Michel Laub e a ficção que traduz o Brasil

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O escritor Michel Laub. Retrato: Renato Parada
O escritor Michel Laub. Retrato: Renato Parada

Já há algum tempo a obra de Michel Laub tem se dedicado a escancarar algumas feridas da sociedade brasileira. Seu livro anterior, “O tribunal da quinta-feira” (Companhia das Letras, 2016), por exemplo, se dedicava aos limites do politicamente correto e da privacidade.

Solução de dois Estados. Capa. Reprodução
Solução de dois Estados. Capa. Reprodução

Em seu novo livro, “Solução de dois Estados” (Companhia das Letras, 2020, 243 p.; R$ 49,90; leia um trecho no blogue do autor), o escritor se debruça sobre o ódio e a violência. É um perfeito retrato do Brasil atual, polarizado politicamente, narrado a partir de entrevistas de dois personagens detestáveis.

Narrador habilidoso, Laub desenvolve sua trama a partir de depoimentos de um par de protagonistas, dois irmãos: Alexandre, dono de – literalmente – um “império” do mundo fitness, e Raquel, artista plástica de 130 quilos que se vale da pornografia para denunciar uma série de violências sofridas desde o bullying na adolescência.

Filhos de uma família de classe média que ruiu a partir do confisco da poupança pelo governo de Fernando Collor – Laub é mestre em tingir de ficção a triste realidade brasileira, mote de seus livros –, no início da década de 1990, Alexandre e Raquel são antagonistas que trocam acusações o tempo inteiro: ele acredita que ela contribuiu para a ruína da família, ao ir estudar artes na Europa, sem se preocupar com de onde vinha o dinheiro que a sustentava; ela, por sua vez, afirma ser o irmão o chefe de uma milícia, cuja fachada é o seu negócio no ramo de academias, mas que mistura uma igreja evangélica e a promessa de recuperação de (ex-)“pecadores”/bandidos e o trampolim disso para uma carreira política – repito: qualquer semelhança com a realidade não é apenas mera coincidência. É tradução.

Os depoimentos do casal de irmãos são para um documentário sobre a violência brasileira, realizado por uma cineasta alemã, que por sua vez carrega consigo também um trauma por uma situação de violência: ex-moradora do Brasil, teve o marido, empregado de uma ONG, assassinado por uma bala perdida.

Os cenários, personagens e situações criados por Laub poderiam, eles mesmos, compor um documentário ou um livro-reportagem – ou qualquer outra obra de não-ficção –, de tão verossímeis: uma agressão sofrida por Raquel em um evento, diante do olhar silencioso e paralisado – e, portanto, cúmplice – de cerca de 600 pessoas entorna ainda mais o caldo da guerra fratricida, em curso na prosa caudalosa e deliciosa de um dos maiores romancistas em atividade não apenas no Brasil.

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