O rosto de Zé Ramalho é como se tivesse lava escorrida de um vulcão antigo, é cheio de sulcos e formações rochosas indiferentes, tipo as colinas de Lanzarote. Ele ri pouco, e mesmo quando ri é uma risada que parece de alguma forma dolorosa, incubada. E ele sempre termina suas canções com um lamento, um uivo de novena. Ele faz isso mesmo com as canções dos outros. Muito frequentemente, ele capricha em um “Ê, boi!” enxertado nas músicas, a convocação pelo boi bumbá.
O Tom Brasil estava lotado para o show, cerca de 4 mil pessoas. Sábado em São Paulo, estacionamento de 40 a 50 reais: não é moleza não. Há pouquíssimos artistas no nosso star system capazes de tal proeza, tirando tanta gente de casa para ver e ouvir em carne e osso, e Zé Ramalho da Paraíba é um deles (após mais de 40 anos de carreira).
Zé Ramalho abriu com O que é, o que é?, samba de Gonzaguinha, canção de 1982, do sonho da redemocratização, de pensar o que vem depois do idealismo. “Mas e a vida? Ela é maravilha ou é sofrimento? Ela é alegria ou lamento? O que é? O que é, meu irmão?”. Zé Ramalho transforma o êxtase e a celebração de Gonzaguinha em missa, com sua versão pontuada e folk, que é radicalizada na canção que vem a seguir, Tá Tudo Mudando (Things Have Changed), versão do single do ano 2000 de Bob Dylan, agora frita à milanesa com mandacaru.
Na plateia, preponderam, como eu mesmo, os “sabiás velhos” – coroas de pernas finas e orelhas em desabalado crescimento que eram meninos em 1978, quando Zé Ramalho lançou Avôhai. Mas é curioso notar que, quando toca canções como Chão de Giz e Admirável Gado Novo, quem tem mais domínio da voz e do coro é o grupo dos mais jovens, os que descobriram Zé Ramalho pelo Spotify.
Irônico tentar apreender o que significa hoje, do ponto de vista comportamental, a longevidade das canções de Zé Ramalho. “Em meu cérebro coágulos de sol. Amanita matutina e que transparente cortina ao meu redor”, canta ele, em Avôhai. Amanita é um cogumelo que serve de base para uma bebida alucinógena. Matutina é por causa do uso cotidiano que, na definição do antigo visionário Zé Ramalho, causa um efeito de placidez. O famoso chá de cogumelo. Cuja menção poderia fazer a ministra Damares reencarnar na Perpétua de Joana Fomm em pleno 2019.
“E isso explica porque o sexo é um assunto popular”, diz ele, em Chão de Giz. É popular mas, por via das dúvidas, o deputado neófito de cabeça de pera apresentou um projeto que previa a proibição do comércio de anticoncepcionais. Repentinamente, o País das brigadas moralistas de ocasião não tem como defender o seu próprio paganismo existencial – o que inclui até Zé Ramalho, neoconservador de reunião de condomínio no Leblon (ou será que sempre terá sido? me endereça um amigo essa pergunta irrespondível).
Admirável Gado Novo é uma protest song cáustica e sem rodeios. Não tem ambiguidade interpretativa, é da mesma cepa de Polícia, dos Titãs, ou Que País é Esse?, do Legião Urbana. Tivesse sido composta hoje por uma banda de garotos, era capaz de o general Heleno mandar o Exército monitorar os pivetes subversivos que, muito provavelmente, estariam falando mal da messiânica reforma da previdência. “É duro tanto ter que caminhar/E dar muito mais do que receber”.
Não há mais sanfona no show de Zé, apenas teclado, sintetizador e, eventualmente, uma flauta.As vozes femininas dos vocais de apoio fazem falta, foi num ambiente gospel que a canção de Zé Ramalho se desenvolveu. Zé Gomes faz da zabumba ao pandeiro. Ao longo de duas horas, Zé só se relaciona mais com Chico Guedes, há 35 anos o baixista da banda Z, que o acompanha. Há um grau de profissionalismo ligeiramente incômodo, que beira o mecanicismo de baile, como se o grupo não conseguisse tirar grande satisfação da incumbência.
Em dado momento, Zé Ramalho empunha duas canções de Raul Seixas: Gita e Medo da Chuva, uma enganchada na outra. É outro momento adorável do show. Zé Ramalho não fala muito, não explica muito bem o que fazem aquelas canções ali e o que têm a ver com seu repertório e vida pessoal. Em 2001, ele gravou um disco só com canções do Maluco Beleza, Zé Ramalho Canta Raul Seixas. Em 1984, ele e Raul tinham se tornado grandes amigos e dividiram segredos do misticismo, e não é de modo algum um tributo do nada.
Zé Ramalho é barroco, Raul Seixas é popular e universal. Não viajariam no mesmo disco voador para o espaço sideral, mas é perfeitamente possível compreender o esforço de Zé.
Ao longo de duas horas, quase sem pausas, Zé Ramalho faz do apocalipse uma harpa no penhasco, reencenando os versos dantescos de A Terceira Lâmina e Eternas Ondas como se Brumadinho não estivesse ainda audível, a poucos quilômetros daqui. Zé Ramalho adverte, mas ninguém escuta.
Ele toca ainda Beira-Mar, Frevo Mulher, Garoto de Aluguel, Entre a Serpente a Estrela, Admirável Gado Novo, Táxi Lunar. Todas exatamente como a gente ouve no disco, sacralizadas na voz desse anti-Dylan de camisão de Mago Merlin. Zé Ramalho completará 70 anos no próximo dia 3 de outubro, a voz está tão potente quanto já foi, e a forma física admirável – criado no chão da usina, é lindo que esteja tão preservado, tão nosso e tão perdido.
E até que a morte eu sinta chegando
Prossigo cantando, beijando o espaço
Prossigo cantando, beijando o espaço
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Porque "perdido", caríssimo Jotabê?
Perdido para mim, que o idealizei um dia