Você põe pra ouvir a novíssima canção “Perder alguém”, de Tiago Araripe, e pensa: “Meu Deus, que canção linda de Fred Zero Quatro!”.
Rá! Seu besta distraído! Provavelmente não existiria Fred Zero Quatro sem Tiago Araripe, que palmilhou o coração do Recife com a Nuvem 33 duas décadas antes de Samba Esquema Noise (1994) vasculhar o coração do mundo e o manguebeat virar mainstream a partir da Rua da Moeda.
O maranhense Zeca Baleiro viu pela primeira vez Cabelos de Sansão (1982), o maior clássico de Tiago Araripe, ao descobrir por acaso o vinil antigo numa loja em Botafogo, centro do Rio. Quando pôs o disco para tocar, já em casa, topou com “uma atmosfera sonora ao mesmo tempo ácida e lírica, rica de timbres, as letras de pura verve e os arranjos engenhosos”.
Não podia ser diferente: além de ter reeditado aquele disco em 2008, no disco Terramarear, que marca o retorno de Tiago Araripe aos ouvidos nacionais, a primeira faixa, “Você É um Oásis”, é justamente a consagração desse encontro artístico entre Araripe e Zeca Baleiro.
Tem uma linda extemporaneidade no disco de Tiago, apesar dos diagnósticos velozes da vida moderna todos estarem nele (as ameaças do egoísmo, do anti-ambientalismo, da pandemia, do autoritarismo). As letras de pura verve ainda estão ali (“perder alguém/ não é assim como perder o trem”), mas Tiago parece agora buscar algo ainda mais adiante, uma tentativa de armistício, um aceno de tolerância, de compreensão mútua (“você não me segue mais/ nas redes sociais/ mas eu te amo”).
Os timbres parecem uma brincadeira com o tempo. Munidos de acordeons, minikorgs, flautas, congas, com coberturas de guitarras e baixos elétricos, Tiago e seus comparsas brincam em criar uma gangorra do tempo, no qual a harmonia está sob e está sobre e nunca está num lugar só, mas em todos eles.
Há outros convidados no disco além de Zeca Baleiro: Vânia Bastos (dos tempos de Tiago nas conspirações da antiga Vanguarda Paulistana), Marcos Lessa, Isadora Melo, Mara, Nonato Luiz. Esse último, virtuoso de Lavras da Mangabeira, toca um notável violão de erudito na viagem imemorial de “Seis Cordas”, cortada por um clima ibérico, uma melancolia lusitana, uma vertigem de exílio.
Há três anos vivendo em Bombarral, em Portugal, na região das antigas terras da rainha, Tiago Araripe já contrabandeia a sonoridade dessa nova condição para seu disco, um dos grandes deste ano dois da pandemia. A guitarra portuguesa de Bruno Chaveiro providencia uma espécie de reboco de parede na construção de taipa (quase toada sertaneja) da canção “Tudo no Lugar”, combinada com o fado de saudade da cantora Mara. Em vez de derramar o sentimento do exílio, o álbum é marcado pela proximidade, pela naturalidade do percurso, um anti-exílio.
A voz de Tiago é uma coisa. Cearense do Crato de sotaque pernambucano, ele canta com a falta de pressa de quem já viu tudo, de artista que esteve no centro das grandes agitações estéticas, teve o céu como limite e sabe que a vida é bela. Tem a consciência da luta, mas sua indignação não é a do porrete, é a da conclamação. “Quantas palavras são necessárias para calar quem fala demais?”, exorta.
“Das Horas”, com a jovem cantora pernambucana Isadora Melo, põe uma marcação marcial de bateria por sobre um quebra-mar de acordeom da Bretanha, uma mistura sequestradora e visionária.
Há muito ainda o que escrever sobre o terceiro disco autoral de Tiago Araripe, que está chegando perto dos 70 anos. Faremos como ele: comeremos pelas beiradas. “Estou aqui só de passagem/ na mala, só a viagem,” ele canta, em “De Passagem” (parceria com Juliano Holanda).
O disco foi realizado por meio de campanha de financiamento coletivo na Benfeitoria, no período de 20 de abril a 3 de junho de 2021.
Confira aqui os lyric videos e clipes de Terramarear feitos em Portugal.
Terramarear. De Tiago Araripe. Independente, 2021. No Spotify, Deezer, Apple Music e Youtube.