Mulher-síntese, Elza Soares fornece a poderosa imagem final do videoclipe “Respeita”, da compositora, cantora e atriz paulistana Ana Cañas. Mulher do princípio do mundo, Elza oferece os lábios marcados para pronunciar a última palavra dos dizeres finais da canção: “Respeita as mina, porra!”. Publicado no YouTube em 13 de maio, dia de abolições, “Respeita” nasce como um marco da música brasileira moderna que tem o que dizer e sabe como fazê-lo. “Você que pensa que pode dizer o que quiser/ respeita aí, eu sou mulher”, canta Ana, de 36 anos, em algum ponto entre o rock’n’roll, a dance music anos 1990 de Fernanda Abreu e o hip-hop no feminino. “Desrespeitada, ignorada, assediada, explorada/ mutilada, destratada, reprimida, explorada/ mas a luz não se apaga/ digo o que sinto/ ninguém me cala”, elas afirmam.
São elas que dizem, e não apenas Ana solitariamente, porque o vídeo dirigido por Isadora Brant e João Wainer reúne nada menos que 86 convidadas, desde a emblemática Maria da Penha, que originou e deu nome à lei de combate à violência doméstica contra a mulher, e passando por Carmen Silva e sua filha Preta Ferreira (da Frente de Luta por Moradia), Eliane Dias (esposa e empresária de Mano Brown), as compositoras e cantoras Karina Buhr, Zélia Duncan e Naná Rizinni, a cacique Márcia Djeramirim, a psicanalista Maria Rita Kehl, a cineasta Vera Egito, as atrizes Júlia Lemmertz e Mariana Lima, a apresentadora de TV Roberta Martinelli…
“Levei 20 anos para conseguir falar sobre isso de forma direta, exorcizando mesmo”, conta Ana, que diz ter se inspirado no hip-hop e no que representasse aquela que foi desde sempre sua própria “quebrada”: a questão do assédio. “Sou vítima de assédio, e essa dor permeou toda a minha vida, desde então”, afirma.
A artista e os diretores propuseram às participantes um exercício em que elas fechassem os olhos e puxassem da memória situações em que foram vítimas de machismo, assédio ou inferiorização por ser mulher. Quando se sentissem prontas, deveriam “acordar” e tentar comunicar o que sentiam para a câmera, apenas com o olhar. Diversas aparecem no vídeo com o rosto livre para as lágrimas, como a rapper Jackie Brown, a ativista Monique Evelle (do movimento Desabafo Social) ou a atriz Nathália Dill. Outras cantam os versos fortes de “Respeita” (“ninguém viu, ninguém vê, ninguém quer saber/ a dor é sua, a culpa não é sua/ mas ninguém vai te dizer”), num grito grupal de que é coletiva e uníssona a voz levantada de Ana Cañas.
“Ana pagou do próprio bolso o que ela podia para a gente viabilizar e fazer acontecer”, narra o codiretor João Wainer. “Esse assunto está à flor da pele, então as pessoas foram percebendo que é um momento importante e que todo mundo precisa se posicionar. Muita gente legal foi comprando a briga, tanto mulheres quanto homens, e chegando junto para fazer um clipe que também fosse um manifesto.” Ele narra o poder transformador que um trabalho de afirmação feminina como “Respeita” pode exercer sobre os domínios do masculino: “Durante o processo eu aprendi a enxergar de forma mais nítida a dor que as mulheres sentem. Como pai de duas filhas, Maria Clara, de 18 anos, e Helena, de 13, acho que tenho a obrigação de fazer o que estiver ao meu alcance para tentar mudar isso, por menor que seja.”
Ana resume, em uma frase, a necessidade e a urgência que geraram Respeita: “É preciso, cada vez mais, abordarmos com franqueza e clareza nossos monstros, enxergar as hipocrisias, exorcizar os medos, jogar luz à igualdade e ao respeito, que são a base e o alicerce de toda – e, ultimamente, urgente – democracia”. Segue a íntegra de entrevista concedida por Ana, que gerou a reportagem acima, originalmente publicada na edição 954 da revista CartaCapital.
Pedro Alexandre Sanches: Qual o contexto de criação de “Respeita”? A canção deve entrar em um álbum cheio seu?
Ana Cañas: Pois é, ela aconteceu acontecendo. Não foi algo que eu previ, nem arquitetei. Assisti a uma série do Netflix chamada Hip-Hop Evolution e fiquei intrigada com o processo de criação das letras no rap, com a exclusão total da melodia. Fiquei tocada com a história dos caras no Bronx, primórdios, e me perguntei: se eu fosse escrever uma canção sem considerar uma melodia (algo inédito pra mim, até então), sem dúvida teria que falar sobre a minha quebrada, que sempre foi a questão do assédio. Levei 20 anos para conseguir falar sobre isso de forma direta, exorcizando mesmo. Acho que foi a ideia de excluir a melodia (imagine pensar em uma para essa dor) que possibilitou que ela viesse à tona, ainda que tanto tempo depois.
PAS: As reivindicações feministas estão presentes historicamente em muitas canções brasileiras, mas penso que poucas vezes de um modo tão direto, reto e cortante como na sua canção (aliás, é composição sua?). Por que você decidiu encampar esse desafio?
AC: Porque é uma questão muito pessoal pra mim. Sou vítima de assédio, e essa dor permeou toda a minha vida, desde então. Você aprende a conviver e sobreviver a ela, mas dificilmente pode falar ou abordar o assunto no convívio social. Eu estava de saco cheio desse silêncio opressor, que corrobora com os agressores, de certa maneira. Estava cansada de guardar isso pra mim, sabendo que tantas mulheres passaram e passam pelo mesmo, infelizmente. É uma hipocrisia muito grande, um tabu equivocado e os estigmas em relação às vítimas são completamente injustos.
PAS: Gostaria de saber também sobre o videoclipe. Deve ter sido uma odisseia juntar e gravar tanta gente bacana para um só trabalho. Pode contar um pouco a respeito?
AC: Foi muito bonito e transformador. Cada mulher no clipe é ligada a algum movimento social e/ou feminista. Conhecê-las foi uma experiência profunda e maravilhosa. Juntamos uma equipe incrível – trabalhando na raça (o clipe e a música são independentes) -, que abraçou a idéia com força e trouxe para o clipe o seu grupo de mulheres que representa essa resistência e militância. Um detalhe importante é que pedíamos, durante as filmagens, que cada uma delas fechasse os olhos, se lembrasse de algum assédio, abuso ou agressão que sofreram na vida e, quando os abrissem, olhassem para câmera, dando uma resposta a essa violência. Foi muito forte, emocionante e revelador. Muitas choravam, gritavam, algumas se rebelavam fisicamente. Mas o mais impactante foi ver que não havia uma única mulher sequer, entre as 86, que desconhecesse essa dor. Daí você entende que não só não está sozinha, como metade da humanidade, ao menos, é vítima dessa violência. Ser mulher é nascer lutando e seguir sobrevivendo aos olhos de uma sociedade machista, opressiva, patriarcal e hipócrita.
PAS: Talvez soe extemporânea a pergunta, mas assisti há não muito tempo ao filme Amores Urbanos, adorei a produção e em particular a personagem que você peitou fazer, e que diz tanto sobre tanta coisa (no filme que esteve em cartaz em 2016 e é coprotagonizado pelo também cantor e compositor Thiago Pethit, Ana interpreta uma atriz que esconde a homossexualidade para, supostamente, não perder oportunidades profissionais). Faz parte do mesmo tipo de impulso que agora gerou “Respeita”?
AC: Massa. Também fiquei contente com o resultado, considero-o um filme relevante e contemporâneo. E foi a estréia na direção da Vera Egito, que é muito minha amiga. Fiquei muito orgulhosa e feliz por ela. Quando me fez o convite, eu li a primeira versão do roteiro, e não me identifiquei com a personagem. Eu achava que a primeira versão da Duda era muito maniqueísta e simplista. Conversei com a vera, fui franca e honesta, expondo minha opinião e argumentando que eu não sou atriz profissional e não daria conta de interpretar alguém com quem eu não me identificava. Ela foi muito generosa, topou reescrever a personagem, e achei que os diálogos cresceram bastante, amadureceram. Passei a me identificar e topei fazer. Embora todos odeiem a personagem (eheh), acho muito importante o debate e os diálogos posteriores que ela suscitou. E, pensando na tua pergunta, pode ser que ela tenha sido uma semente para o “Respeita” nesse sentido, no qual é preciso, cada vez mais, abordarmos com franqueza e clareza nossos monstros, enxergar as hipocrisias, exorcizar os medos, jogando luz à igualdade e ao respeito, que são a base e o alicerce de toda – e, ultimamente, urgente – democracia.
PAS: Como você relacionaria “Respeita” ao impeachment de Dilma Rousseff, tanto no histórico silêncio diante dos abusos contra as mulheres quanto na reação a esses abusos que a música e o clipe vocalizam? Na sua opinião, foi golpe de Estado? Foi misógino?
AC: Foi, sim, golpe de Estado. Essa presidenta, por mais que se façam críticas ao seu governo, não poderá ser acusada jamais de corrupção, de desonestidade. Eu e todos com quem converso sobre o impeachment dizemos que foi sobretudo um ato misógeno. Falando com a maravilhosa Eliane Dias, no dia da gravação do clipe, ela dizia, e com toda razão, que o machismo havia piorado em todas as instâncias, após o golpe. É muito difícil para todos aqueles caras chafurdados na ambição desenfreada, ego, disputa de poder, desonestidade, enfim… ver uma mulher à frente do país, tomando todas as decisões. Iluminar o coração ignorante e fascista é a ordem do dia. Seguimos na luta, na resistência e militância. com amor.