O escritor José Agrippino de Paula - Foto de Mauricio Simonetti

Transmitido aos interessados de mão em mão, em cópias precárias, desde 1968, o lendário livro As Nações Unidas, do escritor, dramaturgo, cenógrafo, cineasta e arquiteto José Agrippino de Paula (1937-2007) ganha sua primeira edição após 51 anos. Agrippino foi um guru tropicalista que produziu obras referenciais nos anos 1960 e 1970, como o livro Panamérica (citado por Caetano Veloso na letra da canção Sampa, “Panamérica de Áfricas utópicas”) e o filme Hitler Terceiro Mundo (de 1968, com Jô Soares no elenco).

As Nações Unidas é uma peça de teatro que funde personagens como Alexandre Magno e Napoleão com Pato Donald, Hitler, Che Guevara e o papa. Todos interagem num ambiente arquetípico, uma Assembleia Geral das Nações Unidas. A atualidade do texto impressiona: o 36º presidente norte-americano, Lyndon Johnson, e o general William Westmoreland, comandante militar no Vietnã, são chamados a expor os motivos da alma intervencionista de seu país. E o fazem sem ruborizar. “Nosso exército sai do povo e conserva com ele possantes elos”, diz Westmoreland.

O teatro da geopolítica mundial, que Agrippino demonstra conhecer com argúcia de expert, é fundido ao exame das motivações sócio-políticas dos grupos sociais e a emergência da tecnologia. “O mundo está cheio de homens. Todos eles possuem alma. Almas de alumínio mais altas que um homem, grandes, redondas e brilhantes”. O autor explica sua dramaturgia de forma sucinta e simples no início do volume. “Chamo de cena as unidades de cenário, personagens e situação; e de interrupção a ação acidental, vinda do exterior, que perturba, confunde, destrói e desintegra a cena”.

Nessa ambivalência entre cena ensaiada e cena desarticulada pela ação exterior, Agrippino construía sua estética. O diretor e fotógrafo Jorge Bodanzky, que trabalhou com Agrippino nessa época, contou que às vezes, durante um ensaio, ele soltava umas galinhas e criava uns ruídos para confrontar a premeditação do teatro com o caos em que ele construía suas mensagens. 

O nonsense dos diálogos é só aparente: Agrippino expõe o absurdo das construções diplomáticas em cada frase, expondo a imprensa como um patético mediador. Em seu delírio cênico (o diretor também foi pioneiro na articulação de uma “comuna” artística em sua casa em São Paulo, transformando a própria vida num laboratório criativo), Agrippino parecia já antever a catástrofe do pensamento político dissimulativo e até mesmo a tragédia do chanceler de Wikipedia esquizofrênica do bolsonarismo.

Nas últimas cinco décadas, o livro As Nações Unidas (que acabou sendo a base do espetáculo multimídia de teatro Rito do Amor Selvagem, de 1969) circulou numa edição artesanal, em inglês, editada no Rio de Janeiro. A censura é que impeliu à clandestinidade, e a abertura política nos anos 1980 não reacendeu o interesse dos editores.

As Nações Unidas. José Agrippino de Paula. Papagaio Editora, 160 páginas, 50 reais.
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