Na sexta-feira, 3, moradores e ambientalistas se reuniram na Vila Mariana para "inaugurar" as nascentes de um rio; a persistência desse filete de água determina os caminhos do futuro para a metrópole

Em São Paulo, inaugurações de prédios, condomínios, edifícios, shoppings, showrooms e monumentos, tudo isso é coisa corriqueira. Agora inauguração das nascentes de um rio, aí já parece algo delirante. Pois bem: às 15 horas da última sexta-feira, 3 de setembro, a pouco mais de uma quadra da movimentada estação de Metrô Vila Mariana, ao som de um recital de música instrumental feito por um duo de flauta e violão, cerca de 40 pessoas compareceram à insólita cerimônia de inauguração das nascentes de um rio.

Trata-se do início do percurso do famoso Córrego do Sapateiro, uma das fontes fundamentais de abastecimento de água do Lago do Ibirapuera, a cerca de três quilômetros dali. O córrego aflora em filetes esparsos do chão na rua Luftalla Salim Achoa, uma travessa da rua Capitão Cavalcanti, e também na rua Rino Pieralini. Lembra aqueles vazamentos da Sabesp, mas é água cristalina e brota com constância – recentemente, a remoção pela administração pública de alguns paralelepípedos da nascente mais conhecida do Sapateiro acabou revelando outras três nascentes novas do rio.

Ao mesmo tempo em que se acumulam as más notícias em relação à água de São Paulo, como os reportes que anunciam reservatórios vazios e a notícia de que a capital paulista hoje possui menos 20% água do que tinha há 8 anos (conforme o Instituto de Energia e Ambiente (IEE) da USP), a persistência da vida do Sapateiro renova o entusiasmo dos ambientalistas que militam pela sua preservação. Apenas três dias antes da cerimônia de “inauguração” das nascentes, chegou às associações de moradores da Vila Mariana um laudo da Divisão de Vigilância de Saúde Ambiental da Prefeitura de São Paulo sobre o teor da água que é produzida ali, e o resultado é mais um espanto: é de qualidade satisfatória. A descoberta disso no mesmo dia em que o bairro completava 126 anos de existência foi considerada como “um presente” pelos moradores. Ainda se fará uma análise mais aprofundada para se saber se é própria para consumo humano, mas já é uma alegria saber que não é contaminada.

Em abril, a imprensa paulistana noticiou maravilhada a existência de vídeos que mostravam peixes nadando no poluído Rio Pinheiros, algo que não se via há décadas. Especialistas comentaram que os peixes teriam chegado ali vindos de afluentes com águas limpas, principalmente o Córrego do Sapateiro, e localizaram pontos do Pinheiros em que a oxigenação da água permitia a ambientação dos animais. A descoberta, que provocou euforia entre cidadãos mais esclarecidos da metrópole, foi atribuída à ação de quase três décadas de recuperação de córregos e rios urbanos na cidade de São Paulo, um trabalho comunitário, de persistência, tenacidade e paciência.

A capacidade de luta dos movimentos como o da Vila Mariana, embora exitosa, é testada a todo momento. O percurso do Córrego do Sapateiro está sendo ameaçado pela voracidade dos novos empreendimentos imobiliários que são anunciados, sem critério e sem a devida fiscalização, no caminho até o Parque do Ibirapuera. Novas torres com garagens subterrâneas que concretam o subsolo surgem a todo momento e ameaçam as águas subterrâneas – a Vila Mariana tem 15 nascentes ativas.

“Conversei com alguns especialistas que me disseram que as construções desordenadas podem mudar o curso da água e comprometer as águas que alimentam os lagos do Parque Ibirapuera”, contou Denise Delfim, editora do jornal Pedaço da Vila e líder da resistência ambiental, uma das pessoas que estão à frente do movimento de recuperação das nascentes (ela iniciou esse trabalho em 2016).

Há momentos em que o poder público demonstra indiferença total à luta desses coletivos. Não é o caso, ao menos nesse instante, do que acontece no Córrego do Sapateiro: na reabertura das nascentes, o subprefeito da Vila Mariana, Luis Felipe Miyabara, estava presente para referendar seu apoio e inaugurar a obra que tinha sido feita ali para iniciar o trabalho de preservação. Duas crianças, Joaquim e Maria Teresa, descerraram a fita no ato que devolveu a responsabilidade da nascente à população.

Segundo informou o jornal Gazeta de S.Paulo, o local da nascente ali na Vila Mariana recebeu uma intervenção, a instalação de um piso de paralelepípedos intertravados para a água correr (são feitos com blocos de cimento com pequenas saliências, o que impede que fiquem impermeabilizados, bloqueando a passagem da água para o solo). O vão entre os tijolos é completado com areia, assim o sistema fica travado sem perder a permeabilidade. A administração compreende que manter a possibilidade de a água voltar para o solo é importante para evitar alagamentos durante períodos de chuva ou cheias – é um avanço gigantesco, já que esse é um debate que parecia impossível de ser encarado pela administração pública há uns 10 anos.

 

O repórter acha de bom tom informar ao leitor que vive na Vila Mariana, mas que não vê conflito de interesse na notícia porque não se trata de advogar por um benefício pessoal – a sobrevivência do Lago do Ibirapuera é interesse de toda a cidade, e a questão da água diz respeito a todos os cidadãos e cidadãs do País.
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