um conto da era da botinada justificada

      Na clínica São Carlos, em Fortaleza, houve um momento na longuíssima noite passada em que Neymar ficou num estágio entre acordado e dormindo. A dor nas costas era tão grande que ele não conseguiu adormecer completamente. Nesse espaço R.E.M. intermediário, to my knees failed, Neymar sonhou (ou imaginou) que estava num grande tribunal em cuja plateia sentavam-se todos seus antigos marcadores.

     Estavam lá Piris, do São Paulo. Camilo Zuñiga, da Colômbia. Tata González, do Uruguai. Chicão, do Corinthians. Jefferson, da Catanduvense. Dedé, do Cruzeiro. Tinha gente do Sevilha, das seleções espanhola, uruguaia e argentina, do Botafogo de Ribeirão Preto, do Coritiba, da Matonense, do Internacional e do Grêmio de Porto Alegre. Gente que levou chapéu, que levou no meio das canetas, que teve a impressão que a bola passou pelo meio do seu estômago, que não viu a bola ou que chutou o próprio companheiro na vã tentativa de pará-lo. O juiz era Sandro Meira Ricci, que Neymar insinuara ser dedos-leves em uma declaração no Twitter. 

    O torcedor-secador-símbolo estava no júri, e já tinha escrito duas frases em sua caderneta: “Não vinha jogando bem há dois jogos…” e “Futebol é jogo de homem, todos batem, todos levam!”.

     Juiz: “O sr. está aqui sendo julgado pela acusação de ser piscineiro, cai-cai, ator de quinta categoria. O que o sr. tem a dizer em sua defesa?”. Neymar tentou dizer alguma coisa, mas a dor nas costas foi tão lancinante que o pulmão travou e o ar que liberou não conseguiu fazer vibrar nenhuma corda vocal. Muricy, vendo sua agonia, pediu a palavra.

     “Eu nunca tinha visto, em toda minha carreira, alguém fazer as coisas que ele fez”. O juiz inquiriu o treinador. “O sr. então diz que é falsa a acusação de cai-cai?”. Muricy só sorriu e respondeu: “Não, o que eu disse foi que sempre achei que ele era de borracha. Ninguém que apanhou tanto podia ficar sem fraturas por tanto tempo”.

     O torcedor-secador-símbolo, que já torceu pelo México, pelo Chile e achou a Colômbia o maior time do mundo pela eternidade de uma rodada, berrou um palavrão. Um outro sãopaulino gritou: “Ar, ar, ar, Lucas é melhor que Neymar!”. O juiz pediu ordem no recinto. Um argentino gozador com uma coluna vertebral de gesso foi retirado pelos ordeiros PMs da Vila Madalena. O juiz pediu o depoimento de Zuñiga. Este foi breve e falou olhando fixamente para Muricy. “Não há Justiça que não sonegue, não há costela que não envergue”.

     O advogado era o treinador Dorival Júnior. Ele estava mudo. Perdera o emprego por causa do réu, em priscas eras. Abriu e fechou a apostila com a defesa que presumivelmente tinha preparado, mas não disse nada. Passou a palavra para a acusação.  O promotor era o ilustríssimo Apresentador de Mesa-Redonda de TV de Oliveira. Ele leu seu depoimento: “Em 4 anos jogando pela seleção, o réu fez 54 gols, 76 se consideradas as categorias de base. O Brasil estava em 19º lugar no ranking da FIFA quando ele estreou, e voltou ao topo em apenas três anos. Acho isso um mau exemplo: se continuarmos tendo bons resultados, podemos perpetuar um péssimo modelo para o mundo. Um futebol que não é padrão Fifa, que não persegue a meta da infalibilidade, que não passa férias na riviera francesa, mas que ganha mesmo assim”.
    Sandro Meira Ricci então leu a sentença. Tinha poucas linhas e pareceu um pastiche de Mário Faustino:

     “Cruel foi teu triunfo, torpe Neymar. Celebraram-te tanto, te adoravam. Do fundo atroz à superfície, altar de teus deuses solares. Considero-te culpado de alimentar o sonho de destampada alegria e de improvisação infinita do futebol. Estarás assim privado para toda a eternidade de sonhar o teu momento. Que entrem as botinadas, que saiam as chuteiras aladas. Teu castigo será o cerco sem medidas dos bajuladores e editorialistas piegas. O coro dos falsos compungidos”.

     Neymar suspirou por um momento e a dor deu um tempo, o tribunal se foi. Sentiu um doce alívio. Ao seu lado, a mão da linda Bruna massageava na sua mão o espaço entre os dedos nos quais a gente separa aqueles meses que têm 31 dias e aqueles meses que têm apenas 30.
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Jotabê Medeiros, paraibano de Sumé, é repórter de jornalismo cultural desde 1986 e escritor, autor de Belchior - Apenas um Rapaz Latino-Americano (Todavia, 2017), Raul Seixas - Não diga que a canção está perdida (Todavia, 2019) e Roberto Carlos - Por isso essa voz tamanha (Todavia, 2021)

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