“Então pare de correr na esteira e vá correr na rua”, cantou o rapper paulistano Criolo na tarde do domingo 28 de maio, trepado num trio elétrico no asfalto em frente à praia de Copacabana, no Rio de Janeiro. Nas redes sociais e nas ruas, talvez até mesmo nas esteiras, não se debate muita coisa além de política no Brasil-simulacro de 2017. Uma nova etapa de acirramento acomete o país desde que a Rede Globo se lançou açodadamente num projeto suicida de derrubada de Michel Temer. As intenções são ainda incompreensíveis para a maioria de nós, mas causaram o efeito colateral de despertar, num movimento retrofuturista por Diretas Já, uma classe artística nacional que vinha até aqui entorpecida diante de golpes de toda estirpe, dos miúdos aos mais graúdos.

Se a nova campanha Diretas Já é real ou simulacro (de 1984 e/ou de 2013) não temos ainda como saber. O movimento estreou com o ato em Copacabana (leia reportagem na CartaCapital 955, nas bancas) de que o geralmente esguio Criolo participou, e chega a São Paulo neste domingo 4, a partir das 11h, no largo da Batata. A nova tentativa de mobilização ergue-se da própria letargia, mesmo sabotado e boicotado à direita (pela chamada grande mídia, principalmente Globo e Estado de São Paulo) e à esquerda (pelos de nós que nos sentimos agredidos por trucagens fascistas do tipo “comício sem partido”, “escola sem partido” e outras garatujas despolitizantes).

Se 2017 será um repeteco do despolitizador 2013 ou o início de um novo momento, é batalha épica a ser enfrentada dentro de cada um de nós que até agora nos apegamos aos erros do passado recente afogados no vício de atribuí-los sempre e somente ao outro, nunca a nós mesmos. Ao tomar a frente mais uma vez, os artistas se expõem e recobram a condição natural de vidraças, julgados, condenados e punidos por ter partido e por não ter partido, por tomar partido e por não tomar partido.

Rapper paulistano do Grajaú hoje com 41 anos, Criolo despontou no tabuleiro nacional em 2011 e é daqueles que a gente olha e não consegue muito bem distinguir se é politicamente azul, vermelho, amarelo ou furta-cor. Ainda assim, é o responsável por uma canção que é até agora (ao lado de Respeita, de Ana Cañas) o mais contundente manifesto político-musical de 2017, o samba de roda Menino Mimado.

Ao lançar o inquietante álbum de samba Espiral de Ilusão, Criolo concedeu entrevista exclusiva a FAROFAFÁ e a CartaCapital (a reportagem está na seção cultural da edição 954 da revista), em 9 de maio passado – antes portanto de tomar lugar destacado no exército pelas Diretas Já e da mais recente rodada de traições, delações e deduragens envolvendo Temer, Aécio Neves e outros senhores mimados que vêm, digamos, regendo a nação. “Não vai se sustentar”, opinou sobre o golpe de Estado e o atual estado de coisas, mesmo antes que novos limiares fossem ultrapassados.

Um dos mais expressivos artistas do novo Brasil, Criolo rejeita o papel de porta-voz tradutor de anseios de multidões. Ainda assim, sua fala é norteadora num arco amplo de sentidos. É uma voz egressa da afrodescendência e da periferia, categorias que são vítimas preferenciais das ditaduras e dos estados de exceção, mesmo quando disfarçados sob a capa de democracias. Expressa a delicada condição do artista, imprensado entre o público e os jornalistas, os fãs e os críticos, os sem-partido e os com-partido, a direita e a esquerda, a comunidade de onde veio e a elite cultural que o abraça atualmente. Mesmo nascida num território e num país marcado por uma montanha de nãos, é uma voz que opta, em momento tão grave, por um viés de recusa ao niilismo: “É óbvio que tem jeito. É óbvio, isso é muito claro. Cada dia que passa eu vejo mais a luz no fim do túnel. Eu vejo total. Total”.

Criolo em Copacabana, com o agasalho vermelho da seleção do Zaire de 1974
Criolo em Copacabana, com o agasalho vermelho da seleção de futebol do Zaire de 1974

É em tal contexto que, em Copacabana, Criolo se ergue para interpretar três breves canções, em meio a nenhum discurso político, a nenhum grito individual de “fora Temer” ou “diretas já”. Canta sua “Menino Mimado”, a amorosa “Carinhoso” (1937), de Pixinguinha João de Barro, e “Juízo Final” (1973), de Nelson Cavaquinho Élcio Soares. Na voz de Alcione, essa última serviu à Globo como trilha sonora de novela politizadíssima sobre guerra entre facções de crime organizado, em 2014, em pleno contexto eleitoral que culminou na reeleição de Dilma Rousseff – e é, de resto, eloquente para qualquer momento político, apocalíptico ou não: “O sol há de brilhar mais uma vez/ a luz há de chegar aos corações/ do mal será queimada a semente/ o amor será eterno novamente/ é o juízo final/ a história do bem e do mal/ quero ter olhos pra ver/ a maldade desaparecer”.

Na conversa franca e generosa de 9 de maio, Criolo se esforçou por se manter leal ao próprio lugar na geleia geral e por explicar os próprios propósitos, sem ter de abdicar dos mistérios que a aura do artista exige e/ou permite. Em admirável convergência com a canção e o videoclipe feministas de Ana Cañas, reivindicou para si o que a colega tem reivindicado para todas nós: respeito.

Amado Maita, 1972Antes de iniciar as conversas gravadas, ele mostrou a canção que estava ouvindo no celular, “O Monstro Verde do Mal” (1972), de Amado Maita (pai da cantora e compositora Luísa Maita), cujos versos ele sublinhou: “Facas e chicotes/ contra mim/ matas e matanças/ sombração/ mãos que desconheço/ fecham os meus olhos/ eu quero ver/ alguém precisa ver/ que é possível resistir/ vejo meu corpo na areia/ sangue a correr/ dedos de ferro me quebram/ um corpo só tudo em vão/ monstro verde do mal”.

Em gravação para a jornalista Victória Damasceno, de CartaCapital, falou abertamente sobre o atual momento político brasileiro: “Triste. Desesperador. Horroroso. Horrendo. Sombras. Miséria. Azedume. Gangrena. A falta de respeito é absurda. Mas, conforme foram criadas as leis, que não foram pra nós, eles vão regendo ao seu jeito a melhor maneira de falar. Aí vão se vendendo as tantas embalagens da mesma ferramenta de repressão total de um possível processo de pensar. Se não for do jeito deles, mandam dizimar emocionalmente, psicologicamente, fisicamente quem não estiver de acordo com o querer deles. Sempre foi assim, essa gangrena, sempre”.

E começa então a conversa, registrada e editada em vídeo por Filipe Vianna (se preferir a transcrição em texto, ela se encontra aqui).

(Mais sobre o movimento Diretas Já aqui.)

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2 COMENTÁRIOS

  1. Por que “despolitizador 2013”? “Se 2017 será um repeteco do despolitizador 2013 ou o início de um novo momento, é batalha épica a ser enfrentada dentro de cada um de nós que até agora nos apegamos aos erros do passado recente afogados no vício de atribuí-los sempre e somente ao outro, nunca a nós mesmos.”

    • Ana, o que seria um ano que desbancou uma presidenta com 70% de aprovação que tinha garantido a reversão de parte do lucro do petróleo em educação e saúde, pra colocar uma quadrilha de gângsters no lugar?

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