“Quem Tem Medo de Música Caipira?”, pergunta o título de uma canção de 1972 do músico fluminense Ruy Maurity. Integrante do LP Em Busca do Ouro, creditado a Ruy Maurity & Trio, a moda de viola pós-moderna participava da movimentação que ficaria conhecida como rock rural e atacava um tabu que o Brasil não estava preparado para enfrentar – talvez não esteja ainda hoje, 43 anos mais tarde.

Ouço “Quem Tem Medo de Música Caipira?” e outras MPBs de Ruy dentro do ônibus, na estrada que liga Asunción, no Paraguay, a Foz do Iguaçu, no Paraná, durante a expedição íntima que faço às minhas próprias origens de brasileiro paranaense alourado filho de mãe mestiça gaúcha e pai índio catarinense nascido no leito da Guerra do Contestado (o que diabos foi isso?, que nunca estudei na escola?).

Estou no meu fone de ouvidos, mas, um banco atrás, um casal de paraguayos ouve seu radinho a todo volume, incomodando o resto do ônibus (cultura incomoda?). Brigo com os sons deles ouvindo intimamente Almir SaterTonico & TinocoTetê EspíndolaTião CarreiroRenato TeixeiraCascatinha & InhanaSérgio Reis, Pedro Bento & Zé da EstradaPerla (a única artista legitimamente paraguaya que conheço).

De repente, me dou conta de que a riqueza do momento se encontra no radinho do casal paraguayo ao lado, muito mais que nos sons que eu já conheço de cor e salteado. Desligo “Quem Tem Medo de Música Caipira?” etc. e tento ouvir – e entender – o que os companheiros de viagem estão ouvindo.

Rola muito daquilo que eu chamaria de sertanejo universitário em castelhano – eu gosto (e sou suspeito para falar, porque gosto à beça dos sons de sanfona do meu conterrâneo Michel Teló e aparentados).

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Rola uma espécie de tecnobrega paraense também em castelhano (gosto!) – me volta à mente o termo “retrocumbia”, que li num cartaz de baile durante o trajeto Foz-Asunción, de passagem por alguma cidade do interior florestoso do Paraguay (como é florestal o interior paraguayo!), antes de o ônibus passar perto do lago azul de Ypacaray. Será que isso é retrocumbia? Eu gosto.

Rola – surpresa! – um funk brasileiro em português que fala de “perereca” e de “novinhas”.

Rola – surpresa máxima! – uma versão de “É o Amor” (1991), de Zezé di Camargo & Luciano, cantada em português, mas com forte sotaque castelhano, paraguayo, portunhol, brasiguayo, espanhol ou seja lá o que for. O casal canta junto, apaixonadamente.

Rolam lágrimas dos meus olhos mortos de medo de música caipira.

“Quem tem medo de música caipira?”, a esta altura, soa como uma pergunta antiga. Tenho vontade de sair correndo pelado pelas florestas do Alto Paraná, gritando-perguntando por que, por que (por quê???) temos (tenho) tanto medo da música caipira.

A resposta me assombra há anos, e é tão evidente nesse trajeto que passa pelos guaranis paraguayos e passará pelos kaingang e xokleng e botocudos e xapecós das terras banhadas pelo rio Uruguai (divisa SC-RS) onde nasceu seu Zé meu pai (1929-2013). Temos medo, pânico, terror da música caipira (sertaneja, sertaneja universitária, tecnobrega, axé, forrozeira, lambadeira, vanerona etc. etc. etc.) porque precisamos conservar oculto no fundo de nós o sangue indígena que corre dentro de nossos corpos.

Temos medo da música caipirossertaneja (bom dia, Luiz Gonzaga!, boa tarde, Teixeirinha!, boa noite, Inezita Barroso!) porque ela é a voz lamentosa dos índios brasileiros que se encontrou com as violas portuguesas que violaram as índias e os índios brasileiras no processo de estupro culturalmente conhecido como (………coloque seu próprio apelido no estupro………..). Ninguém gostamos de lembrar que somos todos filhos de um (de muitos) estupro(s).

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Mas o recalcado, menina, ele sempre volta, ele sempre volta e nos pega pelo pé. Tudo é música caipira e sertaneja e cabocla e indígena entre a rodoviária do Tietê e as cataratas do rio Iguaçu (uma das sete maravilhas do mundo de propriedade de nosotros índios da Tríplice Fronteira Argentina-Brasil-Paraguay embora finjamos que tais maravilhas nem nos pertencem).

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Percebo isso agudamente no Parque das Aves, anexo ao lado brasileiro do Parque Nacional das Cataratas (instituído em 1939 pelo gaúcho Getúlio Vargas, o único ditador de pendores direitistas que a elite bandeirante paulista e seus acólitos odeiam). Ali, a primeira canção que ouço ao longe é a trans-paraguaya “Índia”, numa versão em português que não é nem dos paulistas Cascatinha & Inhana nem do capixaba Paulo Sérgio nem da baiana Gal Costa nem da paraguaya Perla.

A propósito, existe alguma canção mais linda que “Índia” no planeta Terra?

Em Caçador (SC), cidadela do Contestado onde meus pais se casaram em 1954, ouço funk brasileiro bombando nos soundsystems dos automóveis.

Na rodovia que passa por Pato Branco, Mariópolis e Palmas (PR) antes de chegar às terras evangelizadas de Santa Catarina, ouço em meu fone interno Roberto Carlos, Roberto Carlos, Roberto Carlos: “Minha Tia” (1976), “Lady Laura” (1978), “Meu Querido, Meu Velho, Meu Amigo” (1979), “A Guerra dos Meninos” (1980), o suprassumo da música caipira sertaneja indígena capixaba do Robertão.

Já imaginou Roberto secundado por harpas paraguayas?, eu já. Existe a versão de “Índia” por Roberto, uma interpretação tão resistente como uma mula empacada – mas existe.

Roberto Carlos nasceu em Cachoeiro do Itapemirim (ES), em meio às índias capixabas naraleão. Nasceu, Roberto Índio do Brasil, em 19 de abril: dia do índio, dia do nascimento do ditador Getúlio Vargas.

1972 Em Busca do OuroRuy Maurity segue zumbizando em meus ouvidos. Quem tem medo da música caipira? Quem tem medo dos índios brasileiros? Quem temos medo de nós mesmos? Quem temos medo do Brasil? Por que sempre tivemos tanto medo de nós mesmos?

 

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