Maria Bethânia & José Ramos Tinhorão

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Maria Bethânia
Maria Bethânia - foto Jorge Bispo

Praticamente simultâneos, o lançamento do novo disco da cantora baiana Maria BethâniaNoturno, e a morte do historiador e crítico musical santista-carioca-paulista José Ramos Tinhorão (1928-2021) são dois acontecimentos que se entrelaçam e se confundem na cabeça de quem ainda não desistiu de amar a afamada música popular brasileira, mesmo depois de tanta água turbulenta que já passou por debaixo da ponte.

O exercício-brinquedo é imediato e a gente se põe a imaginar: o que sentiria, pensaria e diria Tinhorão ouvindo Noturno, se ainda estivesse vivo, vivaz e escrevendo críticas musicais (esse gênero para-jornalístico que aparentemente morreu bem antes da MPB e de Tinhorão)? Fiquei com vontade de brincar, para tentar rir em vez de chorar, da morte e de tudo que vem acontecendo no país de Bethânia e Tinhorão.

Noturno, apesar da capa minimizada em branco-paz, é tudo que o título promete, de acordo com os sensos comuns. Noturno: sombrio, escuro, preto, amedrontador, mortiço. É pau, é pedra, é o fim do caminho – é bossa nova e Tom Jobim Vinicius de Moraes João Gilberto, Tinhorão detestaria. “A estrada desapareceu/ restei o que sobreviveu/ agora só eu e meus breus/ só eus”, canta Bethânia em “A Flor Encarnada”, da herdeira emepebista gaúcha Adriana Calcanhotto.

Noturno amanhece com “Bar da Noite” (1953), da cantora e compositora desbravadora Bidu Reis e de Haroldo Barbosa, e popularizada em 1957 pela carioca pré-bossa-novista Nora Ney. “Você sabe bem que é mentira/ mentira noturna de bar/ bar, tristonho sindicato/ de sócios da mesma dor/ bar que é o refúgio barato/ dos fracassados do amor”, tinhoriza Bethânia, com ares de primeira pessoa do singular esparramada entre garrafas alcoólicas. O que será que Tinhorão diria? Um bolerinho radiofônico vagabundo dos anos 1950? Bethânia dedica a faixa a ela mesma e a seus recôncavos, nos quais habitam Nora Ney e Bidu Reis. Uma curiosidade cortante: consta que, no início dos anos 2000, Bidu Reis (morta em 2011) atuava como presidenta da Associação das Donas de Casa da zona norte da cidade do Rio de Janeiro.

“O Sopro do Fole” vai ao polo oposto do “Bar da Noite”, da tradição ao pós-tudo, composta por um dos sobrinhos de Bethânia, Zeca Veloso. Talvez Tinhorão até gostasse, flagrando-se envolvido pelo acordeom nordestinizado do paulista Toninho Ferragutti. Assim como em Bethânia a sanfona puxa para a tradição pernambucana de Luiz Gonzaga, em Tinhorão talvez puxasse para a tal cultura popular brasileira, concebida e operada por brasileiros servis, subalternizados, que na opinião elitista dele eram “iletrados”, “ignorantes” ou coisa parecida. No instante em que soubesse que “O Sopro do Fole” tem o DNA de Caetano Veloso, o velho crítico ranzinza explodiria e mudaria instantaneamente de opinião sobre o falso baião. Ou não. No final das contas, a rinha simbólica entre João Gilberto, tropicalistas e Tinhorão também escondia no subtexto um racha entre nordestinos e sudestinos, tradição erguida sobre toneladas de tradição (como diria Tom Zé), que hoje sabemos largamente desfavorável para o sudestino.

Aposto que Tinhorão implicaria com “Lapa Santa”, do sambista de roda baiana/o Roque Ferreira com o violeiro paulista Paulo Dafilin, ex-arranjador do paulista superlativo Jair Rodrigues. O arranjo de cordas seria ouvido como um pastiche pseudo-erudito embalado por versos pega-povo como “louvado seja o velho Chico/ espelho d’água que se move manso/ feito notícia boa em remanso”, uma mistura sem o menor cabimento. Pior: em “Lapa Santa”, as cordas têm de conviver com sintetizador e baixo elétrico, gororoba de Heitor Villa-Lobos com Raça Negra, essas bobagens da sociedade de consumo que norte-americanizaram a música brasileira, principalmente a partir da jovem guarda e da tropicália.

É claro que ele conseguiria, mas até para Tinhorão seria difícil encontrar defeitos no samba popularíssimo (que provavelmente não será ouvido por muita gente) “De Onde Eu Vim”, outra composição de Paulo Dafilin. Mas não seria delírio supor que o senhor da ranzinzice engasgaria ao engolir o sapo de um violeiro paulista escrever um samba carioca percussivo falando “quando eu vim da Bahia”, “batucada”, “dendê”, “capoeira” e “maculelê”… Mas puxa, Tinhorão, quem senão Maria falaria de “capoeira de maculelê” em pleno 2021? (Um funkeiro carioca, talvez?)

Bethânia derrama a voz, tristíssima, n'”A Flor Encarnada” de Calcanhotto, secundada apenas pelo piano de Zé Manoel. O algoz pularia essa faixa, ou acusaria algum plágio da bossa açucarada de… Tom e Vinicius? Segue-se “Vidalita”, da espanhola Maria Teresa Martín Cadierno (ou Mayte Martín), compositora e cantora de flamenco. Utopia de re-união latino-americana, como sonharam Bethânia e toda a MPB dos anos 1970? Ou bobagem europeia para tocar no rádio (que rádio?)? Bethânia dedica “Vidalita” aos resignados.

E logo em seguida emenda com “longe de qualquer perigo/ eu me afundo num tédio/ que vida vazia/ sem nenhum mistério/ na dura apatia/ de um controlador“, versos e melodia (bem velha guarda) de Tim Bernardes, integrante da banda O Terno (banda? rock’n’roll? Tinhorão bate em retirada) e, de acordo com o DNA, filho de Maurício Pereira, d’Os Mulheres Negras, da vanguarda paulista. A música se chama “Prudência”. O crítico marxista escreveria um livro inteiro sobre a vida vazia, a apatia, o tédio (a depressão?), a coisificação que movem e paralisam os autômatos hipercapitalistas da “maior cidade da América do Sul”. “Música Música” (mais uma de Roque Ferreira)? Nada a declarar.

Vem “Cria da Comunidade”, mais um samba, desta vez na linhagem de Zeca Pagodinho (talento popular “autêntico”, tolerado por Tinhorão), sob a pena de Serginho Meriti Xande dos Pilares, esse também vocalista ao lado da anfitriã. Mas cria da comunidade, essa senhora tributária da música de apartamento que infesta os salões da elite subalterna brasileira desde tempos coloniais? Nem morta. Essa senhora está agora querendo imitar Maria Rita, a filha de Elis Regina?

A coisa fica séria na segunda faixa de Adriana Calcanhotto, “Dois de Junho”, prova cabal da morte da canção de que falou Tinhorão. Maria menos canta que declama este rap lento (diria o temido demolidor), de versos como “num país negro racista/ no coração da América do Sul/ (…) sai pra trabalhar a empregada/ em plena pandemia/ por isso ela leva nas mãos/ Miguel, 5 anos/ nome de anjo/ 35 metros de voo/ do nono andar”. A melodia se esfumou, pifou, morreu, aqui jaz a canção brasileira, assinado JRT. A luta de classes (todo mundo sabe qual é o tema de “Dois de Junho”) adentra a sala com piano da MPB, desta vez no papel da “empregada” e não da patroa. Tinhorão apreciaria, mas não o confessaria. Talvez ficasse ressabiado, mas, já diziam os velhos baianos, para que discutir com madame MPB?

“Dois de Junho” (digo eu mesmo, não Tinhorão) é áspera, ácida, desagradável, anticomercial, antipopular (anti? popular?), necessária como água num deserto fascista. Como em Oásis de Bethânia (2012) existia “Carta de Amor” (“não mexe comigo/ que eu não ando só”), em Noturno há “Dois de Junho”, mais um dardo da série de canções de desdizer do não-oásis recente de Bethânia. Aqui se separam Marisa Monte e Maria Bethânia, a “Calma” de uma e a “Prudência” de outra.

Amanheceu, entardeceu, trovejou, anoiteceu, madrugou e outro dia começa a nascer, na “Luminosidade” não-litorânea do paraibano sertanejo Chico César: “Luminosidade/ iluminaMato Grosso/ clareia a areia fina/ no escuro do fundo do poço“. Estamos no fundo do poço, alguém ainda não percebeu? Uma pulga se instalaria atrás da orelha de Tinhorão. Chico César? “Calhou bem para o momento dele, mas também não tem contribuição nenhuma. Essa coisa da ‘Mama África’ (1995) é bem achada, fora de comum, mas não sei se vai ficar só nisso.” Essa eu não estou inventando, Tinhorão disse mesmo, em 1998. “Mama África/ a minha mãe/ é mãe solteira/ e tem que fazer mamadeira todo dia/ além de trabalhar/ como empacotadeira nas Casas Bahia“, cantava um primo distante do Miguel de “Dois de Junho”.

É quando Noturno termina, clamando por “Uma Pequena Luz”, “uma pequenina luz bruxuleante/ brilhando incerta, mas brilhando”, em poema do português Jorge de Sena, declamado seco, sem melodia. “Enterro definitivo da canção”, esbravejaria, já cansado, mas levemente comovido (apesar de europeu, o poema é português), o velho crítico que se foi. Algo me diz que, se ainda fosse vivo e vivaz, Tinhorão escutaria com prazer, talvez até com açúcar e afeto, o Noturno de Bethânia (guardaria o segredo com ele, já que “eu não falo mais de pessoas”). Porque em Noturno Maria Bethânia declara, de modo mais sensível e habilidoso, muito do mesmo que o velho tinhorão da MPB passou a vida inteira escrevendo nos livros.

P.S.: Este texto foi inspirado pela releitura de uma brincadeira chamada “Os artistas segundo ele“, a que submeti Tinhorão durante uma entrevista, em 1998. Sobre Maria Bethânia, dizia o notório desbocado: “É cantora para palco. Aí, sim, tem um certo magnetismo pessoal. Quando o cara cantava na boca do microfone, só de pé, de terno, existia a canção, que dependia só da interpretação da voz. Hoje, ou você pula pelo palco como a… as meninas lá… a sirene do agreste… e a outra lá, a baiana, como é o nome?, ou tem que ter uma luz caprichada, um jogo de cena. A Bethânia tem”. O velho Tinhorão reclamava, com razão, que jornalistas só o procuravam para lhe extrair frases bombásticas que vendessem jornal.

"Noturno", de Maria Bethânia

NoturnoDe Maria Bethânia. Biscoito Fino, 2021.

 

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