Elba Ramalho fotografada por Mana Fernandes
Em 1971, de passagem pela cidade de São Bento do Una, em Pernambuco, Luiz Gonzaga entrou numa agência do Banco do Brasil para fazer uma transferência. O caixa ficou encantando com aquela notável presença e, conversador, arranjou um jeito de recomendar vivamente a Gonzagão: Luiz tinha que conhecer um compositor da cidade, Nelson Valença, com mais de 100 fabulosas canções inéditas, conterrâneo que seria de grande préstimo para a carreira do sanfoneiro. Gonzagão gostava dessas ousadias (foi assim que conheceu Zé Marcolino) e pediu para o rapaz levá-lo ao tal compositor. 
Embora tímido, Nelson Valença não demorou para se entrosar com o visitante famoso, que levaria dali três músicas daquelas que mostrou. Mas o sanfoneiro gostou de tudo, tanto que, no disco seguinte, Luiz Gonzaga (1973), que tem notas de encarte de Câmara Cascudo, Gonzagão inclui outras cinco de Valença, a primeira delas o xaxado O Fole Roncou. Nessa canção, além dos tradicionais zabumba, triângulo e sanfona, Lua incluía guitarra, baixo e bateria. Virou rock’n’roll, só que não.
Essa história, evidentemente, não saiu dos escaninhos da minha memória privilegiada, ela está no livro O fole roncou!: Uma história do forró, de Carlos Marcelo.
Pois bem: tudo isso para dizer que quem for ouvir o novo e imprescindível disco de Elba Ramalho, O Ouro do Pó da Estrada, e resolver começar como eu, pelo final, vai encontrar O Fole Roncou lá nos estertores do álbum e não vai ter dúvidas de que se trata de uma iguaria. Com guitarra, baixo e cavaco (todos tocados por Yuri Queiroga), a pedra preciosa descoberta por Gonzagão no pó da estrada revitaliza tudo que é selvagem no espírito desterrado da viagem: o ritmo, o contágio, a fúria da convocação libertária.
O Zé Buraco, Pé-de-Foice, Chico Manco
Peba Macho, Bode Branco:
Todo mundo foi brincar
Esse apelidos todos da música de Nelson Valença me lembram alguns que meu primo Fred me contou de Campina Grande, como Horácio Espinhaço de Pão Doce e Cu de Pombo. Elba Ramalho nos faz ver, em 2019, que ainda é possível fazer um disco com grande orgulho, grande senso de unidade, de exame do espírito.
Entretanto, eu confesso que corri ao disco, quando ele chegou, afoito para ouvir outra canção: Princesa do Meu Lugar, composição de Belchior. É uma das canções jamais gravadas pelo cantor e compositor cearense – quem a gravou primeiro foi a cantora Guadalupe Mendonça, em 1980, no disco Princesa do meu lugar (RCA, com direção artística de Osmar Zan e direção de estúdio de Dominguinhos).
Não há pranto que apague
Dos meus olhos o clarão
Nem metrópole onde eu não veja o luar
O luar do sertão
Com arranjo de cordas e solos de violoncelo e violino, é o grande presente do disco. Em seus discos recentes, Amelinha e Daíra gravaram também essa canção. Música que eu não analisei com tanta atenção em meu livro. Faço isso agora.
Em sua versão, Elba acentua bastante no final da música o verso Luar do Sertão. Entendeu que está ali o diálogo seresteiro fundamental de Belchior com o clássico de Catulo da Paixão Cearense, composto há 104 anos. Luar do Sertão é a maior das canções deixadas por Catulo, uma parceria com João Pernambuco que foi gravada, ao longo de um século, por Vicente Celestino, Francisco Alves, Maria Bethânia, Milton Nascimento e ele, Luiz Gonzaga.
O diálogo de Belchior com Catulo da Paixão Cearense é feito de divergência e concordância, tudo ao mesmo tempo. Catulo desconfiava da modernidade. “Os médicos serão substituídos por outros médicos, sem serem médicos?”, indagou. “Como será o comércio? O dinheiro desaparecerá? Como farão os trocos? Que nos dirá o rádio?”, perguntava, em suas crônicas.
Por ter rodado o mundo todo e todos os corações, Belchior responde, em sua canção:
A terra toda é uma ilha
Se eu ligo meu radinho de pilha

Ou a internet é a ilha, hoje em dia. Mas esse sentimento de plena comunicação não o impedia de zelar pelos afetos da terra:
Se me der vontade de ir embora,
Vida adentro, mundo afora
Meu amor, não vá chorar
Ao ver que o cajueiro anda florando
Saiba que estarei voltando, princesa do meu lugar
Temos então que no disco de Elba há diversas obras fundacionais da música brasileira revestidas de uma análise da mixórdia evolutiva da MPB ao longo de um século. A cantora garimpou um lote irrepreensível de composições de diversas épocas e as tingiu de uma perenidade tangível. 
“Além da Última Estrela”, de Dominguinhos e Fausto Nilo, traz Mestrinho na sanfona e harpa de Cristina Braga; “José”, do pernambucano Siba, evoca Mestre Ambrósio e o revolucionário movimento manguebit.
“Se Tudo Pode Acontecer” traz a geração dos anos 1980 ao relevo (Arnaldo Antunes, Alice Ruiz, João Bandeira e Paulo Tatit), equilibrada entre o rococó típico da época e uma delicada marimba de vidro. Outro espécime é André Abujamra, com O Mundo, na qual Elba recebe reforços vocais de Roberta Sá, Maria Gadu e Lucy Alves.
Oxente, de Marcelo Jeneci e Chico César, pega a geração imediatamente subsequente, a bordo de sintetizador e zabumba.
O hit parade, o sucesso incontornável do rádio, como diríamos antigamente, não ficou de fora. Com introdução de cordas (com arranjo e regência de Arthur Verocai), ela reinventa “Girassol”, megasucesso do grupo Cidade Negra (de Pedro Luís, Bino Farias, Toni Garrido, Lazão e Da Gama). O sucessão aciona o lado de diva de São João de Elba.

Ouso dizer que, se tiver de recomendar um disco para esse começo de ano tão conturbado, é esse aqui.

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