também é rock, mas é um rock de Sobral (CE), um rock com um pé na terra de Sobral e um pé na cidade da babilônia de concreto de construção de São Paulo, onde ele morou e passou fome.
PAS: Você se formou em artes cênicas, fez filme, e agora está estreando no Canal Brasil o programa Sobrepostas. Qual é o exercício aí?
AC: Tem a ver com a questão de sexualidade de “Respeita” e Todxs. É mais um desafio no meio da pandemia, de apresentar um programa, mas ao mesmo tempo atuar como uma figura facilitadora. É uma conversa, uma troca. O primeiro episódio, da Luedji Luna, tem um tema tranquilo, primeiro relacionamento afrocentrado, no caso dela. Mas tem temas tipo o de Marina Vergueiro, soropositiva. Como conduzo essa conversa? Passei por um episódio recente que achei que podia ter me contaminado. Tive uma relação sem camisinha e tive uma IST, com sintoma de contágio de HIV. Tive um período no limbo, e quando fui gravar esse programa tive uma crise de choro. Foi mais um aprendizado e transcendência. Tem mulheres muito desenvoltas, professoras de sexo tântrico, mas tem experiências muito traumáticas também, de mulher trans, Fernanda Bourbon. Teve BDSM, a menina falou que o marido podia perder o emprego por ela estar falando comigo sobre isso. Essas assuntos em 2021 ainda são tabu, ainda não estão naturalizados. Foi lindo, o programa é lindo. O episódio 2, que já está no Globoplay, é com Josyara, que já é mais dentro do que o programa vai trazer ao longo dos 13 episódios. O programa da Luedji é lindo, mas é quase uma introdução.
PAS: Para não assustar logo de cara?
AC: É, exato, tem essa construção de arco narrativo. Mas tem episódios maravilhosos sobre assuntos que são hipertabu, ménage, BDSM, sex toy. Acho muito importante a televisão brasileira acolher um programa como esse, que também tem cenas ficcionais eróticas superquentes – e tem mesmo, mostrando pau, boceta, bunda, peito, tudo. A gente quer desconstruir a narrativa pornográfica, que é muito fake, performática, machista, quase misógina. A mulher no pornô não recebe sexo oral, não goza. Quem goza é o homem, que ejacula, pelo menos no sexo hétero pornográfico. É uma equipe toda de mulheres, com mulheres pretas, trans. A gente queria construir uma nova narrativa de pornográfico-erótico. O erótico entende a subjetividade. O sexo é a experiência mais idiossincrática e subjetiva possível e é a coisa que a gente mais normatiza na sociedade. É o ato de se despertencer, adoro essa palavra, e existe um padrão, que vem muito da pornografia, que os meninos crescem assistindo e reproduzem com suas parceiras. É péssimo para todo mundo, horrível. O sexo é pele, corpo, mas também é mente, espírito, a experiência que mais abre todos os leques humanos de uma vez, ali, agora. Os homens são muito capazes de ter uma experiência só corpórea, fisiológica. As mulheres estão começando a viver isso agora com a liberdade que o feminismo proporciona. Cheguei a entrevistar uma pessoa não-binária, o que me exigiu muito estudo, porque não tem nada a ver comigo, que sou uma mulher cis. Foi muito rico. É uma conquista para todas as mulheres e também para os homens que estão abertos à desconstrução, a entender a sexualidade feminina como muito mais complexa do que eles imaginam. As mulheres lésbicas me parecem mais à frente na vivência sexual, por tudo, por não ter a opressão do falo. São mais livres para falar, contar, já viveram experiências mais ricas do que mulheres que são só heterossexuais. A maioria das convidadas é bi, algumas se definem como pan e algumas são homossexuais.
PAS: E você, como se define?
AC: Me defino como bi. Tem um momento que tenho mais libido com mulheres e tem um momento que tenho libido mais com homens. É cíclico. É algo que não sei explicar.
PAS: E a atriz, onde está atualmente?
AC: Você sabe que recebi um convite para uma coisa que vou contar em primeira mão, para atuar como atriz de novo numa série? Não posso falar o nome, divulgar, não assinei contrato ainda. Mas é uma coisa bem legal, um elenco bem foda e uma responsa também. Vou fazer uma participação na primeira temporada, mas na segunda ela vira uma das protagonistas. Para eu segurar essa marimba vou ter que estudar. Sou cinéfila, tenho muito respeito por essa profissão, não consigo decorar texto. Não sei como as pessoas decoram texto de monólogo, cara.
PAS: Mas música não é tão difícil de decorar quanto?
AC: Mas a música tem letra curta – no caso do Belchior, é longa -, uma melodia, começo, meio e fim. Mas um monólogo de uma hora, ou mesmo numa peça do Beckett, Esperando Godot, que são dois personagens, eu acho foda. Não tenho essa supermemória. Posto isso na mesa, aceitei o convite para fazer a série. O filme Amores Urbanos (de Vera Egito, 2016, no qual Ana interpreta uma cantora lésbica que não se assume publicamente) é indie, cult, é meio cinéfilo. Mas a série é hiperpop, com elenco global. É para pegar uma personagem parecida comigo, bi, meio consciente de tudo, super-ativista. Então aceitei, ainda estamos negociando agenda, mas acho que vai rolar. Só por Deus. Na faculdade eu já sabia que não tinha talento para ser atriz, por isso fui cantar no bar. Mas quando é uma coisa que tem a ver comigo talvez dê certo. No filme da Vera faço uma personagem escrota, que todo mundo odeia. Julia Lemmertz, uma atriz incrível, me falou: “Você fez o seu papel muito bem. Se as pessoas estão te odiando é porque você é atriz. Se você não tivesse convencido, ninguém te odiaria”. Guardei isso no potinho da vida. A personagem é terrível, mas é um retrato do real. Hoje menos, mas quando o filme foi lançado bem naquele nicho Augusta deve ter muita gente que passou por isso, “sou gay, mas tenho medo de assumir porque existe muito preconceito”. Agora a gente vai ter remake da novela Pantanal, onde a protagonista é bissexual assumida e o protagonista é homossexual assumido, Alanis Guillen e Jesuíta Barbosa. Ele fala que é bi, são dois atores bissexuais protagonistas de novela da Globo, em papéis super-hétero. Eu amo essa novela. Alanis é minha amiga, 23 anos, é um furor, nasceu para fazer a Juma. Agora, com Lan Lanh, Nanda Costa, Maria Casadeval, Reynaldo Gianecchini, tem muita gente que está construindo essa abertura.
PAS: Mesmo à revelia do bolsonarismo, estamos indo para frente?
AC: Às vezes, nos momentos de maior recrudescimento, acontecem conquistas, talvez até por resistência mesmo. Estou acompanhando as entrevistas que Wagner Moura está dando sobre Marighella. Me vejo nele em 2017, Wagner realmente vestiu, está botando a boca no trombone, chamando de canalha, sem medo, destemido, corajoso e aguentando o tranco. É isso, bicho, nem imagino o que vão fazer com ele. É que ele não está nas redes sociais, sabiamente deve se proteger disso. É que, veja, Wagner está morando em Los Angeles, então ele chegou chegando. A gente aqui já está no ponto de exaustão. Lá ainda elegeram Joe Biden, querendo ou não é um respiro. A gente aqui está exausto, se arrastando, não aguenta mais. Ele chegou com a energia do Biden. Eu não tenho mais esse pique, acho que ninguém tem, estamos exauridos.
PAS: Não quero ser xereta, mas você perdeu um irmão recentemente?
AC: Perdi. Não recentemente, tem oito anos. Teve uma fase que perdi pai para o alcoolismo, perdi avó e perdi esse irmão, uma perda supertrágica. Ele tinha 24 anos, era atleta, entrou no mar para tirar areia da bermuda, em Paúba. É uma praia muito traiçoeira, tem muito afogamento lá, e ele não conseguiu sair desse buraco. Era muito jovem, muito lindo, muito doce. Gabriel Medina estava na praia, tentou salvar meu irmão, mas não conseguiu. Ele ficou no mar uma semana até os bombeiros encontrarem o corpo. Foi muito horroroso, a experiência da morte ainda é a coisa mais difícil de todas. Também é um tabu, também se fala pouco sobre, o que ajuda a construir o tabu.
PAS: Conseguimos evitar o assunto nas condições de hoje, com 600 mil mortos…
AC: É. Não que seja possível naturalizar a morte, mas sou bastante da espiritualidade. Acredito muito em vida após a morte, em carma, em várias vidas. Estou ali entre a umbanda, o espiritismo e o budismo. Gosto muito dessas três religiões e filosofias. Acredito que os espíritos estão por aí e que a consciência é eterna. Você sabia que eu passei por uma EQM (experiência de quase-morte)? Tive uma parada cardíaca, saí do corpo e voltei. Foi muito louco. Fui para o hospital, tive um troço, o coração parou de bater, e os médicos me reanimaram.
PAS: Que idade você tinha?
AC: Foi em 20 de novembro de 2017. Estava passando mal, comecei a tremer, deitei no chão, não conseguia falar direito. O fato é que ninguém sabe o que tive, fiquei uma semana internada fazendo exames. Mas tive realmente uma parada cardíaca, o médico me deu um soco aqui no esterno, e nesse momento em que senti que saí do corpo eu fui para cima. Vi uma luz, sei que é uma coisa clichê, mas realmente vi. Mas não apareceu nenhum anjo, ninguém. Só vi um arco iluminado, claro. Quando o médico me deu esse soco, pensei “eu vou voltar, eu vou voltar”, e voltei. Acordei, fiquei super-aérea, mas voltei.
PAS: Todxs foi composto depois desse episódio?
AC: Foi. Mas a música que fala sobre a experiência vem no disco depois do Belchior. Estou reunindo as músicas mais profundas, e lá tem também uma música que escrevi para meu irmão quando ele morreu, e ficou engavetada oito anos. Nasceu como uma versão de “Round & Round” (1969), do Neil Young, mas não consegui aprovação do Neil Young. Ele não aprova versão nenhuma de música dele, eu não sabia, engavetei. E agora desengatei a letra e refiz a melodia, oito anos depois. Chama “Do Lado de Lá”, fala sobre morte e espiritualidade. Essa é uma das que falei que quando canto as pessoas choram. A gente tem muito poucas músicas que falam sobre morte. Gil fez uma, tem um lado B do Renato Russo, mas praticamente nenhuma música mainstream pop. Não pop, que não dá para ser pop falando de morte, mas uma música que fale sobre morte. Fiz sem me dar conta disso, para o meu irmão mesmo. Mas percebi o que a música causa nas pessoas, por isso, porque é um assunto tabu. E fiquei pensando, seria muito legal, quando a gente perde alguém, ter uma música que pudesse ouvir nesse momento, que entendesse o que você está sentindo. Seria muito bonito que a gente tivesse uma música que acolhesse essa dor. É um momento de tanto desespero que você procura Sêneca, procura coisas para ter conforto, e não tem. Essa música pode ser algo muito bonito para o futuro, porque fala mesmo dessa passagem. Vai vir um conjunto de canções bem diferente das coisas que já lancei, acho.
PAS: Vão ser músicas para acalentar a gente no pós-pandemia?
AC: É, acho que vai ser forte. Cantar essas músicas vai ser meio catártico. Já sinto isso nas pequenas coisas que fiz. Elas fazem muito sentido, realmente.
Ana Cañas Canta Belchior. De Ana Cañas. Guela.