Num país sem memória a ficção refaz a história

0
2292
Léo Garcia, Sapiran Brito e Zeca Brito. Foto: Juliana Costa
Léo Garcia, Sapiran Brito e Zeca Brito. Foto: Juliana Costa

“Legalidade”, de Zeca Brito e Léo Garcia, terá estreia nacional hoje (20), às 19h, no Teatro Alcione Nazaré (Centro de Criatividade Odylo Costa, filho, Praia Grande) na programação (gratuita) do Festival Guarnicê de Cinema. A estreia mundial aconteceu em abril, no Festival Latino de Chicago, nos Estados Unidos.

O filme costura, a partir de um triângulo amoroso fictício, uma narrativa que remonta ao episódio histórico com que Leonel Brizola, no fim das contas, conseguiu adiar em cerca de três anos o golpe militar de 1964, que acabou por jogar o Brasil numa ditadura militar por 21 anos.

Farofafá conversou com exclusividade com os diretores e com Sapiran Brito, pai de Zeca, um dos atores que interpreta Brizola, personagem central na trama.

Zema Ribeiro – Como é que foi a receptividade do filme no festival de Chicago?
Zeca Brito – Surpreendente. Incrível como um filme que conta uma história brasileira pode ser universal e pode encontrar reverberações em outras culturas, outras visões de mundo. Chicago é uma cidade muito cosmopolita, então o público que assistiu o filme era de americanos e estrangeiros, pessoas que foram morar nos Estados Unidos, mas que vêm de outras histórias geopolíticas, por exemplo, do Oriente Médio, ou da própria América Latina, a gente pode conversar com uruguaios, com argentinos que residem em Chicago e por conta de ser um festival latino foram assistir o filme, e todos dizem a mesma coisa: algo muito parecido aconteceu em meu país. Que é o reflexo de como o mundo se movimenta, de como os interesses [acentua os dois primeiros “e”, imitando o sotaque de Brizola], de que o Leonel Brizola falava são reais, e é um pouco o que o filme tenta estabelecer. O filme se passa em 1961 e é sobre esse ambiente de guerra fria, onde Estados Unidos e União Soviética e distintas vontades políticas dominavam o mundo e muito daquilo que a gente vivia como história, como processo histórico era influenciado por esses interesses externos. Em Chicago foi muito interessante como isso passou pela percepção do público, essa identificação de como a história se repete, de como a história é parecida. Por outro lado, foi uma questão também que me surpreendeu, eu tava contando pro Léo esses dias, a gente vem, a gente fala muito no filme sobre o aspecto histórico, os personagens históricos. Mas o público mais desinformado da história do Brasil, que é grande parte do público norte-americano, não sabe nada do que aconteceu aqui, primeiro por que nossa cinematografia não chega lá, segundo por que não há muito interesse dos Estados Unidos de olhar para outras culturas, por que já trabalha a sua também como um produto, foi a questão do romance. É um filme que tem um romance que costura a narrativa histórica e esse romance tocou no coração do público e isso também me surpreendeu.

O diretor Zeca Brito. Foto: Juliana Costa
O diretor Zeca Brito. Foto: Juliana Costa

ZR – Por que a opção de estrear em São Luís, no Guarnicê?
ZB – Interessante. Acho que o Festival Guarnicê é um festival com uma história muito bonita, diferente de outros festivais, sem querer fazer uma crítica específica, ele não é um festival monárquico, de um dono, de uma empresa, ele é um festival que se liga muito com a comunidade civil organizada, partindo de uma universidade [o festival é promovido pelo Departamento de Assuntos Culturais da Universidade Federal do Maranhão], há 42 anos. Isso no Brasil é muito bonito e importante de ser celebrado nesse momento histórico. A função do cinema tem que ser essa, se aproximar da sociedade civil, cumprir um papel também educativo, falar mensagens importantes, provocar discussões, aproximar nossa memória histórica e também do tempo contemporâneo do que está acontecendo no mundo, mas da nossa realidade cultural, trazer esses debates pra sociedade. Esse festival, nesse sentido, já é muito sério, por estar ligado, a uma instituição do saber. E segundo, a gente vive um momento político, não foi à toa que a gente escolheu Chicago, que é uma cidade ligada à causa operária, aos direitos trabalhistas, e é uma cidade que recentemente elegeu uma mulher, negra, LGBT, prefeita [Lori Lightfoot]. De alguma maneira isso pontua que a gente está num território que tem espaço para as discussões que a gente está propondo no nosso filme e acho que o mesmo se revela no tempo contemporâneo com o Flávio Dino, que é uma referência para um pensamento aberto, de como deve ser a construção da cidadania, do encontro humano, principalmente partindo da luta contra as desigualdades sociais. A gente tem que trabalhar também essa questão de como a sociedade se traduz politicamente. Estar num território com um pensamento tão aberto a questões da história, questões que nosso filme trata, questões da sociologia que nosso filme trata, isso a gente vê publicamente que há uma sinalização de política pública mesmo, que vem a calhar com o que a gente está querendo discutir.
Léo Garcia – A gente começou a escrever essa história em 2007, 2008, mais ou menos, e naquela época era impensável falar em ditadura militar. Tu encontrava dois ou três malucos, mas era algo “ah, já passou”, e aí quando a gente está lançando o filme pairam no ar nuvens cinzentas e o filme ganha outra importância, tem, digamos, outra virtude, que é lembrar um passado recente, que as pessoas já esqueceram, o que foi a ditadura militar. Apesar de o filme se passar antes da ditadura, o Brizola já estava combatendo um princípio de golpe, ali em 1961. Ele consegue, mas depois em 1964, infelizmente…

O diretor Léo Garcia. Foto: Juliana Costa
O diretor Léo Garcia. Foto: Juliana Costa

ZR – Dá até pra dizer que o golpe foi adiado por essa ação.
LG – Foi, com certeza!
Sapiran Brito – O golpe era contra ele. Ele tava na rua, tava na boca do povo, “cunhado não é parente, Brizola presidente!”, não tinha outro. Era o grande nome entre os progressistas, não tinha outro. Estava praticamente eleito pelo povo. Pelas ações, pelas atitudes, pelo momento. A CIA [Agência Central de Inteligência do governo americano, na sigla em inglês] tentou, não conseguiu a primeira vez, mas na segunda… por detrás de tudo sempre está a CIA. Sempre estão os interesses norte-americanos, através da CIA, que me desculpe a expressão, mas costumeiramente compra os nossos deputados. Costumeiramente. Ele conseguiu segurar o golpe, conseguiu evitar o golpe, mas terminou o mandato como governador, foi ser deputado, e não tinha os meios físicos e materiais e o poder que tinha como governador para tentar deter os golpistas de 1964. Por que infelizmente o nosso país é construído de golpe em golpe. Agora tivemos o golpe branco contra a presidenta Dilma e tivemos um complô da mídia e do parlamento contra o presidente Lula, nada mais que outro golpe branco. E de golpe em golpe nós vamos. E Leonel de Moura Brizola significa o anti-golpe, a voz da resistência, a voz do progressismo, a voz daqueles políticos corretos que ainda resistem. Cinco por cento, mas ainda temos, na classe política, uns cinco por cento de homens retos, honestos e verdadeiramente brasileiros, sem nacionalismo, sem xenofobia, questão de amar o Brasil. Quero lembrar só uma coisa: Brizola não era um gaúcho. Darcy Ribeiro escreveu uma bela crônica sobre o Brizola, dizia “Brizola, um filho do povo brasileiro”, por que ele era preocupadíssimo e envolvido com toda a questão. Um grande problema nacional é o problema da dominação do Brasil. O Brasil é dominado. E nós sabemos por quem. Dominado pelo capital, que se organiza basicamente em Wall Street. E o Brizola representa essa voz de rebeldia contra isso. O Brizola, que foi tachado de comunista, não tinha nada de comunista. O Brizola era um progressista, um socialista embrionário. Tanto que a Internacional Socialista o elegeu vice-presidente, ele não sendo presidente do país. E esse cargo, em memória dele, ainda está na mão do partido dele, o PDT, hoje representado pelo Carlos Lupe. O PDT tem cadeira na Internacional Socialista, mesmo o Brizola não sendo declaradamente um socialista, mas era um socialista, por que era um progressista e um nacionalista sem xenofobia.

O ator Sapiran Brito. Foto: Juliana Costa
O ator Sapiran Brito. Foto: Juliana Costa

ZR – O que significou para o senhor interpretar o Brizola no filme?
SB – Ah, uma grande emoção. Primeiro que eu vi o negócio nascendo, pelas mãozinhas deles, pelas cabecinhas deles [aponta para Léo e Zeca]. Aí quando eles notaram que eu tinha alguma semelhança com o velho, que eu conhecia muito, por ser amigo dele, de frequentar a casa, falar ao telefone, abraçar e conversar com ele com intimidade em diversas ocasiões, eu ajudei a construir o que o Léo e o Zeca roteirizaram. E que fique claro o seguinte: eu não estou no filme por que sou filho do Zeca [risos] ou amigo do Léo, é que eles viram uma semelhança com o Brizola, que eu não posso negar: é uma espécie de osmose, de tanto eu gostar, eu acabei ficando parecido com o velho e tento pensar e agir como ele, por que eu também sou político. Além de artista, ator, diretor de teatro, eu também sou político. Me honra, sobremaneira, representar, mesmo eles me dando pouco espaço [risos], mas é simbólico honrar a memória do velho. E é uma satisfação saber da oportunidade do lançamento desse filme. Eles não previram, eles não têm bola de cristal, nenhum dos dois é Nostradamus, mas parecia que estavam prevendo: “ah, vamos lançar durante o outro golpe”. E estamos aqui honrando a memória de Leonel Brizola.

ZR – É curioso que o filme anterior de vocês é sobre Tarso de Castro [A vida extra-ordinária de Tarso de Castro], que é outro combatente da ditadura e também um brizolista.
ZB – E que estava na Legalidade.
LG – De certa forma influenciou um pouco o roteiro do Legalidade. Ele não só estava na Legalidade, como ele foi, a gente conta no filme, um episódio, uns 20 dias antes da Legalidade, o Brizola conheceu o Che Guevara em Punta del Este, um encontro da OEA [Organização dos Estados Americanos] e o Tarso cobriu isso. Várias coisas acabaram se mesclando, a gente estava rodando o Tarso e acabando de escrever o roteiro.
ZB – Quando a gente terminou de filmar o Tarso e foi filmar o “Legalidade”, o que acontece é que eu acho que tanto personagens que são personagens do filme do Tarso inspiraram personagens do “Legalidade”. O Flávio Tavares, o Carlos Bastos, pessoas que estão no filme do Tarso de Castro e que são a síntese do Tom e do Luís Carlos, que são os personagens fictícios que a gente criou. São muitos personagens reais, a gente fez uma pesquisa, até interessante, tu vai assistir o filme e vai ver, a gente colocou nos créditos finais todos os livros que a gente pesquisou para criar essa história de ficção. Ela é toda costurada por episódios reais, mas cabe a cada um de nós ir a fundo para ver a veracidade daquela coisa no sentido de que a costura é poética. É uma obra poética, como se fosse o [poeta grego] Hesíodo estar contando a guerra e não estar falando da guerra como ela é, mas está se baseando em fatos que aconteciam e que aconteceram para poder sintetizar de forma poética a guerra. O que a gente fez no “Legalidade” foi isso. A gente leu muito sobre tudo o que havia sido produzido em termos de pesquisa científica, da academia, e bibliografia, livros sobre episódios históricos, depois entrevistamos autores, o Juremir Machado, o Flávio Tavares, mas primeiro a gente partiu do livro deles, mas entrevistamos, e entrevistamos familiares, amigos, o Carlos Araújo, que inspira nosso personagem comunista, mas vai acabar sendo trabalhista. O próprio [Luís Carlos] Prestes foi ser presidente de honra do PDT, tem essa costura histórica e a gente coloca esses elementos no filme. Tem o personagem trabalhista, que é o Brizola, tem o personagem comunista, que é o Luís Carlos, como essas ideologias vão se encontrar com o campo oposto, que é alguém que está corrompendo a constituição. Alguns deputados, no campo do poder legislativo, e alguns militares, o chefe da Marinha, o chefe da Aeronáutica, que não queriam permitir o Jango [João Goulart] voltar ao Brasil e assumir a presidência, porém, aí é interessante como a história é complexa, a Legalidade só foi possível com a adesão do Terceiro Exército, que era a maior força militar brasileira: 120 mil homens, que estavam no Rio Grande do Sul. Brizola foi tão persuasivo, conseguiu levar tão profundamente a mensagem, mobilizar a população civil, que aqueles soldados que estavam no Rio Grande do Sul aderem à Legalidade, rebelando-se à ordem inclusive de bombardear o Palácio [Piratini, sede do governo gaúcho], que partiu de Brasília, então acontece esse contragolpe. Aí o Jango vem, aí o que acontece: a coisa estava tão inflamada que era mais conveniente que o Jango viesse pra apaziguar, por que o Brizola ia sim subir e tomar o poder. Aí o Tancredo [Neves] vai até Punta del Este, faz uma negociata básica, histórica, e resolve, para que não haja derramamento de sangue, “vamos estabelecer um pacto de silêncio você volta e assume o parlamentarismo, não fala nada, não faz discurso, fica quietinho, acalma o Brizola, silencia o Brizola, a gente vai silenciar o Exército lá em cima, Aeronáutica, Marinha”… Nisso os navios de guerra já estavam no porto do Rio Grande, toda a frota aérea já estava mobilizada para bombardear o Rio Grande do Sul e acontece esse acordo de paz, que foi um desfecho, pro Brizola foi um pouco frustrante, mas um ano depois, através de um plebiscito, se reconstitui a democracia, que dura dois anos e acaba com o golpe, em 1964.
LG – É legal por que tem todo esse aspecto político, mas nosso roteiro tem camadas. Uma pessoa que, digamos, não tem nenhum conhecimento de história pode assistir o filme e vai acabar desfrutando pelo menos da história de amor, vai entender o enredo, vai saber que existiu esse momento tão importante da história. Eu acho que tem essa virtude o roteiro que a gente trabalhou. Quando essa história começou, em 2007, mais ou menos, eu e Zeca bem jovens, Zeca estava acabando o primeiro longa dele, “O guri”, eu ainda não tinha nem um longa filmado, e o Zeca veio com essa história: “ah, o meu pai sempre falou que a Legalidade renderia um filme”, eu nem conhecia o Sapiran, nem lembrava da Legalidade, eu tinha estudado no colégio, assim [estala os dedos] talvez numa tarde… aí eu comecei: que Legalidade é essa? Li um livro e falei: “cara, rende um filme, vamos escrever?”. “Vamos!” E começou, naquela época a gente tinha o sonho de lançar em 2011, nos 50 anos da Legalidade. Ledo engano. Cinema no Brasil nada é tão fácil. Um dia eu quero convidar o Zeca pra fazer umas quatro, cinco horas, pra gente mostrar nosso roteiro desde o início. Do primeiro argumento o tanto que mudou, a gente foi enxugando personagens, mudando, tinha um circo, quatro irmãos viraram dois. Um roteiro tinha um diálogo de 15 páginas entre dois palhaços, eu falei: “Zeca, não sei se a gente vai ter tempo pra isso” [risos], queríamos fazer uma coisa mais [o cineasta italiano Federico] Fellini, mas enfim, a gente foi se acertando.
ZB – Esteticamente é um filme bem atemporal. Interessante o fato de a gente ter achado que ele deveria ter sido lançado em 2011 e não conseguimos, só filmamos em 2017 e estamos lançando agora em 2019, mas a construção do roteiro, apesar de se passar em 1961, é um filme que joga com a história, com o fato de ter essa construção poética, personagens fictícios. De algum momento essa história já aconteceu em outros momentos antes, aconteceu depois. A gente diz: é a prévia de 1964, depois 1964 aconteceu mesmo. Mas pode ter acontecido agora, em 2016.
SB – Já tinha acontecido antes, com Getúlio [Vargas].
ZB – E esteticamente ele flerta com o melodrama, tenta buscar essa raiz brasileira, que às vezes o cinema olha com certo preconceito, essa matriz que vem da televisão, da telenovela, como elemento estético, para se trabalhar a história, ela se relaciona muito com a história, no sentido de que a história brasileira é um pouco uma telenovela. A narrativa histórica. Às vezes a realidade é tão engenhosa, que parece surpreender, daqui a pouco cai o avião do desembargador, do primeiro ministro, coisas que não existem no Brasil, mas estão aí toda hora.
LG – Alguém viu um corte do filme e falou: “não, os militares nunca iam fazer isso”, mas está ali, foi assim que aconteceu.
ZB – Exatamente. É por isso que a gente bota todos os elementos históricos sem citar, mas lá no final, para que essas pessoas tenham o trabalho de ler esses livros.
SB – Enfrentamos um grande problema: é um país sem memória. Todos nós enfrentamos, jornalistas, todos nós. Ninguém lembra o que aconteceu há cinco anos. Não vai lembrar o que aconteceu há 50. Não tem a mínima informação. O filme contribui pra isso. Não chega a ser um filme histórico, mas pode chamar a atenção para que a juventude desperte para esse tema e vai encontrar outras histórias de muitos e muitos golpes que esse país sofre.

ZR – Essa abordagem de algum modo é curiosa por que a gente vive a era das fake news, que ao fim e ao cabo foram responsáveis pela eleição de Bolsonaro. E vocês viram o jogo ao contar um capítulo da história do Brasil através de uma ficção, o que é uma solução supercriativa.
ZB – É uma coisa que está aí desde que o mundo é mundo, que se chama romance histórico. Quem não leu “O tempo e o vento” [do gaúcho Érico Veríssimo] ou “E o vento levou…” [da norte-americana Margaret Mitchell]. Ambos são romances históricos que viraram filmes e que contam uma história. A história do Rio Grande do Sul foi contada em “O tempo e o vento”, a história da guerra de secessão nos Estados Unidos foi contada em “E o vento levou…”. Estou dando dois exemplos, mas poderiam ser outros.
LG – Ao fazer isso a gente altera alguns detalhes, a gente cria personagens fictícios que fazem coisas importantes, mas isso é normal de qualquer dramaturgia.
ZB – A dramaturgia histórica é assim. É a síntese da história. A gente tem a responsabilidade de esperar 50 anos do episódio, poder ler todos os livros, poder comparar as perspectivas históricas, poder colocar diferentes pontos de vista em cena. Por isso é um romance. A gente tem a visão dos Estados Unidos, a visão da CIA, que parte de uma jornalista do Washington Post, de alguma maneira…
LG – Olha o spoiler… [risos].
ZB – A gente não tem o personagem real por que a CIA não revelou esses documentos, mas hoje a gente sabe que a CIA espionava o Brizola.
SB – Já revelou.
ZB – Já, mas a gente não sabe quem era o espião, a gente tem o relatório.
SB – Daqui a 50 anos vamos saber.
ZB – Daqui a 50 anos vamos saber, talvez. Mas a questão é que depois do Che Guevara o Brizola era o homem mais vigiado na América Latina. Como é que a gente vai construir isso historicamente? A gente tem essa informação, mas tem que ser através de personagens fictícios, a própria questão da Legalidade, como a gente tem muitos personagens reais, você precisa sintetizar cinco personagens reais em um personagem fictício. O que aconteceu é real. Essa que é a questão do “Legalidade”. Você tem compromissos históricos com personagens históricos. Tudo que o Brizola diz no filme são falas do Brizola durante a vida que estão ali na boca dele. Claro, tem uma ou outra cena de intimidade que a gente consultou a família: “isso aqui ele falaria dessa maneira?”. “Ah, sim”. É uma síntese de um discurso, colocado de uma maneira mais coloquial, mais íntima, como ele falava com a esposa, coisas assim. Mas os personagens históricos, os discursos do Brizola são os discursos que ele fez na época. Então tem essa costura entre personagens históricos com discurso histórico real e uma construção poética que é o lirismo da dramaturgia clássica que está aí desde a Grécia antiga.
SB – Uma coisa a ser ressaltada na ação do Brizola é que foi a primeira vez no mundo que alguém usou a comunicação para organizar um levante. Nos dias que correm é a maior barbada, mas naquele tempo, o grande veículo era o rádio. Tevê não tava ainda em cadeia, não tinha as afiliadas, tevê era uma coisa muito incipiente ainda. Ele foi o cara que despertou pra comunicação, pra fazer um levante através da comunicação, quando ele criou a Rede da Legalidade, que começou lá no porão [do Palácio Piratini], depois foi pra Goiás, Paraná, foi crescendo, crescendo, só não entrou em São Paulo, mas no resto do país se formou a Rede da Legalidade. Então, esse fator, o tino desse cara, de se dar conta do uso da mídia, da comunicação, a seu favor, a favor da sua ideia, do seu projeto, é fundamental, pouca gente observa isso.
ZB – É muito interessante. Ele tinha o dom da oratória. Toda sexta-feira ele falava num programa de rádio, ele se comunicava quatro, cinco horas, as pessoas às vezes dormiam, de tanto que ele falava, dormiam, acordavam e ele tava falando.
SB – Que nem o Fidel [Castro] e o Mao [Tsé Tung].
ZB – Quando ele se dá conta de que tinha um golpe em curso ele escreve um comunicado e manda pra todas as rádios. Aí acontece um fato, que era sintomático do golpe, que o exército imediatamente manda fechar todas as rádios que haviam lido o manifesto, em que ele dizia: “Jango está na China, está sendo impedido, temos que nos mobilizar para que seja respeitada a constituição”. As rádios são fechadas, a única que não é fechada é a Rádio Guaíba, por que era um pouco mais conservadora, de alguma maneira tinha uma outra visão política, não aceitou ler o manifesto, não foi fechada. No dia seguinte ele confisca o transmissor da Rádio Guaíba, traz pro palácio e transforma a secretaria de comunicação na secretaria de segurança, digamos assim. Ele bota todo aparato da brigada militar a serviço do resguardo da comunicação. Resguardar a torre da Ilha da Pintada, transforma o palácio num grande forte de comunicação, onde ele bota os transmissores na rua pro povo que tava na frente ouvir o discurso dele, começa a discursar, discursar, produção artística, poesia, jogral, em torno disso, os dias vão passando e só discurso não dá, [o ator Paulo César] Pereio, [a poeta] Lara de Lemos, fazem o “Hino da Legalidade”, aquilo começa a ser tocado ininterruptamente.
LG – Vai mobilizando todo o Brasil, “olha não vamos deixar ter esse golpe”.
ZB – Mobiliza a sociedade civil inteira no sentido de dizer: “o que temos aqui?”. “A brigada militar”. “Quantos contingentes?”. “Tantos”. “Isso aqui não dá nada”. “O que a gente tem?”. “O povo na rua”. “Quantas mil pessoas estão na rua?”. “As pessoas precisam se armar”. Aí ele estabelece um jogo de guerra civil pela constituição. Quem tem arma pega sua arma e vem pra rua. Ninguém tinha tanta arma, ele pega todas as armas de estoque do palácio e distribui pra sociedade civil. Vai na Taurus, pega todo estoque de armas da Taurus, a Taurus que hoje tá com as ações lá em cima, distribui pra população todas as armas e “nós vamos enfrentar o exército brasileiro, vai ser brasileiro contra brasileiro, por que a gente tem que preservar a única coisa que a gente tem que é o voto democrático popular”. Jango Goulart havia sido eleito com mais votos que Jânio Quadros, numa época que as eleições eram separadas, vice e presidente.
SB – Não podia ser mais legítimo.
ZB – Só que na verdade isso tudo era um jogo de cena, as armas do palácio não tinham balas, as balas eram da revolução de 30, estavam todas estragadas. Ele vai jogando com o limite, pra ver o que ia acontecer, e tentando segurar, segurar, segurar, pro Jango voltar e o Jango não vinha.
LG – Não tinha informação direito de onde é que ele tava, tava em Nova York, ele vinha a conta-gotas, parava em Lima…
ZB – Até começar a guerra eles não precisam saber que elas não atiram [risos].
LG – Triste pensar que tem uma avenida em Porto Alegre chamada Castelo Branco. Fizeram uma votação, vereadores conseguiram mudar pra Legalidade. Aí quiseram mudar, “não, por que tem uma pracinha chamada Legalidade”. Aí virou avenida da Legalidade e da Democracia. Agora, em tempos [de] Bolsonaro voltou a se chamar Castelo Branco.

ZR – Sério?
LG – Agora vamos recomeçar, pra voltar a ser Legalidade, é sintomático, não?
ZB – Se a gente quer lutar, tem que lutar por educação, no Brasil hoje.
SB – O Castelo era o menos golpista deles. O Castelo saiu do Ceará pra detonar o golpe, o AI-5 do Costa [e Silva], por que o compromisso moral do Castelo com a nação era da eleição em dois anos. Ele saiu, teve que sair, passou pro Costa e Silva e o Costa e Silva deu um golpe dentro do golpe. E ele decolou e caíram o avião dele.

ZR – A personagem da Cléo Pires é jornalista.
SB – É uma espiã disfarçada.
ZB – Spoiler!
SB – Apaga, apaga [risos]. Quem sabe ele não é um espião da CIA? [gargalhadas].

ZR – Ou pelo menos da Abin [risos]. Recentemente houve esse episódio do The Intercept vazando as conversas do Sérgio Moro. Queria saber a opinião de vocês sobre a importância do jornalismo e da liberdade de imprensa no mundo e principalmente no Brasil sob a égide de Bolsonaro.
LG – Estou aguardando o episódio de hoje da Vaza Jato.
SB – O filme deles sobre o Tarso reflete muito bem isso. O Tarso sempre disse que não tínhamos uma imprensa livre, é uma imprensa submissa, uma mídia submissa, infelizmente. Claro, tem CartaCapital, tem Caros Amigos, tem umas revistas, uns jornais que não estão no topo do consumo, que são as vozes resistentes. Agora os demais? [Fala com desdém:] Folha, Estadão, O Globo, Rede Globo, Record, tudo isso está a serviço do capital. O jornalista de um desses órgãos que quiser ser libertário, da grande mídia, que quiser falar a verdade, está desempregado. Não só desempregado como o chefe liga pras outras redações e diz: “não contrata fulano, que ele complica”. Nosso jornalismo, infelizmente, está amordaçado. O que salva agora? As redes sociais, as agências independentes.
LG – Pro bem e pro mal. Hoje em dia as pessoas recebem notícias pelo celular e ninguém quer saber se é verdade, se não é. Mas fake news passa.
SB – Passa. O cara vai quebrar tanto a cara dando mancada, que uma hora ele vai procurar uma fonte confiável. E existem fontes confiáveis. A própria grande mídia agora está ficando responsável [risos], está sentindo a concorrência. Desde o tempo do [Assis] Chateaubriand que a grande mídia é golpista, que derruba, se apropria, e manda no presidente.
LG – A gente aborda, no próprio “Legalidade”, não só a Cléo Pires é uma brasileira que mora em Washington. A gente tem um triângulo amoroso, são dois irmãos, um deles trabalha no [jornal] Última Hora. Todo envolvimento dos jornalistas naquela época na Legalidade é fundamental. Eles fazem parte do plano do Brizola, era um jornalismo muito mais ativista, digamos.
ZB – Tem duas questões, fazendo relação com The Intercept. Primeiro, a questão da investigação e dessa responsabilidade que o jornalismo brasileiro talvez precise retomar, de depender menos do release, das notícias prontas, mas de ir atrás não só da visão oficial. Até no filme isso é engraçado, por que de alguma maneira os meios de comunicação de nosso filme estão a serviço do Brizola, eles são a voz do Brizola, a voz de uma liderança, mas de uma liderança que eles conheciam intimamente. Isso é uma questão. Ele não tinha como governante, esse distanciamento que os governantes costumam ter da imprensa. O Brizola tomava café todos os dias com os jornalistas para falar sobre o que estava acontecendo, chamava, não se negava a responder nenhuma pergunta, não era uma pessoa que fugiria de uma pergunta. Ele sabia a importância da imprensa para se manter ligado ao povo, ele tinha essa relação com o povo. “A grande massa, as pessoas que estão muito distantes, todos precisam saber do que estou fazendo”, pra ser cobrado também. Ele dava a cara a tapa, deu grandes exemplos em vida pra poder fazer as coisas que fez. Ele fez a reforma agrária, mas ele doou uma fazenda que ele tinha, foi a primeira fazenda, que ele doa, da família. Mas ele soube jogar, no episódio da Legalidade, com a imprensa como um elemento de guerra.
LG – Isso o Brizola jovem, por que o Brizola mais velho, depois…
ZB – Vai comprar briga com a imprensa.
LG – E o fato de o Brizola ter brigado com a Globo significou que ele nunca foi presidente do Brasil. O exílio também fez muito mal pra ele.

ZR – Como é que vocês têm acompanhado esse ataque sistemático às artes, à cultura e ao pensamento pelo governo Bolsonaro?
SB – É o que se esperava dum fascista. Não pode esperar do fascismo outra coisa a não ser isso. O [ministro da propaganda da Alemanha nazista Joseph] Goebells, o número um do [Adolph] Hitler, dizia: “quando eu ouço a palavra cultura tenho vontade de sacar da pistola”. Indiretamente, eles odeiam, eles também têm vontade de sacar a pistola e matar todos os artistas, por que o artista é rebelde, o artista fala, o artista é independente, além do quê a cultura e a arte servem para o esclarecimento do povo, e eles não querem, querem o povo burro.
LG – Ignorante como eles.
SB – Eles não têm carinho nenhum, têm profundo desprezo pela cultura. E é aí que está o nosso papel: resistirmos. Por que isso passa. Essa onda de fascismo, de direitismo, existe em todo o mundo, não é só no Brasil, eles estão surfando na onda, a direita botou as garras de fora e está tendo seu momento. Até por culpa da esquerda, vamos aprofundar, que fracassou em muitas coisas. Acontece que a hora é deles, não é a nossa hora, não é a hora dos progressistas, não é a hora dos esquerdistas. Nesse momento nós temos que resistir, aguentar, por que muda, claro que muda, não sei se vai durar 10 ou 20 anos. Mas de repente alguém pode cair do cavalo.
LG – Vale falar que o filme é em memória de nosso ator, que acabou falecendo, infelizmente, que interpreta o Brizola, o Leonardo Machado.
SB – Foi o último trabalho dele.
ZB – O Léo é o protagonista, junto com o Sapiran ele faz o Brizola, a maior parte do filme ele conduz a trama, é um grande ator do Rio Grande do Sul, deixa um legado importante. Todos os diretores dos últimos 20 anos em algum momento trabalharam com ele. Não chegou a ver o filme pronto, viu um corte, enfrentou um câncer e nos deixou precocemente. Mas fez o filme com uma entrega absoluta, com paixão, buscou o papel, a gente estava buscando um ator, estávamos caindo no canto da sereia de que para chamar público tínhamos que ter atores do eixo Rio-São Paulo, em grande evidência na televisão.
LG – Mas tu tinha uma pulguinha, queria um Brizola gaúcho.
ZB – É, num primeiro momento a gente achava. Mas ele buscou o papel, me procurou, chegou ao teste caracterizado, era mais forte do que o próprio filme a vontade dele de fazer o filme. Fez lindamente, conduz o filme com uma baita responsabilidade, as falas reais do Brizola, teve um processo de caracterização, mudou o cabelo, colocou lente de contato, engordou um pouco para fazer o filme, é um ator muito completo, tanto pelo aspecto físico, disposto a transformações, quanto pela parte de equipamento vocal, tinha uma voz muito bonita, muito volume, pros discursos do Brizola isso foi muito importante, uma capacidade também de ser muito generoso, conviveu muito com o Sapiran, foi pra Bagé, fez um laboratório de um mês antes, saiu um pouco da cidade, para buscar essa raiz do Brizola, que era um homem rural, um colono, um homem do campo. Foi conviver com o Sapiran para os dois criarem o mesmo personagem. O filme, agora que eu falei esse negócio do campo, tem uma outra questão importante que a gente foi buscar: o filme se passa todo em Porto Alegre, mas estabelece um relação histórica com São Borja, com a raiz desse trabalhismo brasileiro que nasce com Getúlio Vargas num território que é Brasil mas que tem como origem de colonização a cultura espanhola, a figura do caudilho, e principalmente a questão da justiça social que fez parte da utopia jesuítica guarani. São Borja é uma cidade que nasce da colonização espanhola jesuítica, e foi o grande centro da justiça, os tribunais guaranis aconteciam em São Borja. Em 1680 já existia a ideia de reforma agrária, de divisão igualitária da terra, isso vai estar no subconsciente do Getúlio, do Brizola, e o filme tenta também flertar com esse passado espanhol que fez o Rio Grande do Sul, que está nas missões, tem um elemento do nosso filme que é inspirado no Darcy Ribeiro, antropólogo, que está na região das missões, em São Miguel das Missões, trabalhando com os indígenas, e vai pra Porto Alegre, mobilizado pela Legalidade, também mostrando essa mobilização que o Brizola fez no interior do estado. Então, pra falar um pouco das raízes do Brasil, que passa pelo elemento indígena, pelo elemento negro, pelo elemento português e pelo elemento espanhol, também no caso do Rio Grande do Sul.

ZR – Foi todo rodado em Porto Alegre?
ZB – O filme teve locações em São Miguel das Missões, também em Torres, mas representando Punta del Este, mas a história em si se passa em Porto Alegre.

ZR – No começo da entrevista você fez um elogio ao Guarnicê. Nesta edição foi inaugurada uma mostra chamada Cinema Político. O que você achou da iniciativa?
ZB – Eu achei fantástico, o festival tem que ter um compromisso com a sociedade. A gente vive um momento no Brasil onde as instituições, onde o próprio sistema político, como a sociedade vê a política, precisa ser discutido, pensado, a gente precisa repactuar com a sociedade, com a política. Há hoje uma ojeriza, um preconceito muito grande do cidadão com a classe política, por conta do desgaste da corrupção, que é real e que é histórico. A gente esteve no Museu de Arte Sacra hoje à tarde e há uma frase de Padre [Antonio] Vieira, numa de suas pregações, falando de como a corrupção está presente e é genuína do ser humano e é preciso combatê-la, não é questão apenas de ser brasileira, ela existe em toda parte, mas de alguma maneira no Brasil, por conta de nosso processo histórico, a mancha da corrupção se tornou maior do que a vontade civilizatória de fazer política por parte do cidadão. A gente precisa reaproximar o cidadão da política. A sociedade, no seu mais alto grau de caminhar, de pacto social, precisa da política, precisa da participação política. Mas não necessariamente da figura do grande líder, e é essa que é a questão que o Brizola entende, que aquilo tudo só seria possível envolvendo todos os cidadãos e fazendo com que as pessoas se apropriassem daquela causa, lessem a constituição, entendessem por que estavam lutando por aquilo. Como artista a gente também tem um compromisso de aproximar a política da discussão cidadã. A política é estrutural na sociedade, voltamos pra Grécia antiga. Há sociedades que conseguiram avançar, inclusive pra que a gente pudesse ter um processo civilizatório que deu origem ao renascimento, que deu origem à modernidade, ela se baseia na política.
SB – Há um preconceito contra a política em essência. Quando tem um festival que abre uma janela importante para um filme político, é importante, é um avanço. O Guarnicê tem conteúdo, tem pensamento, é um festival de pensamento. O festival que ele [aponta para Zeca] é coordenador tem isso também. É arte, mas é arte para pensar.

ZR – Qual é o festival que você coordena?
ZB – Tanto eu quanto Léo, de alguma maneira nós criamos janelas para poder propagar a arte cinematográfica brasileira, mas também refletir sobre nossas áreas, eu na minha atuação na faixa de fronteira e o Léo como roteirista. O Léo criou em Porto Alegre, o Frapa, o Festival do Roteiro Audiovisual, que é hoje um dos maiores, acho que é o maior da América Latina, e eu criei em Bagé e Livramento o Festival de Cinema da Fronteira, que já tem 11 edições. Ano que vem eu não vou participar, vou assistir. Mas fui o idealizador. O Frapa está chegando à sétima edição.

ZR – Qual a previsão de estreia do “Legalidade” no circuito exibidor?
ZB – Dia 12 de setembro ele vai estrear no Brasil. [Distribuição da] Boulevard Filmes, que distribuiu o Tarso também, distribuiu o “Glauco do Brasil”, meu outro filme.

ZR – Como vocês avaliam o atual momento do cinema brasileiro em que filmes como “Bacurau”, de Kléber Mendonça Filho e Juliano Dorneles, e “Marighela”, de Wagner Moura, têm concorridas estreias internacionais, com ampla repercussão, mas não estreiam no Brasil?
LG – Eu acho que o “Bacurau” vai acabar estreando. O “Marighela” tá complicado, eu estou lendo, está complicado, a distribuidora ficou com medo da repercussão. O “Marighela” é diretamente contra o Bolsonaro. Eu não vi o “Bacurau”, mas imagino que seja uma coisa não tão direta, é óbvio que o discurso está ali, mas uma pessoa tosca não vai se sentir agredido, como o Bolsonaro, diferente do “Marighela”, que é um cara que combateu a ditadura. Eu acho que o “Bacurau” vai entrar em cartaz, deve entrar bem, espero que faça um bom público.
ZB – Eu acho que ambos os filmes escolheram estrear em festivais estrangeiros, é uma política que os realizadores brasileiros têm tido, não agora, mas há muitos anos, por que muitos desses festivais exigem que seja première mundial. Estreiam fora por que não têm espaço no Brasil? Não é verdade. Estreou fora por que os realizadores brasileiros preferem estrear fora, criar expectativas, ganhar prêmios fora, e depois estrear nos festivais nacionais. Acho difícil que ambos os filmes, de realizadores de prestígio, com os elencos que têm não sejam selecionados em festivais brasileiros. Provavelmente a gente vai ver agora no segundo semestre, os dois filmes em Gramado, Brasília, em algum desses festivais, Rio, São Paulo, eles vão estar nesses festivais. A questão do lançamento comercial, hoje no Brasil, tem dois caminhos: ou é investimento de uma grande distribuidora, e aí isso não é uma questão de perseguição política, é uma questão de capital. A gente vê que o capital pode, por exemplo, como a Netflix, lançar um filme sobre o impeachment da Dilma, por que o capital não tem esquerda nem direita, ele vende pra esquerda e pra direita.
LG – A Netflix fez “O mecanismo” [de José Padilha].
ZB – A mesma Netflix que fez “O mecanismo” faz “Democracia em vertigem” [de Petra Costa]. Então o capital é um grande balaio, que tem uma oferta que é o comunismo, o neoliberalismo, está tudo ali em oferta. O outro mecanismo é o Fundo Setorial do Audiovisual. O “Legalidade” é um filme financiado pelo Fundo Setorial do Audiovisual, o Marighela também. O Fundo Setorial do Audiovisual, na medida em que você aprova o financiamento da realização, a distribuição é suporte automático. Se eu quiser recorrer, eu posso ter recursos do mesmo fundo pra distribuir o filme.
LG – Até o ano passado. Agora tá tudo meio turvo.
ZB – Qualquer filme que está sendo lançado esse ano comercialmente teve que fazer esse processo ano passado. Imagino que qualquer filme que tenha optado pelo Fundo Setorial do Audiovisual ele terá o lançamento, imagino, garantido. A sociedade civil organizada que lutou pelo Fundo Setorial do Audiovisual, que lutou pela transparência, pela governança de um fundo que é gerido por um banco público, aliás, o BRDE foi criado pelo Brizola [risos]. O que existe é uma dominação estrangeira das salas. “Vingadores” estreou em 800 salas. Há um preconceito contra o cinema nacional, isso existe e isso o Bolsonaro está fazendo questão de acentuar, é uma questão que a gente já vêm lutando há muitos anos e é função nossa, como imprensa, como artistas, formar público, lutar contra essa dominação estrangeira.

PUBLICIDADE

DEIXE UMA REPOSTA

Por favor, deixe seu comentário
Por favor, entre seu nome