Sitiado pela realidade do isolamento social e pelo vírus, como todo mundo, o cantor e compositor capixaba André Prando, uma das grandes vozes das novas vozes da MPB, resolveu desafiar a própria exiguidade de meios – não possuía um estúdio doméstico, não tinha como recorrer a parceiros presenciais, não sabia como lançar e divulgar um trabalho novo sem palmilhar o palco e o “rehearsal” – e terminou gravando o testemunho de sua nova condição, canções que vêm boiando como garrafas de naufrágios.

Mais aberto que encalacrado, mais universal que ensimesmado, mais feroz que compungido (embora suave), o EP Calmas Canções do Apocalipse chegou às plataformas digitais na sexta-feira, 15.  Instrumentalmente, é o mais delicado dos trabalhos de Prando (antes, ele lançara dois álbuns, sendo Voador, de maio de 2019, o mais recente), e não é somente uma fórmula voz e violão, tem muitas camadas de sonoridades. São apenas três canções, e uma delas é um cortante resgate histórico. Trata-se de Clamor no Deserto, uma música menos conhecida de Belchior gravada no terceiro disco do cearense, Coração Selvagem, de 1977.

43 anos depois , Clamor no Deserto ressurge como se fosse o hálito do novo, um pulmão recém-nascido aprendendo a respirar para viver mais. “Dá no jornal todo dia o que seria o meu canto”, cantava Belchior, dialogando com George Orwell e as previsões distópicas para a humanidade do livro 1984. “Eu sei que é difícil começar tudo de novo, mas eu quero tentar”. Interessantes os caminhos das sinapses históricas da música. Em 1977, Belchior escalou o iniciante violonista Paulinho Soledade para tocar em uma única faixa de Coração Selvagem. Exatamente Clamor no Deserto. Em 2020, Prando escala o violoncelista Frederico Puppi para ocupar aquele lugar que foi de Soledade, com um resultado emocionante.

Tudo em Belchior (cuja imagem reapareceu também essa semana numa foto de 2013 recuperada de uma velha máquina pelo cartunista Carlos Latuff, abaixo) soa agora como profecia.

“Ano passado, apesar da dor e do silêncio,
Eu cantei como se fosse morrer de alegria.
Hoje, eu lhe falo em futuro e você tira o revólver”.

O violonista Paulinho Soledade tinha sido trazido à cena da MPB, nos anos 1970, pelo guitarrista Rick Ferreira, sideman de Raul Seixas, que o levou para gravar com Erasmo Carlos o disco A Banda dos Contentes. Pois bem: Rick Ferreira é convidado de André Prando na gravação do reggae Gatinhos da Internet (André Prando/Biltre), que abre o disco. Essa é a mais guerrilheira, confrontadora, das músicas do EP.

E é impossível não ouvir na canção Dharma (André Prando e Luiz Gabriel Lopes) ecos das visões de Jack Kerouac em seu livro Os Vagabundos Iluminados (The Dharma Bums). “Enquanto eu respiro/O mundo dá mais uma volta”, canta Prando. “As coisas só vêm para ir embora todas as coisas feitas precisam ser desfeitas”, escreveu Kerouac após sua iluminação.

Calmas Canções do Apocalipse é um instantâneo da vida sob o signo do autoexame, da reavaliação, do olhar para dentro, mas é principalmente a demonstração da força do espírito, da criação, da voz livre, sob condições adversas, opressivas, castradoras. Não há como estancar toda essa liberdade.

Ouça Clamor no Deserto, de Belchior, com André Prando:

 

 

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