‘Cadê Roger? Cadê Roger?’ Ele está em São Paulo

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“E a cidade se apresenta/ Centro das ambições/ Para mendigos ou ricos/ E outras armações/ Coletivos, automóveis,/ Motos e metrôs/ Trabalhadores, patrões,/ Policiais, camelôs/ A cidade não pára” (trecho de “A Cidade”, de Chico Science)

Amigo de Chico Science, Roger de Renor (imortalizado no refrão “Cadê Roger, cadê Roger, cadê Roger ô?”, de “Macô”) está em São Paulo para uma curta temporada do projeto Som Na Rural. Literalmente, mendigos, ricos e outras armações, trabalhadores e patrões, policiais e camelôs são convidados a participar de uma grande festa artística-musical que gira em torno de um automóvel, uma Rural Willys ano 1969, e cujo tema é a cidade, o centro das ambições.

Show do Coco do Miudinho da Xambá no Som Na Rural - Foto: Facebook
Show do Coco do Miudinho da Xambá no Som Na Rural – Foto: Facebook

Coincidência? Não, coerência. O projeto, ideia de Roger e do parceiro Niltinho Pereira, surgiu seis anos atrás e ambiciona ocupar os espaços públicos com a música. Em São Paulo, no sábado (13) a Rural vai estacionar no Largo do Paissandu, no centro de São Paulo, e contará com a apresentação de Karina Buhr, a partir das 16 horas. No dia 19, o projeto vai estar com Fabio Trummer SSA no Largo da Batata (horário a ser definido). Às 15 horas do dia 21, em plena Virada Cultural, o Som Na Rural vai aportar no Sarau do Binho, na Praça João Tadeu Priolli, em Campo Limpo, zona sul de São Paulo. O vídeo abaixo dá uma ideia do projeto:

Ocupar espaços públicos não é uma expressão à toa para o Som Na Rua. Roger e Niltinho, ambos produtores e agitadores culturais, se engajaram na luta de movimentos contra a especulação imobiliária no Recife. O principal deles é o Ocupe Estelita, que surgiu para tentar reverter o projeto de expansão da capital pernambucana junto de uma área de 10 hectares no Cais José Estelita, próximo ao centro histórico da capital pernambucana. Se dependesse da vontade do governo e do setor de construção, seriam erguidas 13 torres comerciais e residenciais de 12 a 38 andares.

A imprensa ignorava a ação dos ativistas e se recusava a citar o assunto nas suas páginas de cidades ou de política. Ao perceberem a dimensão e a importância de resistir, Roger e Niltinho decidiram dar uma força à luta popular. Levaram o Som Na Rua, o que significava introduzir a arte onde antes só havia a pauta banida dos meios de comunicação. Mais que isso, conseguiram com suas histórias pessoais que remontavam à época do manguebit mobilizar artistas para o Cais José Estelita. De uma hora para outra, o bloqueio midiático foi furado. Shows musicais ganharam as páginas de cultura. Até um endereço do local foi estampado com as tintas dos jornais: Espaço Estelita.

Otto, Catarina Dee Jah, Lia de Itamaracá, Nação Zumbi, Karina Buhr, Devotos do Ódio, Lirinha, Marcelo Jeneci, Criolo e JuveNil Silva tocavam de graça e pela causa no cais. Apresentações de teatro, circo, dança e literatura completavam a ebulição cultural do local. Um público de 5 mil a 6 mil pessoas ia ver seus ídolos e ouvir a mensagem de que ali a música era uma ação política. “Não é só aquela coisa de o artista ir ao palco e dizer ‘Pessoal, muita consciência na hora de votar’. A gente não pode mais se dar ao luxo de fazer a política só com a música”, diz Roger, que conversou com FAROFAFÁ.

Roger de Renor e Cátia de França - Foto Theia Produtores Associados
Roger de Renor e Cátia de França – Foto Theia Produtores Associados

O Ocupe Estelita faz parte de um movimento de ocupação do espaço público que se espraia natural e velozmente. O Festival Baixo Centro, o Buraco da Minhoca, A Batata Precisa de Você, em São Paulo, a festa Disritmia, no Rio, o Espaço Comum Luiz Estrela, em Belo Horizonte, servem de exemplos. Em todos, algo em comum, o engajamento movido também pela arte. Em tempos de absoluto silêncio e falta de engajamento político de grandes artistas da música popular brasileira, é salutar saber que há uma luz no fim do túnel (não, não estamos nos referindo ao Lobão).

Em maio deste ano, o músico Helder Vasconcelos, ex-Mestre Ambrósio, comentou com a veterana Cátia de França que iria ao Cais José Estelita. No dia seguinte, durante mais um Som Na Rural, a cantora paraibana estava lá. “Eu não podia deixar de estar aqui”, disse ela. Muitos choraram de emoção.

A caminhonete Rural veio de Pernambuco em um caminhão-cegonha para São Paulo, mas já teve de encarar o duro trânsito da metrópole. E já foram realizados dois encontros, em pontos extremos da Grande São Paulo. Primeiro no Capão Redondo, zona sul da capital, onde fizeram um show com Zé Brown, Gaspar ZÁfrica, Grupo Bongar e outros convidados. Depois, diante de uma plateia de alunos de Diadema, o projeto convidou Matéria Rima, Zé Brown e Nicolas MC.

Uma série de felizes coincidências tem cruzado o caminho de Roger e Niltinho por São Paulo. A Rural já não é mais a mesma. Está velhinha. Por mais que tenham tentado dar voltas mais longas para evitar as ladeiras do Capão, o motor esquentou demais. Descobriram que ali a saída seria uma só: procurar o mecânico Di, ninguém menos que o homem que cuidava de uma Landau de Mano Brown. Em Diadema, o motor voltou a aquecer. Aconselharam a procurar o mecânico Marco, um grande especialista em carros antigos. Tanto que foi logo perguntando se aquela Rural Willys era de Cabo de Santo Agostinho, em Pernambuco.

O “ruralista” Roger afirma que só mesmo trocando o motor castigado da Rural para dar prosseguimento ao sonho da dupla de levar o Som Na Rural para todo o país. E não em cima de um caminhão-cegonha, mas circulando com as quatro rodas. “A função desse projeto é de promover uma festa cultural de praça, que seja parte de uma ação política e não só chegar num ponto e botar um DJ para agitar a galera”, explica.

Orquestra Contemporânea de Olinda
Orquestra Contemporânea de Olinda

Muitos já devem ter se lembrado de que Roger não é um personagem qualquer na cena cultural pernambucana. Nos anos 1990, ele era dono do bar Soparia, na Praia do Pina, o ponto de encontro de artistas do manguebit. O Soparia, nas palavras de Roger, era uma espécie de pré-Orkut, uma comunidade para as pessoas se encontrarem, quando não havia celulares, nem lojas de conveniência e as cervejas vendidas não eram long neck. “A pessoa dizia que ia na festa e se não voltasse em 40 minutos é porque estava boa”, diverte-se.

Nos anos seguintes, Roger tentou montar outro bar, mas que só durou dois anos no Recife Antigo. Migrou, então, para a área audiovisual. Mais que isso, tornou-se militante da comunicação pública. Com um grupo de ativistas pela causa, conseguiu, na época do governo de Eduardo Campos, a tarefa de redesenhar a TV Pernambuco, pública, mas que servia a interesses políticos de ocasião. Criaram um plano que tornava a emissora efetivamente pública. Previam gastos iniciais de R$ 12 milhões, mas a proposta jamais saiu do papel. Quando Campos morreu, em agosto de 2014, foi o que bastou para sepultar de vez esse plano.

O sonho por uma comunicação pública e democrática permanece vivo: “As pessoas ricas não vão andar de ônibus porque têm motorista, não vão andar de bicicleta porque ganharam uma moto e não vão fazer outra coisa a não ser continuar anunciando na TV Globo para ganhar a disputa simbólica”, diz Roger. O que significa, em sua visão, disputar todos os outros espaços possíveis, como as redes sociais. E, acima de tudo, relembrar os ensinamentos de Chico Science, que invocou a luta social antes mesmo de ter lido o também pernambucano Josué de Castro, o ativista que dedicou sua vida ao combate à fome (“Geografia da Fome”, leiam!).

O Som Na Rural surgiu como um programa de televisão transmitido pela TV Brasil. Roger de Renor, dublê de piloto, conduzia convidados na Rural Willys pelas ruas de capitais e cidades do interior do Nordeste, enquanto conversavam sobre a trajetória dos artistas. O mesmo formato durou até 2013, quando o projeto se tornou independente e migrou para a web.

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