Sérgio Mamberti, de 82 anos, gostava de fazer planos. Era assim desde quando ele se descobriu ator com um pontapé na bunda para entrar no palco, em sua estreia amadora no ano de 1956, na Aliança Francesa, em São Paulo. Seu debute foi Révélation, de Tristan Bernard, interpretada em francês. Mas nos últimos meses o guerreiro, ativo e sereno Mamberti se dedicou apenas a lutar contra uma série de intercorrências médicas. Internado com uma disfunção renal, chegou a ser intubado quando seus pulmões foram afetados e contraiu uma pneumonia. Ficou em uma UTI por duas semanas e teve alta. Na madrugada desta sexta-feira (3), o ator Mamberti, novamente internado, morreu em decorrência de falência múltipla de órgãos.
Mamberti nunca escondeu que era um ator político. Falava com orgulho de sua trajetória no Partido dos Trabalhadores (PT) e de seu papel como presidente da Fundação Nacional de Artes (Funarte). A militância sempre foi coerente com sua carreira artística, abraçada ao lado de seu irmão, Cláudio Mamberti, e por influência dos pais. Desde sua estreia profissional, com a peça Antígone América, dirigida por Antônio Abujamra, Sérgio Mamberti viveu personagens marcantes no teatro, no cinema e na televisão, alguns de mais fácil lembrança do que outros.
Encabeçam a lista dois personagens televisivos, o Dr. Victor, do infantil Castelo Rá-Tim-Bum, um marco na televisão brasileira, de 1994, e o mordomo Eugênio, na novela Vale Tudo, de 1988. Em entrevista, Mamberti citava ainda o vilão Dionísio Albuquerque, da novela Flor do Caribe, de 2013, um de seus últimos trabalhos na TV Globo. No teatro, ele gostava de lembrar de suas atuações como os personagens O Juiz, em O Balcão, de Jean Genet (interpretação elogiada pelo próprio autor) e Veludo, da peça Navalha na Carne, de Plínio Marcos.
Em sua carreira, Mamberti contabilizou quase 50 filmes, 30 telenovelas e mais de 80 peças teatrais, gênero do qual nunca se afastou. A última montagem foi O Ovo de Ouro, de Luccas Papp, encenada em 2019. O ator foi casado entre 1964 e 1980 com Vivien Mahr, que conheceu no teatro. Teve, com ela, três filhos, Fabricio, Duda e Carlos. Depois da morte dela, conheceu Ednardo Torquato. Na autobiografia, Sérgio Mamberti: Senhor do Meu Tempo (Companhia das Letras, 2021), escrita em co-autoria com o jornalista Dirceu Alves Jr., ele assume sua bissexualidade e fala da morte do companheiro em 2019.
Leia a seguir o perfil de Sérgio Mamberti, texto publicado em 2019 na revista CartaCapital e expandido neste FAROFAFÁ:
Ele rouba a cena
O ator Sérgio Mamberti, homenageado pelos 80 anos no Grande Prêmio da Crítica APCA, mescla longa carreira artística com a militância política
Por Eduardo Nunomura
Aos 80 anos, o ator Sérgio Mamberti está preocupado com a aposentadoria. Não a sua, já que está a mil, em cartaz em São Paulo pela quinta temporada com Visitando o Senhor Green, peça que acabou de representar o Brasil no prestigiado Festival Tchecov, no Teatro Maiakovski, em Moscou. Ele está também preparando duas novas peças para 2020, uma exposição de colagens e terá uma biografia sobre sua carreira lançada pela Edições Sesc. Mas o que tem lhe perturbado é o destino de milhões de brasileiros pela acelerada destruição das políticas públicas, a previdência inclusive, em prol de um projeto liberal de governo. “Existe uma política de extermínio cultural, de fazer com que a cultura perca seu papel de agente transformador, sendo que há um desmonte sistemático de todas as conquistas dos últimos anos, e não só as do nosso governo”, aflige-se Mamberti, em entrevista a CartaCapital.
Nascidos em Santos, filhos de pais agitadores culturais, Sérgio e o irmão Claudio Mamberti construíram carreiras artísticas ligadas à política. Os dois ajudaram a fundar o PT e participaram ativamente da elaboração dos planos de cultura do partido. Claudio, falecido em 2001, não chegou a ver Luiz Inácio Lula da Silva chegar à Presidência, mas o caçula dos Mamberti ficou por 12 anos em Brasília, em funções-chaves do Ministério da Cultura, e não hesita um segundo em clamar publicamente por “Lula Livre”, como o fez na homenagem do Grande Prêmio da Crítica APCA 2018. “Falei dos meus filhos, que estão, de certa maneira, continuando meu trabalho, falei da Cacilda, que assumiu uma liderança de classe, de consciência, e falei de outro homem que foi meu grande inspirador e hoje está privado de sua liberdade.” O custo do posicionamento é um tipo de degredo conhecido: no jornal do dia seguinte, seu nome não aparecia entre os premiados.
Com seu jeito aparentemente tímido, Mamberti fala sem parar sobre política e cultura. Em 63 anos de carreira, consegue fazer um balanço repleto de histórias que parecem fruto da imaginação. Lembra, por exemplo, da “Patinha”, uma vizinha com quem ia a pé para o cineclube de Santos. Ela já era uma “senhora” aos olhos do menino cinéfilo, e uma comunista então casada com um crítico literário do jornal A Tribuna, de Santos. “Patinha”, que apresentou o teatro a ele e ao irmão, era ninguém menos que Patrícia Galvão, a Pagu, escritora, poeta e musa dos modernistas. Desde pequeno, Mamberti aprendeu a falar inglês e francês, servindo de intérprete para o pai, Ítalo, um ex-revolucionário de 1932, que valorizava a cultura. Eram ele e a mulher, Maria José, que traziam artistas renomados para o Clube Internacional de Santos, como Procópio Ferreira ou Glenn Ford, que esteve no Brasil para filmar O Americano, em 1953.
Contemporâneos de Plínio Marcos, outro santista, os irmãos Mamberti entraram para o Partido Comunista e decidiram seguir a carreira artística. Plínio, ainda adolescente, primeiro foi para o circo e depois, também influenciado por Pagu, começou a se envolver com o teatro. Fã do cineasta russo Sergei Eisenstein, Sérgio Mamberti imaginava que poderia ser um diretor teatral ou de cinema, mas isso até sua estreia amadora na Aliança Francesa, de Santos, com uma comédia do francês Tristan Bernard. Antes de entrar no palco, ele ficou paralisado na coxia. “Vi uma ‘lâmina de vidro’, travei, mas o diretor me deu um pontapé na bunda e me jogou em cena. Fui aplaudido e pensei: ‘Não, gente, eu sou ator mesmo.’”
A primeira peça serviu de impulso para que Mamberti tentasse ingressar na célebre Escola de Arte Dramática da Universidade de São Paulo, fundada em 1948 por Alfredo Mesquita. Eram cerca de 500 candidatos para 50 vagas. Teve a ajuda providencial de Myriam Muniz, já veterana, que o ajudou com a prova de mímica. Mamberti tinha ainda de apresentar a cena de um texto e escrever uma redação. Passou entre os dez primeiros. Foi nessa escola que conviveu com mestres como Gianni Rato, Alberto D’Aversa, Décio de Almeida Prado, Gilda de Melo e Souza e Sábato Magaldi. Ficou amigo de alguns professores, como Maria José de Carvalho, que ensinava canto e dicção e era casada com Diogo Pacheco, o maestro. Na casa deles, pode apreciar as canções da Renascença espanhola. Frequentava ainda o Teatro Municipal, onde via apresentações de Marcel Marceau e do Piccolo Teatro de Milão, notável grupo italiano criado em 1947 por Giorgio Strehler e Paolo Grassi, como contraponto ao fascismo.
Mamberti estreou em 1961 com Antígone America, com Ruth Escobar e direção de Antônio Abujamra, o Abu. A montagem refazia o mito de Antígona na América do Sul, uma obra de contestação do poder. Nos anos 1960, a capital paulista vivia a efervescência da vanguarda, com o fortalecimento ou surgimento de grupos politizados como o Arena, de Augusto Boal, o Oficina de José Celso Martinez, e o Decisão, comandado por Abu. Mamberti logo se integrou a esse último grupo, que nasceu em 1963 para popularizar o teatro artístico. Era um dos principais intérpretes do Decisão, onde fez Os Fuzis da Senhora Carrar. Em O Inoportuno, texto de Harold Pinter e dirigido por Fauzi Arap, não se esquece da dificuldade em fazer o papel de um caminhoneiro. Pegou até carona na estrada. Com a peça, levou todos os prêmios daquele ano.
Em 1967, recebeu o convite para fazer O Rei da Vela, no Teatro Oficina. Por não ser integrante do grupo, iria receber um salário de 400 cruzeiros. Acabou trocando papéis com Edgar Gurgel Aranha, que havia criado o personagem Veludo, de Navalha na Carne, nas leituras na casa de Cacilda Becker, mas acabou cedendo o personagem para Mamberti. “As pessoas falaram: como eu, que tinha acabado de ganhar o Saci, iria fazer um viado e ficar 15 minutos em cena? Aí falei: ‘Mas é o Veludo’. E era uma honra fazer o Plínio”, lembra. A peça, com Paulo Villaça e Ruthinéa de Moraes, ficou dois anos em cartaz e rendeu polpudos 3 mil cruzeiros por mês a Mamberti.
Três anos depois, a consagração pessoal veio quando o francês Jean Genet, autor de O Balcão, veio ver a montagem brasileira dirigida por Victor Garcia. Na casa de Ruth Escobar, Genet o elogiou. “Ele me disse que o ator que interpretou o juiz do jeito que imaginava tinha sido eu. Agora não tenho mais nenhuma testemunha, porque um outro amigo que estava lá e a Ruth já morreram, então posso contar qualquer mentira”, diz, rindo. “Foi uma conquista desse nível, ma-ra-vi-lho-so”.
São histórias improváveis como essas que marcam a trajetória de Mamberti. É como um baú pronto a revelar sempre uma surpresa. Como foi o encontro que teve com Jean-Paul Sartre, em visita ao Brasil, e com quem ficou conversando horas numa praça ao lado da Biblioteca Mário de Andrade; a façanha de ter hospedado em sua casa os jovens Baby Consuelo e Pepeu Gomes, na época na gravação de Acabou Chorare, dos Novos Baianos, ou os integrantes do Living Theatre, expoente grupo teatral experimental novaiorquino da contracultura. Sua residência, ao lado do Teatro Ruth Escobar, era uma espécie de embaixada dos artistas.
Pai de três filhos, a quem chama pelos nomes (Fabricio, Duda e Carlos), e não por números como 01, 02 e 03, Mamberti tem no currículo mais de 80 peças teatrais, quase 50 longas-metragens e 30 telenovelas, com participações desde a época das TVs Excelsior e Tupi e depois na Globo e Cultura. É lembrado por personagens que roubam a cena, literalmente, como o do copeiro Eugênio, da novela Vale Tudo, o sábio Doutor Victor, do programa infantil Castelo Rá-Tim-Bum, e o vilão Dionísio Albuquerque, da novela Flor do Caribe. Quase todos personagens que se tornaram seu alter-ego. Frequentemente confundido nas ruas por esses papéis, ele viu a cena se repetir com o senhor Green, atualmente em cartaz no Teatro Renaissance, e o advogado Alfieri, em Um Panorama Visto da Ponte, texto de Arthur Miller, montagem vencedora dos prêmios APCA e Shell. “Para mim, não existem pequenos papéis. Claro que há personagens protagonistas, e você pode desenvolver, mas tudo depende de como se coloca no processo de criação.”
Multiversátil, Mamberti foi ainda de dirigente artístico do Teatro Crowne Plaza, uma extravagante sala que, nos anos 1990, chegava a ter cinco espetáculos num único dia, aos cargos de secretário de Música e Artes Cênicas, da Identidade e da Diversidade Cultural, de presidente da Fundação Nacional de Artes, e, por fim, de secretário de Políticas Culturais. Atuou nos governos de Lula e Dilma Rousseff. É com essa experiência que se diz atônito com o que vê ao seu redor: “Para destruir é muito rápido. Isso é chocante para mim, porque trabalhamos o tempo inteiro no fortalecimento de uma institucionalização de um projeto cultural brasileiro. Esses movimentos liberais são uma contraposição a todas as conquistas históricas e uma reação às mudanças. Mas eu não sou pessimista, estou com 80 anos. Isso é luta, é conscientização, é processo, que devemos construir”, finaliza.
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