O filósofo Roberto Romano, notável intelectual brasileiro que morreu de Covid-19

Quando um intelectual brasileiro do porte do filósofo Roberto Romano morre, é meio estranho procurar uma repercussão. A ressonância é sempre muito menor do que o tamanho da perda. Mas, se o intelectual morreu de Covid-19 (uma doença para a qual já existe vacina e cujo alastramento já deveria estar sob controle), estando em plena ebulição criativa, com apenas 75 anos, antes mesmo de se pensar em repercussão, é comum a gente sentir pena de si mesma, dos saldos de desperdício humano que estamos acumulando.

Romano escreveu alguns dos ensaios mais sólidos da universidade brasileira sobre ética, moral e ciência, como O Caldeirão de Medéia (Perspectiva, 2001). Abordou a obra de Denis Diderot, Baruch Spinoza, Immanuel Kant, René Descartes. Foi amigo e parceiro de Jacob Guinsburg e atuou na sociedade como um verdadeiro intelectual, imprimindo dialeticamente suas ideias no debate público, dissolvendo o risco da rigidez acadêmica em embate diário.

Roberto Romano da Silva, professor de Ética e Filosofia da Unicamp, morreu ontem em São Paulo após 40 dias internado com sintomas de Covid-19. Nascido em Jaguapitã, no Paraná quase rural, graduado em filosofia em 1973 pela Universidade de São Paulo, doutor pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris (onde estudou com Jacques Le Goff, Jean-Pierre Vernant, Claude Leffort, entre outros), ele publicou com constância e critério durante toda sua vida acadêmica. Sua leitura arguta e profunda dos fenômenos políticos o impeliu a um confronto de uma vida toda:  adversário ferrenho de todos os autoritarismos, os déspotas logo reconheceram nele um adversário letal – tanto que a ditadura militar o prendeu em 1969, levou ao Presídio Tiradentes por mais de um ano e torturou no chamado “trono do dragão” (com choques elétricos; seu torturador foi o malfadado delegado Sergio Paranhos Fleury).

Nesse período, recebeu solidariedade de D. Paulo Evaristo Arns e outros poucos defensores da institucionalidade, e mesmo sem a demonstração de qualquer crime que tivesse cometido, ainda foi vítima da grande violência daquele regime de força. Nunca houve uma reparação dessa barbaridade. Mas esse histórico nunca o transformou em um homem amargo, tinha grande propensão ao diálogo e era um ferrenho defensor da dialética social e política. Na última campanha municipal de São Paulo, vestiu a camisa da chapa Boulos/Erundina.

“Sua contundência fará falta no combate ao autoritarismo e negacionismo. Era uma luz nas trevas atuais”, lamentou o deputado Ivan Valente. “Expresso meus sentimentos de pesar à esposa Maria Sylvia, à família, aos amigos e amigas da Unicamp pela morte do professor Romano, que tanto lutou pela democracia, pela liberdade, pelo ensino público”, escreveu Eduardo Suplicy. “Sereno, inteligente e defensor do bom diálogo, características tão necessárias para o Brasil de hoje”, disse Arthur Virgilio.

 

Em março, no Facebook, no qual tinha certa assiduidade, o professor Romano deixou um texto para seus leitores:

SOBRE ÉTICA E MORAL

Roberto Romano

Procuro sempre, no interior da vida intelectual brasileira, discutir criticamente o conceito imperante de ética, porque vejo nele um grande perigo. No Brasil de hoje, quando se fala no assunto, o termo recebe quase imediatamente a conotação de algo positivo, desejável e bom. A ética definiria as regras de ação recomendáveis para o coletivo e os indivíduos. Semelhante identificação do ético com o bom é problemática. O conceito de ética é mais abrangente do que as noções de bem e de mal, pois significa o conjunto de hábitos introduzidos e reiterados num determinado tempo e sociedade, tornando-se quase automáticos nas consciências humanas, como se fossem uma segunda natureza. Qualquer ato nosso, reflexivo ou ativo, pode ter conotação boa ou má. Muitos hábitos coletivos, introduzidos no transcurso da história, sobretudo no Ocidente, na Europa e Américas, são nocivos à vida espiritual. Há o campo enorme de representações coletivas que a Filosofia do século XVII ou XVIII definia como “preconceitos”. Que um valor seja aceito por sociedades nacionais ou transnacionais como inquestionável é um ponto. Que ele seja inquestionável é algo muito diferente. Por exemplo, temos o antissemitismo. Trata-se de uma forma de comportamento presa ao conjunto de valores surgidos na Idade Média, a partir de equívocos doutrinários, históricos e religiosos. Ao longo da Idade Média e no início do Estado Moderno ele foi ampliado por problemas de ordem econômica e política, sendo reiterado por juízos equivocados, emitidos por grandes homens e líderes religiosos, como é o caso de Lutero. Na História Moderna ele foi repetido pelos seguidores de Lutero e também do catolicismo. No século XIX o antissemitismo uniu-se às doutrinas supostamente científicas, de cunho racista. Tais doutrinas foram espalhadas por meio da imprensa, das cátedras universitárias, dos livros, e tornaram-se uma forma “espontânea” de pensar entre largas camadas da população. Na Alemanha, quando surgiu o nazismo, ele já encontrou um solo fértil de atitudes diante do judeu, do árabe etc. O nazismo vem coroar um costume plenamente ético, mas hediondo e imoral, já que sapa a consciência moral que exige a unidade do ser humano: judeus, árabes ou negros, todos integram o ser humano. O ético assim entendido tem um atrativo muito grande, porque nele se descreve o “concreto”, a vida do povo. O moral é mais abstrato, porque apela para a consciência invisível. Mas o moral é importante para verificarmos a veracidade, a bondade do ético. Este último é necessariamente coletivo: não existe ética individual. Já o moral apresenta-se coletivamente, mas tem sua vigência na individualidade. O juízo moral exige que se suspenda temporariamente o juízo ético, pois ele é mais exigente que o ético. Quem defende uma linha puramente ética da cultura, critica o chamado “moralismo” – o moralismo abstrato – porque ele seria uma afirmação de valores que não se corporifica imediatamente, enquanto o contrário ocorre com o ético. O ético, pois, é muito mais atraente. A “opinião pública” quase sempre é ética (o que não quer dizer que é exata!). Há casos horrendos de costumes éticos, como, por exemplo, no caso brasileiro, a falta de respeito pelas leis de trânsito. Esta atitude coletiva entre nós pode ser vista, pelos estudiosos do fato ético, como um costume sancionado. Mas trata-se de algo plenamente imoral, porque nele tem-se em mente a prioridade do material sobre o espiritual. Se alguém possui condições econômicas para adquirir um veículo importado da marca Audi, consegue o direito de matar. Na consciência dos atores sociais existe esse direito, o que é profundamente imoral e antiético, no sentido correto da palavra. Não há dono de carro Audi (a não ser que ele seja um sujeito moral extremamente elevado), que não acredite: sua posse de um Audi goza do privilégio de andar a 170 quilômetros por hora numa estrada pública. A própria propaganda da Audi incentiva isso: “quando você enxergar esse logotipo, passe para a direita”. Atribui-se aos donos de veículos o estatuto de semideuses, acima do bem e do mal. Por tudo isso eu me preocupo muito com a veiculação sem prudência da “ética” como se ela fosse um corretivo para a sociedade brasileira. Acho que a nossa vida social, inclusive a universidade e a pesquisa brasileiras, estão profundamente marcadas por traços éticos indesejáveis.

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