Como todas as linguagens artísticas, o teatro também se adaptou às restrições impostas pela pandemia do novo coronavírus. Hoje em dia assistimos também a peças encenadas diante da tela do computador ou do smartphone. O que por um lado pode ser um limitador da experiência teatral, espaço de encontros entre artistas e plateia por excelência, por outro colaborou com a democratização, geográfica, inclusive, do acesso a determinadas produções.
Foi assim que tive o enorme prazer de assistir à ótima “A procissão”, de Gero Camilo, com trilha sonora de Zé Modesto e Tata Fernandes. São três artistas imensos em cena. Gero, ator que se agiganta para dar conta dos romeiros que interpreta e com quem dialoga, tem a faceta de cantor e compositor menos conhecida (apesar de ter dois discos lançados), mas é autor de mais da metade das músicas da trilha sonora do espetáculo, a que comparecem temas de domínio público e composições de Zé Modesto e Ceumar.
“Coroa santa, abre essa porta pra felicidade entrar”, diz o cântico de abertura, seguido de “Antífona”, música que abre “Xiló” (2007), o segundo lindo disco de Zé Modesto, ali cantada por Ceumar. Ele e Tata se revezam entre violões e uma parafernália percussiva que vai de pandeiro e triângulo a pau de chuva, apitos e kazoo.
Com a barba por fazer, Gero empunha uma caixa decorada com imagens de santos e encarna o romeiro com roupa de missa, camisa branca de mangas compridas, calça de pano mole, sandálias de couro e chapéu, que ele usa para beber água de chuva, aplacando a sede da longa caminhada, glória a algum santo no céu. O cenário é iluminado por velas e um sorriso aqui e acolá, necessário, parece profanar o ar solene e sacro dos cânticos e da procissão em si.
“Acende a faísca no olhar do semelhante, deixa a faísca brilhar no olhar do semelhante”, diz outro canto-reza. “A procissão” é bem urdida ao costurar temas tão diversos e urgentes, a traduzir o Brasil presente: a própria pandemia de covid-19, que obrigou o trio em cena a, em vez de circular por teatros paulistas – e, com sorte, brasileiros –, se contentar com as citadas telas, o alto índice de feminicídios no Brasil (com números incrementados pelo confinamento pandêmico), o latifúndio sócio do agronegócio, que mata cotidianamente, e a necessidade urgente de demarcação das terras indígenas, com respeito à cultura e à dignidade dos povos originários.
“Que cemitério grande é esse que não acaba?”, indaga a certa altura, homenageando até as vítimas de esquistossomose, a popular barriga d’água nunca erradicada no Brasil profundo. “Os corpos viraram cruz e as almas viraram estrelas e a procissão deixa de acontecer na terra e passa a acontecer no céu”.
É literalmente uma procissão de temas. Gero chora. “Fome é dor de estômago e a morte não tem filosofia nem religião que explique. É os pés pisando no arame farpado de algum rico”, filosofa. “Ademais a vida é curta, curto é o nosso tempo aqui”, continua.
“Às vezes nós fala em prosa, rezar nós reza em verso e o pensamento nós deixa pro repente”. A analogia de Gero faz todo sentido, em clima de quermesse, com sua música e interpretação garantindo o ambiente dos festejos comumente vividos após as missas em homenagem aos santos padroeiros.
É o próprio Gero quem resume, a instantes do fim: “o espetáculo se chama “A procissão”, mas a nossa procissão é ecumênica, respeita a todas as religiões, inclusive os ateus. A poética é que é o Deus”, afirma revelando a profunda humanidade dessa procissão artística.
Que dica preciosa! Sou muito fã do trabalho de Gero Camilo. E esse trabalho deve ser mais uma de suas pérolas. Obrigada!
uma maravilha, rosa. imperdível! vou ver de novo, hoje. abraço!