Imaginem um crítico de cinema bipolar: ah, como eu amei esse filme; putz, como eu odiei esse filme. Agora imaginem que ele vai resenhar o filme que é o território sagrado de um exército de nerds, do tipo que ameaça os que discordam dele.

Bom, temos então como brincadeira do dia esse bizarro desafio: um crítico binário, de dupla personalidade, põe-se a cutucar o Estado Jedáizânico engatilhado. O Médico e o Monstro avalia o novo filme da saga estelar mais badalada.

AMEI STAR WARS – O DESPERTAR DA FORÇA

Reciclagem. Essa é a palavra-chave da genialidade. Você não tem mais a originalidade a seu favor, então o que resta? Reciclar com grande presença de espírito. Foi o que o J.J. Abrams, diretor de Star Wars – O Despertar da Força, fez.

Senão, vejamos: a protagonista, Rey (Daisy Ridley), é lixeira, recicladora em um planeta-lixão (assim como o era Luke Skywalker, protagonista do primeiro filme). Ela e seus amigos (reciclados de episódios antigos) têm que salvar a galáxia numa nave que já era obsoleta 30 anos antes. Tipo ir disputar a Fórmula 1 com um fusquinha – puro charme, não? A própria arma mortal é uma Estrela da Morte reciclada, devidamente inchada por artimanhas tecnológicas.

O vilão usa uma máscara e uma voz metálica recondicionadas. As situações são recicladas de filmes de terror espaciais (os rathaks (?), criaturas aprisionadas por Han Solo em sua estação-zoológico, são Aliens vorazes dignos de Ridley Scott) . Até as jaquetas adquirem protagonismo de brechó, com o bom humor que isso requer.

As cenas são quase todas recicladas. É restaurado o duelo shakespeariano na ponte suspensa no espaço, agora com papéis invertidos (dessa vez há até um juramento hamletiano na presença da caveira). Mas o trágico não é o tom. O humor permeia tudo, dando-se um sopro de vitalidade até nas artimanhas antigas, como a presença cômica e defeituosa dos robôs na elucidação das mensagens cifradas. O vôo exímio do piloto dentro da mortífera estrutura metálica é igual. As perseguições, as batalhas, os adágios: tudo se repete e nada se repete ao mesmo tempo, o que dá a medida do terreno pantanoso em que esse filmaço se equilibra.

O bar de alienígenas que tem uma banda que toca um folk jazz é exatamente como a Mos Eisley Cantina do episódio inicial. Os coadjuvantes são vintage, são ETs de cara de borracha risíveis como já o eram em 1977. Isso faz com que o espectador consiga rir de si mesmo, de sua capacidade de auto-ironia, o que acaba sendo uma ousada e feliz estratégia.

Apesar da reciclagem de protagonistas das sagas pioneiras, seu uso no filme é semelhante ao do “ready made” (na acepção de Warhol: objetos deslocados de sua função original). Peças de uma indústria de produtos em série que são reapresentados com outro significado. Portanto, não foi necessário aplicar neles a medicina cosmética. O que torna leve e adequada a presença de Harrison Ford, Carrie Fischer e os outros na trama.

O que mais preciso dizer para confirmar que é uma obra-prima?  Colocar um negro, Finn (John Boyega), nascido escravo em campo de concentração com número de série, para se libertar autonomamente do jugo de um déspota e se apresentar como liderança de uma nova revolução espaço-socialista foi um golaço da obra.

Ah, claro, as interseções com clássicos de todos os tempos. Como em Harry Potter, são misteriosas vozes na cabeça de Rey que a levam para o porão de Maz, local em que encontrará seu destino. Como em A Espada era a Lei, seremos lembrados que somente uma pessoa de coração puro poderá arrancar da colina a espada que o fará rei (ou rainha, no caso). A garota Cinderela cheia de pureza que espera pelo príncipe encantado enquanto limpa o deserto é outra evidente analogia.

ODIEI STAR WARS – O BLABLABLÁ DA FORÇA

Ora, o dilema é sempre o mesmo para o cinemão mainstream: podemos até aceitar um protagonista negro, mas não vamos deixar JAMAIS que ele consume seu amor com a mocinha branca. Vamos deixá-lo em coma antes disso, nada de happy end. Parece o beijo gay da novela brasileira, sempre uma cascata homérica.


Mas não é só isso: o casal de meia idade, Leia e Han Solo, declara ainda paixão e amor um pelo outro, mas não pode rolar beijo, intimidade, apenas carinho na cabeça um do outro. Afinal, a infinidade de criaturas preconceituosas nos cinemas (que nos deram US$ 250 milhões em uma semana) pode não gostar de dois velhos que parecem os avós deles fazendo coisas impensáveis na sua idade, certo?

O irritante sorriso de comercial ortodôntico ao estilo Keira Knightley dessa menina Jakku que arrumaram para protagonista esconde uma evidente limitação dramática, mas quem se importa? Sua personagem é toda cheia de blábláblá ambientalista, mas no final das contas ela devasta uma floresta inteira na cena do duelo com o irmãozinho (êpa, terá sido isso um spoiler de pura crueldade?).

E o vilão, Kylo Ren? Como acreditar nas motivações de um tipinho daqueles? Que tipo de imbecil justifica um personagem que é levado a exterminar nações (planetas) inteiras somente por que o pai costumava largar o doce lar por temporadas muito longas para enfiar-se no espaço numa nave velha com um amigo peludo afetuosíssimo (o que mais chora sua perda)?

Senhores, o que é aquela mistura de Edna Moda (estilista de Os Incríveis) com Marina Silva (estilista do Acre) que atende pelo nome de Maz Kanata e não tem outra função na história senão a de guardar por décadas uma espada velha que ela sabe para que serve?

E o Líder Supremo naquele trono de conselheiro de Lanterna Verde? Reciclagem também? Sinceramente, onde arrumaram aquele Eduardo Cunha pós-Palpatine? Estava ali todo o tempo e 100 milhões de espectadores nunca notaram?

E para mim parece óbvio o porquê de as cenas serem todas recicladas – quando um fanático reconhece os códigos que fizeram dele um fanático, fica manso, não vê defeitos, acha tudo lindo. O torcedor debaixo da bandeira do clube na arquibancada agita o pano mesmo que não saiba como está sendo o jogo lá embaixo.


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Jotabê Medeiros, paraibano de Sumé, é repórter de jornalismo cultural desde 1986 e escritor, autor de Belchior - Apenas um Rapaz Latino-Americano (Todavia, 2017), Raul Seixas - Não diga que a canção está perdida (Todavia, 2019) e Roberto Carlos - Por isso essa voz tamanha (Todavia, 2021)

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