Elza Soares quis gritar um “fora Temer” pela fresta da festa de abertura das Olimpíadas do Rio de Janeiro? “Garota de Ipanema”, “Aquarela do Brasil” e “País Tropical” são cartões postais sonoros inescapáveis para uma festa imodesta como esta? Anitta tem o direito de representar a música popular brasileira? O funk carioca e o tecnobrega paraense mereciam estar ali no epicentro do Maracanã como filhotes emblemáticos da histórica e gloriosa MPB?
Sob indagações coletivas como essas, a música brasileira voltou ao pódio na primeira sexta-feira olímpica, recobrando por alguns minutos um canecão de uma competição tão sujeita a altos e baixos como tem sido a do “nosso” futebol. Uma série de apresentações de tirar o fôlego (protagonizadas por ícones MPB e por novos valores locais) acendeu o farol, para animar e nortear a festa. Em momento-síntese, Paulinho da Viola cantou o Hino Nacional com introspecção ímpar, como nunca antes na história deste país.
Ao lado do carioca Antonio Pinto, o paulistano de 49 anos Beto Villares foi o diretor musical da cerimônia de abertura da Olimpíada brasileira, e do alto desse título fez prevalecer o título de uma festa musical 100% brasileira. Trouxe para tanto a larga experiência como compositor de trilhas sonoras para cinema (Cidade Baixa, O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias) e TV (Cidade dos Homens, Filhos do Carnaval) e produtor musical de artistas como Céu, Pato Fu, Zélia Duncan, Siba e Rodrigo Campos.
Numa conversa por WhatsApp, Beto respondeu a questões como as expostas no primeiro parágrafo, entre outras tantas. E foi bonita a festa, pá.
Pedro Alexandre Sanches: Qual foi exatamente sua participação na cerimônia de abertura das Olimpíadas do Rio?
Beto Villares: Fui, junto com Antonio Pinto, o diretor musical, compositor das trilhas originais e produtor das músicas da cerimônia de abertura.
PAS: Me chamou atenção imediatamente que, ao contrário do que aconteceu na abertura da Copa do Mundo do Brasil, só houve espaço para música e músicos brasileiros na abertura da Olimpíada. Como foi tomada essa decisão?
BV: Foi sempre pensado assim. Embora isso não garanta nenhuma unanimidade, é uma festa de exaltação e exposição do nosso país. Não fariam sentido artistas e músicas de fora. Essa escolha veio já dos diretores, Daniela Thomas, Fernando Meirelles e Andrucha Waddington, e combinou com o que eu e Antonio já achávamos melhor.
PAS: Não houve pressão para inserir estrelas internacionais na festa? Eu jamais imaginei que seria possível o que aconteceu, a partir da experiência da cerimônia da Copa do Brasil com Jennifer Lopez e Pitbull.
BV: Nenhuma pressão nesse sentido. A gente teve bastante liberdade, mais até do que em certas trilhas de cinema, onde os produtores interferem mais. Aqui eles deixaram a gente fazer o conteúdo.
PAS: Vocês jamais pensaram em colocar uma Lady Gaga, um Ricky Martin, uma Beyoncé?
BV: Não, nunca.
PAS: Até faria algum sentido, em se tratando de uma festa planetária, não?
BV: Acho que não. É o Brasil falando pro planeta, sobre o Brasil.
PAS: Na fórmula da Copa com Jennifer Lopez, Pitbull e a brasileira Claudia Leitte entendi, usando a boa vontade, uma intenção de mostrar e integrar as Américas…
BV: Entendi a vontade de fazer hits chicletes chatos.
PAS: Hahahaha.
BV: E outra coisa, em nenhuma Olimpíada fez-se isso, de ter artistas de fora do país-sede. Os britânicos, então, nem sabem que isso existe, rs.
PAS: Teve esta diferença também, a Copa quis compor o próximo sucesso, a Olimpíada preferiu mostrar a história da música brasileira, estou certo?
BV: Sim, mas nós fomos convocados em certo momento a participar de reuniões para compor algo assim, não para a abertura, mas para o evento. Mas não nos sentimos à vontade nem com vontade. Nossa proposta não levada a cabo era acharmos algum Tim Maia ou Jorge Ben Jor clássico e fazermos uma versão. Não gostamos dessa ideia de encomendar músic-hit-tema, mas aceito que tem gente que gosta e sabe até fazer. Não é a nossa praia.
PAS: Ah, então é uma característica da Olimpíada se deter na cultura do país-sede? Desculpe a ignorância, não sou muito ligado no assunto.
BV: Sim, é. Principalmente na abertura, que é menos show, mais dramatúrgica, mas também nas outras.
PAS: Fazer um “País Tropical” em inglês, por exemplo? Seria uma pedreira, né?
BV: Nem pensei nisso. O Jorge, então, nem vinha pra conversa, com um papo desses, rs.
PAS: Agora tem festa de encerramento? Pode ser diferente a linha, com artistas internacionais etc.?
BV: Acho que vai ser bem nacional, mas estou totalmente fora dessa. O produtor é o incrível Alê Siqueira, a diretora é do carnaval, Rosa Magalhães. Acho que vai ser bem bonito, aí é com eles.
PAS: Na prática, a direção desses grandes espetáculos de abertura e encerramento ficou a cargo da Rede Globo?
BV: Não! Foi do Fernando, Andrucha e Dani, contratados por Marco Balich e Abel Gomes (Balich Worldwide events e SRCOM). Eles foram os produtores executivos e criativos. Durante todo o processo tivemos toda a liberdade pra desenvolver as nossas músicas, mas eles sempre estavam acompanhando, às vezes questionando, mas sempre apoiando muito. Não houve outras interferências, a não ser nas questões mais tradicionais, do COI (Comitê Olímpico Internacional), como nos casos do hino olímpico e dos juramentos, que são momentos menos artísticos e mais protocolares, e não tivemos a mesma liberdade, de, por exemplo, fazermos algo como fizemos com o Hino Nacional. Mas, mesmo assim, a música da entrada da bandeira olímpica é nossa, e na dos aros olímpicos e da pira a gente fez o que quis. Eu não imaginava que ia ser assim, antes. Esses são os momentos mais simbólicos, e foi com a cara que a gente quis, sem fanfarras sinfônicas. Gosto também delas, mas a gente prefere fazer com a nossa cara.
PAS: Como foram imaginados a dramaturgia da cerimônia e o encaixe da música nela?
BV: Foram feitos em mais de um ano de trabalho, conversas, reuniões entre eu, Antonio e o trio de diretores. Muitos estudos, tentativas, ideias que vingaram e outras que não. Como qualquer processo criativo e coletivo. Porém com mais incertezas, pois tudo se define mais pro final, e isso é bem desgastante. Mas faz parte, pelo que pude aprender.
PAS: Qual era a ideia sua e do Antonio, quanto à linha musical a ser seguida?
BV: Não ser pomposo nem grandiloquente demais. Ser brasileiro, o máximo possível. Por exemplo, no acendimento da pira, momento final e simbólico, o solo é de rabeca, e a base, de violão e percussão. O Hino Nacional, outro exemplo, foi re-harmonizado e feito sem pompas, mas com carinho e amor, pelo Paulinho da Viola. Nunca se fez isso com o hino, num evento oficial, muito menos desse porte.
PAS: Paulinho da Viola cantando o Hino Nacional é de uma sutileza pra qual o mundo provavelmente não estava preparado. Dá para medir que qualidades de reação causou, aqui e fora?
BV: Difícil pra mim medir isso, mas é o momento pelo qual eu tenho mais carinho e orgulho de ter participado. Paulinho é um cara muito especial, e eu pude estar perto dele e sentir isso, e só tenho a agradecer muito por isso, e pelos outros ídolos que gravei nesse trabalho, além dos novos talentos e inúmeros músicos que conheci.
PAS: Foi maravilhosa a participação de Paulinho, não só no hino, como no chamamento aos velhos mestres do samba em “Bebadosamba”. Como foi imaginado esse momento?
BV: A Daniela, eu creio, imaginou isso tudo. Ela, Fernando e Andrucha são pessoas incansavelmente criativas. E nós somos assim também com o som, com a música. Aliás, tentamos ser, sempre. Porque no final de um processo desses está todo mundo muito cansado, e eles ainda têm que corrigir tudo que precisar, com a nossa ajuda, até onde der.
PAS: Falando, de início, sobre o time de ícones da MPB que vocês reuniram. Sei que as ausências são inevitáveis, mas faltaram Chico Buarque, Milton Nascimento, Roberto Carlos, Erasmo Carlos, João Bosco, Fagner… E as mulheres, Maria Bethânia, Gal Costa, Rita Lee, Alcione, Fafá de Belém… O que separa quem esteve presente de quem não esteve?
BV: Nem eu saberia te explicar direito. Acho que o que foi possível e o que não foi. Antes disso, o que foi pensado e o que não foi. Eu poderia ajudar a engrossar essa lista das ausências, mas não vale a pena. Basicamente isso, ou porque não se pensou, entre tantas outras ideias. Ou porque não foi possível, pois muita ideia não passou das primeiras conversas. É um trabalho de exposição gigante, e nada é tão fácil. Respondi? Rs. E também, vai ter muita gente ainda, nas três festas seguintes, o encerramento olímpico e a abertura e o encerramento paralímpicos. A abertura tem esse viés dramatúrgica, maior, e não é tão show. Mas se eu mandasse em tudo, e conseguisse ter todas as ideias, além de produzir e compor música, teria levado pelo menos o Hermeto Pascoal.
PAS: Imagino que Chico e Roberto são menos decifráveis para o mundo que Caetano Veloso e Gilberto Gil, não? Mas nesse caso Paulinho também seria… Quisera Luiz Gonzaga, Dorival Caymmi e Jackson do Pandeiro estivessem vivos, hahaha. João Gilberto?
BV: Pois é. Por isso que eu digo que não se explica tão facilmente. Teve a “Construção” instrumental, com uma menção a “Deus Lhe Pague” (ambas de Chico Buarque), na metrópole de Caxias, com um som mais industrial na percussão, e usando o arranjo bem colado no original, do Rogério Duprat, que já traz em poesia musical, todo o som de uma cidade louca. Essa lista não acaba nunca. Mas não dá pra imaginar que uma abertura de Olimpíada é um especial de música brasileira. Não é.
PAS: Opa, você tem razão, estava esquecido da presença indireta do Chico.
BV: Cartola! Tentamos e tentamos, e não achamos lugar no enredo. Podem reclamar. Eu amo todos esses nomes que você falou, mais que o Michael Jackson e os Rolling Stones juntos. Capiba teve! O Antonio fez o arranjo do Capiba, também há muito tempo.
PAS: Onde foi Capiba?
BV: Ninguém de São Paulo conhece. “Toada e Desafio”, primeira música depois do anúncio do Thomas Bach e do não-anúncio do Michel Temer. Na criação da natureza, antes dos índios.
PAS: Não reconheci o Capiba… /o\ De todo modo, houve a preocupação de colocar elementos musicais mais reconhecíveis pelo mundo, né? “Aquele Abraço”, “Garota de Ipanema”, “País Tropical”, “Aquarela do Brasil”, “Isto Aqui o Que É”…, que são músicas que falam mais especificamente do Rio de Janeiro que do Brasil como um todo, certo?
BV: Total, doce pra quem quer doce, e misturado, outros sabores, nem só um, nem só o outro.
PAS: Por que o “Canto de Ossanha”, Beto?
BV: Não fui eu que escolhi, mas adoro Baden Powell e, especificamente, os afro-sambas.
PAS: Quem escolheu?
BV: Posso perguntar pro Antonio.
PAS: Estou louco de hospício em ouvir um “fora Temer” gigante na voz de Elza Soares?
BV: Não tão louco. Também acredito que ela tenha sacado isso, gostado desse sentido. Eu gostei.
PAS: Não gerou desconforto na produção, na organização ou nas redes exibidoras a presença do termo “traidor” na voz de Elza?
BV: Não soube de nada.
PAS: Foi linguagem da fresta?
BV: O que é isso? Aproveitar uma fresta?
PAS: Um idioma histórico e clássico da MPB… 😉
BV: Depois vou ler. De todo modo, teve muita mensagem assim, digamos, contra a atual agenda. Lea T conduzindo a delegação brasileira, a destruição da natureza e o progresso maluco. Aliás, em matéria de meio ambiente, já estávamos mal antes, mas, como vemos, sempre pode piorar.
PAS: Elza Soares integrou um bloco de resistência feminina, protagonizado por jovens e talentosas artistas do funk. Pode falar um pouco sobre essas duas vertentes do roteiro, a presença feminina e as linguagens musicais atuais (funk, tecnobrega etc.)? Esse bloco se mostra até agora o grande acerto do roteiro para o Brasil, se pensarmos no desempenho da judoca Rafaela Silva e de várias outras atletas.
BV: Legal que você diga isso, porque muita gente critica tudo, como se essas meninas e a Elza e as novas linguagens urbanas e periféricas não tivessem tendo esse destaque, tanto na festa de abertura como nos esportes.
PAS: A presença de Anitta deixou William Waack bem alterado…
BV: E foi! Rs.
PAS: O que vocês quiseram fazer com as linguagens mais jovens, funk, rap, tecnobrega, Ludmilla, Karol Conka, Anitta, Gang do Eletro…?
BV: MC Sofia é poderosa, já com 12 anos, e quisemos que ela e a Karol dessem um recado sobre esse poder. Quisemos ter justamente o novo, ao lado ou misturado com a MPB, a eletrônica do funk e do Pará, essa última mais desconhecida daqui e de fora do Brasil também. Vou procurar depois os textos dos diretores para releases, podem ajudar nessas respostas também, porque eles iam trazendo a maioria dessas ideias, e não fica completo se você tiver só os meus porquês.
PAS: Certo, seria ótimo depois eu fazer uma conversa com Antonio também, mas estou achando legal esse papo entre um dos milhares de jornalistas envolvidos de algum jeito com o evento e um dos produtores envolvidos diretamente. Pessoalmente, eu morreria de felicidade no momento em que Joelma entrasse no Maracanã se mostrando exatamente como ela é. O mundo não estaria preparado? E o Brasil, estaria?
BV: Acho que não. Essas questões dividem o público, você não acha? O quanto reclamaram antes, que teria show da Anitta e da Ludmilla, que teria Wesley Safadão em vez de Heitor Villa-Lobos.
PAS: Com certeza dividem. Anitta dividiu muito?
BV: Anitta, até agora, não dividiu. Não vi ninguém dizer que gostou, assumidamente.
PAS: Hahahahahahaha.
BV: Eu gostei dela, que aliás cantou muito bem.
PAS: Mas aí Caetano e Gil atuaram como escudeiros, né? Confesso que eu preferia ver a Joelma no meio dos dois…
BV: Kkk. Agora que você tá falando, queria ter levado o Chimbinha!
uliS: Pergunto da Joelma como poderia perguntar de qualquer astro sertanejo que represente nosso lado mais interiorano e, digamos, cafona. Há uma resistência do Brasil quanto a se mostrar assim para o mundo e para si mesmo?
BV: Olha, creio que há, sim. Há também um distanciamento dessa turma da qual faço parte pro sertanejo e pra alguns estilos que são bem populares. É verdade.
PAS: Porque, puxa, Joelma, como Gaby Amarantos, é Beyoncé, Rihanna e mais uma dezena de estrelas internacionais que a garotada brasileira ama amar, todas numa só. Só que muita gente não gosta de ser ver nesse espelho.
BV: Gaby acho que é mais gostada, por uma galera.
PAS: Como foi o trabalho de composição das trilhas originais?
BV: Nós começamos o trabalho de criação e de pensar a produção no primeiro semestre do ano passado. Muita coisa já começou a surgir, mas os temas originais foram se desenvolvendo mais neste ano, ao mesmo tempo em que o espetáculo se arrematava. Teve a ajuda e a participação de muitos músicos, como os irmãos Sami e William Bordokan (instrumentos árabes), Ricardo Araújo (guitarra portuguesa), Siba, Ricardo Herz (violinos e rabecas), Fanta Konaté e Bukassa Kabenguele, Marlui Miranda, Teco Cardoso, Mauricio Badé e muitos, muitos outros. Eu e o Antonio, sem querer, fomos nos imitando em alguns temas e harmonias, e isso depois pareceu até combinado. É engraçado e foi legal, porque foi um processo em que cada um ia fazendo uma parte, com sua equipe, e depois começamos a juntar mais as coisas, perceber as sequências. Eu fiz muita coisa, joguei muita coisa fora, e o Antonio passou por isso igual. Trilha é assim. Eu e ele já somos amigos há mais de 20 anos, já tivemos estúdio juntos por uns oito anos, mas esse é o segundo trabalho que fazemos juntos, de fato. O primeiro foi o filme Menino Maluquinho 2 (inspirado na obra de Ziraldo, pai de Antonio Pinto e Daniela Thomas), em 1998. Eu sou muito fã dele, desde que nos conhecemos. É um músico intuitivo, enérgico, e gênio das melodias. A gente sempre teve trabalhos e ritmos diferentes, sempre se admirando, e se enchendo o saco ao mesmo tempo… Lembro, em algum momento da década passada, ele passando na minha sala: “Para de fazer esse Richard Clayderman“. E eu jogava alguma trilha fora. Ja enchi o saco dele bastante também, sempre para o bem, em todos casos. A gente se ama. E agora fizemos juntos uma trilha de abertura de Olimpíada! Só deu pra acreditar vendo.
Graças a Deus não teve a presença de nenhuma dupla caipira,só por isso,a abertura e a encerradura merecem todos os elogios.