“Os gafanhotos de ferro estão querendo roer minha memória, meu passado”, constata Omar (Irandhir Santos), diante do mar do Recife onde repousam as plataformas da petrolífera Petrogreen, apelidada de “Petrobosta”, a certa altura, pelo militante adolescente Marlon (Gabriel Leone). Piedade, novo filme do pernambucano Claudio Assis, parte da exposição de conflitos provocados pelo hipercapitalismo, que o conterrâneo Kleber Mendonça Filho abriu em Aquarius (2016), e os desenvolve permeado-os por um drama familiar construído nos interstícios das tradições sadomasoquistas de casa grande & senzala.
Fernanda Montenegro interpreta Dona Carminha, mãe de Omar e matriarca da família Bezerra, que vive do comércio no Bar Paraíso do Mar, na praia de Piedade, e passa a ser assediada pelo executivo de petróleo Aurélio (Matheus Nachtergaele), interessado em adquirir a propriedade. Os caminhos da trama defrontam a família com Sandro (Cauã Reymond), administrador homossexual de um cinema pornográfico recifense, que vive junto do estabelecimento com o filho Marlon, ativista de causas ambientais.
A turma rebelde de Marlon faz pixações e vídeos “subversivos” contra o sistema, como aquele que inicia o filme, em que ele e mais dois surfistas discursam em cima de pranchas no mar, nus e de faces ocultas atrás de máscaras de lutadores mexicanos, embaralhando protestos contra a podridão da cidade oficial e contra a proibição de que se nade naquele mar infestado por tubarões. Metáfora reta, em pouco tempo saberemos quem são os reais tubarões de Piedade.
Diretor de filmes anárquicos e iconoclastas como Amarelo Manga (2002), Baixio das Bestas (2006) e Febre do Rato (2011), Claudio Assis domestica a narrativa em certa medida em Piedade, de enredo mais linear que os antecessores. A agressividade homoerótica comum em seu cinema ganha contornos menos marginais (mas ainda envoltos por interdições), pela figura semi-heróica do personagem de Cauã. O cinema pornô é pretexto para a coreografia bem-elaborada de diálogos independentes, porém contíguos às cenas de sexo nas saletas do estabelecimento comercial. As transgressões habituais do diretor extravasam em cenas como essas, a de fixação anal entre dois dos protagonistas e o banho idoso seminu de Fernanda Montenegro. Ao final, o grande capital parece vencer a parada contra a vida vivida e as pequenas transgressões, em mais de um sentido.
Piedade. De Claudio Assis. Brasil, 2019, 98 min. Nos cinemas a partir de 5 de agosto.