O músico Gilberto Gil relembra, em primeira pessoa, o Quarteto Uirapuru, de Salvador, importante para o início de sua formação musical, ainda na década de 1950. Conta, ainda em primeira pessoa, que o grupo foi mais tarde renomeado Os Irapuãs. A jornalista Regina Zappa, biógrafa de Gil, intervém e complementa, com palavras próprias: naqueles tempos idos, o Quarteto Uirapuru (ou Os Irapuãs, não se entende bem) “conseguiu gravar um disco ou dois”.

Estamos na página 52 de Gilberto Bem Perto, biografia (e/ou autobiografia, não sabemos ao certo) lançada neste ano pela editora Nova Fronteira e assinada, assim mesmo, por “Gilberto Gil e Regina Zappa”. É barra-pesada atravessar esse livro em meio ao espinheiro da “polêmica das biografias”, protagonizada desde outubro deste ano pelo Procure Saber, de Gil, Caetano Veloso, Chico Buarque, Djavan, Erasmo Carlos, Milton Nascimento e Roberto Carlos.

Talvez não seja um tópico de enorme importância, mas tentemos, via Google, Wikipedia etc., descobrir quem foram os Uirapurus, Irapuãs, esses passarinhos. A internet não ajuda muito. Há um Grupo Uirapuru ou dois – um deles é de Campo Grande, Mato Grosso, um “grupo de baile”. Há um Quarteto Uirapuru, mas é de cordas, e carioca, e foi formado em 2002. Há um Conjunto Uirapuru, em Ananindeua, no Pará – mas se trata de um endereço, não de um grupo musical.

Os_Uirapurus_Os_Uirapurus_1968_CAPAExiste um grupo Os Uirapurus, que lançou um LP em 1968 pela extinta gravadora Odeon (eu tenho esse disco!). Denis Brean (compositor do clássico “Bahia com H”, regravado em 1981 por Gil com Caetano e João Gilberto) explica na contracapa do LP que entre os integrantes dos Uirapurus há gente de Minas Gerais, Rio de Janeiro, Mato Grosso, São Paulo e… Bahia. O site Mercado Livre dá pistas de que existe, sim, (pelo menos) um compacto antigo creditado aos Irapuãs – mas, ai, que labirinto. A internet não é capaz de resolver todos os enigmas do mundo.

A memória de Gil é imprecisa. Não há problema nisso: o artista Gil tem todo o direito de se lembrar das coisas do mundo imprecisamente (o biógrafo Gil talvez nem tanto, mas deixemos de lado por ora). Na contramão, como admitir que uma escritora, pesquisadora, jornalista e ex-editora do Jornal do Brasil escreva, numa biografia oficial, que tal grupo lançou “um disco ou dois”? É um escárnio para com todos os biógrafos, historiadores, jornalistas etc. que pastam capim por aí.

Foi um disco, Regina, ou foram dois? Poderiam ter sido três, quatro? E se seu parceiro estiver por demais esquecido e esse grupo nem sequer tenha existido? Como ficamos?

Ficamos mal. Regina Zappa, segundo a orelha do livro em dupla, “é uma jornalista carioca com uma carreira repleta de projetos bem-sucedidos” – entre eles, vários livros sobre (e com) Chico Buarque, inclusive Para Seguir Minha Jornada (2011), editado também pela Nova Fronteira, em moldes parecidos com os desse novo de Gil, embora não assinado em dupla.

Trata-se, entendemos, de uma dupla “de sucesso” a que assina Gilberto Bem Perto. Nem por isso o produto resultante deixa de parecer desleixado, descuidado, desrespeitoso para com biógrafa e biógraf(ad)o.

Fiquemos com apenas mais um exemplo tolo, bobo, banal. Na página 71, Regina fala sobre a criação inaugural de Gilberto, “Felicidade Vem Depois”. Olhe só o que ela escreve: “Gil nunca gravou esta sua primeira composição (…). A canção, no entanto, foi gravada por Paulinho da Viola. Aliás, cantada por Gil, apareceu apenas em um compacto encartado na revista Bondinho que saudou sua volta ao Brasil após o exílio.”

Ora bolas, Regina! Gil gravou “Felicidade Vem Depois” uma ou nenhuma vez?

selos-gil-1972-o-bondinhoA pesquisadora não precisava ter ido longe para desfazer a dúvida. No livro também oficial Gilberto Gil – Todas as Letras (Companhia das Letras, 1996 e 2003), organizado pelo jornalista e músico Carlos Rennó, está tudo explicadinho, tim-tim por tim-tim: “Gravado originalmente por Gilberto Gil em 1972, pela Philips, em compacto especial da revista O Bondinho (no 34) e depois regravada por Paulinho da Viola no CD Songbook Gilberto Gil, vol. 3 (Lumiar, 1992).”

Trata-se de uma gravação informal, registrada por jornalistas d’O Bondinho – mas existe, e foi relançada em CD em 2010, na coletânea de raridades Retirante, do selo Discobertas. Está resolvido, Gil gravou “Felicidade vem depois”, uma única vez (até prova em contrário).

O que os vaivéns das linhas anteriores tentam demonstrar é que, ao contrário do que o Procure Saber chegou a advogar, o fato de uma biografia ser autorizada ou não autorizada, encomendada ou gratuita, oficial ou à revelia, não diz absolutamente nada a respeito da biografia. No caso em questão, infelizmente, Gil parece desleixado consigo próprio, como um biógrafo de araque faria, e como de forma alguma estamos acostumados a vê-lo fazer.

Há blocos inteiros de texto repetidos tal e qual, com a diferença de poucas páginas. Gil e (ou?) Regina parecem ter se atrapalhado com o processo de recorta-e-cola das entrevistas transcritas. Há histórias contadas, com praticamente as mesmas palavras, uma ou duas ou até mais vezes. Há passagens gigantescas extraídas de Verdade Tropical, de Caetano, e de algumas poucas outras fontes – as mesmas de sempre, as oficiais, oficialescas ou semioficiais (o dissenso, aqui, está proibido, nem parece uma obra do sempre dialético Gilberto Gil).

A reconstrução da infância de Gil é minuciosa, deliciosa, e assim também o são o início da carreira musical e o período tropicalista. Depois disso, o livro sai correndo, tropeçando nas próprias pernas, como se estivesse apenas cumprindo tabela, doido para terminar o mais rápido possível.

Não conseguimos entender qual é o lance entre Gil e Regina: Ele a pagou para redigir por ele? A editora pagou? O dinheiro foi suficiente? Mas a impressão nítida, ao final da leitura, é de que coexistem dois discursos distintos (embora interligados), que não conseguem se articular um com o outro nem cada um consigo próprio, porque um interfere no outro.

Gil não chega a tecer sua própria história, num trabalho de escrita introspectiva. A primeira pessoa só aparece recortada das entrevistas de Regina (e de entrevistas de outras fontes, cuidadosamente selecionadas, editadas – censuradas?). Regina, por sua vez, não parece gozar de autonomia interpretativa, e se limita a um relato tão seco quanto hiperelogioso. Gilberto Gil, segundo ele e a biógrafa oficial de pelo menos dois dos Procure Saber, só tem qualidades. É um homem perfeito.

Isso significa que temos em mão material nulo ou inválido? De maneira alguma. Gilberto bem perto é valiosíssimo, com todos os seus erros e desleixos. Apesar da tendência exasperante à repetição, não saímos dele do mesmo tamanho que entramos. As transcrições de artigos do Gil exilado do início dos anos 1970 ou do Gil ministro da Cultura do início dos anos 2000 são preciosas, até mesmo surpreendentes. A releitura do discurso de posse em 2003 causa espanto ao evidenciar o sem-número de promessas de Gil e de Luiz Inácio Lula da Silva ali contidas – e, pasmemos, cumpridas à risca nos anos seguintes.

No viés do negativo, só saímos perdendo. O homem do sim foge do não como o diabo fugiria da cruz.

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Pensemos na amizade com Paulinho da Viola, que parece não ter resistido ao famigerado réveillon milionário de 1994, que começou tipo Procure Saber, com Gil, Caetano, Chico, Gal Costa, Milton Nascimento e Paulinho, e a imprensa ajudou a transformar em barraco épico. Não há nenhuma palavra sobre o episódio no livro. OK, Gil tem todo o direito de não querer admitir que briga (como qualquer mortal). Mas raciocinemos: a postura recém-adotada pelo até aqui arejadíssimo ex-ministro, de militância contra biografias não autorizadas sobre sua pessoa, simplesmente interdita uma história como essa do réveillon, constrangedora, mas pública – e erguida à época com dinheiro público brasileiro.

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Outro caso manco: a até hoje controversa participação de Gil na passeata contra as guitarras elétricas liderada por Elis Regina, em 1967. O autor-personagem joga toda a responsabilidade no colo da amiga morta. Diz, não exatamente nestas palavras, que participou porque era dominado por Elis e se viu obrigado a obedecê-la. Pode ser, faz sentido, mas é uma versão que não nos honra nem honra Elis, nem honra o próprio Gil.

Todo mundo sabe que, meses depois de ter obedecido Elis (e o dono da TV Record, não citado aqui), Gil mudou o modo de pensar e veio a protagonizar com os Mutantes a histórica e irreversível entrada das guitarras elétricas na MPB. A inconstância e a instabilidade daquele Gil de 1967 não o envergonham, elas o engrandecem. Seria maravilhoso ouvir Gil relembrar seus sentimentos contraditórios em 1967 e ler que ele mudou de ideia e, num intervalo curtíssimo, virou quem ainda não era. Esse princípio, por sinal, lhe é caro até hoje, a ele que vive à procura dos justos meios entre direita e esquerda, mal e bem, certo e errado. É chato quando notamos que um dos maiores brasileiros que existem está tentando nos ludibriar.

Embuti nos reais que gastei com o livro a expectativa de encontrar nele um Gilberto Gil autoconfessional. Não quero meus reais de volta, mas sinto que fui tapeado por minha expectativa e/ou pelos autores do livro. A ausência de casos por nós desconhecidos, ou de relatos de sentimentos por dentro de casos conhecidíssimos, abre uma enorme lacuna na obra “auto”biográfica. Nem por isso o livro deixa de conter passagens emocionantes. São assim, por exemplo, os relatos (sempre em primeira pessoa) da relação de Gil com o bonde, na infância (página 44); com a dor e o prazer, ao longo da vida (pág. 188); e com o trinômio trabalho-criação-descanso, já na velhice (abordado com grande lirismo e beleza na pág. 310).

Num canto perdido de página (a 95), Gil confessa, espantosamente, que se considera um perdedor: “Não acho que vou ganhar nada, nunca.” Parece absurdo, mas quem sabe a afirmação não guarde um fundo de coerência para o cara que um dia foi o segundo colocado de Edu Lobo (que com sua “Ponteio” venceu “Domingo no parque” no festival de 1967) e sempre foi tido como o segundo do sempre mais aguerrido Caetano.

Embora Gil e Regina cuidem obsessivamente de evitar temas explosivos, há sementinhas de “verdade” inconveniente lançadas aqui e ali. Ainda que quase santo, o homem que orienta a biografia provoca de leve Tom Zé (comparando-o a Juca Chaves), Dori Caymmi (dizendo que, em 1967, o filho de Dorival proibia a entrada do som dos Beatles em casa) e até mesmo o intocável Chico Buarque.

Na página 178, toca-se na rixa entre emepebistas tradicionais e tropicalistas, no final dos anos 1960, a mesma que Chico nega peremptoriamente e o levou a brigar em público com o historiador Paulo Cesar de Araújo (biógrafo censurado de Roberto Carlos), em meio à cizânia das biografias. Vale reproduzir o trechinho, intitulado “sem crédito no Brasil”:

“Quando Gil estava em Londres saía publicado no Brasil todo tipo de reportagem sobre os tropicalistas. A revista Veja, na época ainda chamada de Veja e Leia, publicou matéria não assinada, em março de 1970, em que criticava o inglês de Caetano e as roupas que eles usaram em um show no Royal Festival Hall, e questionava o exílio dos dois: ‘Numa manobra promocional, anunciava-se no programa do show que eles tinham sido presos no Brasil (o que é verdade) e que eram exilados políticos (o que não é verdade, pois oficialmente não há inquéritos contra eles). As intenções da manobra eram claras: comover o público’.”

A construção do texto dá a entender que a história é falsa. Mas, se é, porque Gil a fez constar da biografia oficial?

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eu-nao-sou-cachorro-nao_paulo-cesar-araujoQuanto a Chico, como se vê, ele não é citado explicitamente, mas a causa de sua irritação recente com Paulo Cesar de Araújo está nessa mesma raiz: no livro Eu Não Sou Cachorro, Não (2002), Araújo reproduziu um texto do jornal Última Hora em 1970, segundo o qual Chico teria criticado o fato de, supostamente, Caetano e Gil usarem o exílio para se autopromover. Na resposta ao historiador em outubro passado, Chico diz que não daria entrevistas ao Última Hora de 1970, por se tratar “um jornal policial, supostamente ligado a esquadrões da morte” (e de propriedade, então, dos donos da Folha de São Paulo). A história do Última Hora de fato é tortuosa – até Regina Zappa trabalhou no jornal detestado por Chico, já nos anos 1980.

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Há no final do livro um bloco chamado “Gil a mais”, que começa exasperante, crivado de mais detalhes (ou melhor, repetições) de episódios que devem ter sobrado noutros cantos do texto e foram amontoados perto do fim. Mas aqui acabam por aparecer, mais uma vez, momentos antológicos, como um relato eletrizante (do jornalista Luís Turiba, então assessor de comunicação do ministro) sobre o até hoje mal dimensionado episódio em que Gil cantou na ONU com o secretário-geral Kofi Annan ao bongô. Outro caso é a retomada do artigo “Recuso + Aceito = Receito”, publicado em 1970 em O Pasquim, e provavelmente até hoje o texto mais importante, brilhante e elucidativo de (e sobre) Gil.

É aqui também, por fim, que surge um relato capaz de constranger o estranho anti-Gilberto Gil que surgiu recentemente, proibindo o jornalista Tom Cardoso de biografá-lo (foi isso mesmo, Gil?) e aderindo com pachorra ao discurso conservador-censório do Procure Saber. O livro (quase) termina reproduzindo trechos sensacionais de um discurso do Gil-ministro numa cúpula mundial sobre Creative Commons, no Rio de Janeiro. Em 2006, disse o audacioso ministro, a certa altura:

“Sempre pensei cultura como uma obra aberta, como um software de código aberto. As trocas com o que é dos outros, a antropofagia cultural constante, fazem parte das vitalidades das culturas, e as possibilidades de trocas livres devem ser preservadas contra qualquer tentativa de imposição.”

Forum-128-115x150Esse Gil, o das “trocas livres”, flagrado nu no final de um livro oficial, parece ter sido momentaneamente sequestrado por um contra-Gil, um não-Gil empenhado aparentemente em emplacar APENAS a sua própria versão dos fatos gilbertianos de domínio público, pertencentes à obra viva que se chama Gilberto-Gil-e-Nós. O sequestro não há de durar muito tempo, já que não é do temperamento de Gilberto Gil se deixar sequestrar, nem mesmo pelo seu próprio eu-negativo.

 

(Texto publicado originalmente na edição 128 da revista Fórum, de novembro de 2013.)

 

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5 COMENTÁRIOS

  1. PAS, os srs.Gil e Caetano abocanharam, cada um, 600 mil reais para tocarem no reveillon baiano, em mais um fragrante caso se superfaturamento. O que me estranha é o silêncio da mídia diante destes valores. E os Paralamas do Sucesso que em um dia tocam por 180 mil e no dia seguinte cobram 480 mil de um governo qualquer aí? Esperar críticas contundentes de artistas brasileiros contra os políticos que temos é ingenuidade, estes artistas são beneficiários do estado das coisas em que o Brasil se encontra…

  2. O Dicionário Cravo-Albin registra um Quarteto Uirapuru que se apresentou com O Terço em 2005.
    http://www.dicionariompb.com.br/o-terco/dados-artisticos

    Mas provavelmente é apenas uma formação diferente do Quinteto Uirapuru, que gravou com Sivuca pela Kuarup em 2004.
    http://www.dicionariompb.com.br/sivuca

    O Quinteto é da Paraíba, formado por Rucker Bezerra e Renata Simões (violinos), Luiz Carlos Jr. (viola), Kalim Campos (violoncelo) e Hercílio Antunes (contrabaixo).

  3. Que texto ridículo. Mais uma daquelas sutis investidas de Pedro Alexandre Sanches para minar a MPB e dar prosseguimento ao projeto de “bregalizacao” e “funkizacao” do pais. Já saquei faz tempo qual é a sua, malandro. Tenho pena de você.

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