O Som ao Redor soou para mim como uma coleção de vultos, de fantasmas da vida urbana que ocupam o seu não-lugar de forma silenciosa, ordeira, muitas vezes melancólica: o menino de rua que não tem nem sequer um rosto; as filhas da empregada que vagam pela casa por não terem onde ficar; o porteiro que envelheceu e se tornou inócuo; os filhos que são obrigados, com algum espanto, a serem mais maduros que seus pais; a moça sexy cujo fogo erótico é soterrado por um uniforme de empregada.

O Som ao Redor são os silêncios compulsórios que o diretor quer que ouçamos.

É o mais político dos filmes de sua geração. Examina a fúria acusatória dos pequenos poderosos, os condôminos com sua lógica apressada, os consumidores idiotizados de verdades fabricadas de jornais e revistas, as pequenas ditaduras daquelas mulheres que escrevem em blogs sobre como levar suas babás em viagem. É um Casa Grande & Senzala da era do iPhone.

Claro que o filme tem, na origem, um princípio ainda mais explicitamente político: trata-se da transposição da lógica do coronelismo nordestino da zona rural para a cidade, de um senhor de engenho exportando sua hierarquia autocrática para a especulação imobiliária. A vingança de sangue da literatura mineira clássica está de volta, embutida numa crônica de bairro de classe média pernambucano. Mas é o contexto em que a vingança se consuma que é novo – é como se o arcaico viesse se apresentar como a última ética que sobrou no mundo.

Esperamos violência do filme, que não se consuma. Esperamos que o neto marginalzinho exploda de crack e mate alguém; que o segurança preto de olho vazado (que, ao final, é o que tem a história mais besta: perdeu a vista na quina do guarda-roupas) ande armado e execute algum vulto na esquina, que as mulheres que andam de calcinha sejam estupradas por invasores bestiais. Na verdade, somos expostos ao fantasma do tédio de personagens conhecidos, como a mulher que mal se resigna no novo papel de dona de casa e consome seus dias em um duelo com o cachorro e masturbando-se na máquina de lavar.

Há um notável apuro cronístico no filme, sob um clima meio Mário Palmério, que dá contornos a personagens invisíveis da fantasmagoria cotidiana: o vendedor de galões de água recicláveis, o segurança calado do toldo na esquina, o tio velho solteiro que continua alimentando sonhos de grande garanhão, a consumidora que tenta arrancar um desconto no condomínio a partir de desculpa mórbida. Houve quem descrevesse isso como “humor negro”. Não é, é apenas ironia.

O entorno é sarcasticamente construído. A breguice dos azulejos e dos sofás de couro, as cozinhas iguais, o visual padronizado da vida no condomínio, a inveja da maior TV de LCD da vizinha, os maridos indiferentes e assexuados, as mulheres insatisfeitas, os pequenos ódios de classe que levam o manobrista a riscar o carro da madame.

Elegemos como o nosso filme do ano. Mas eu acho que é já o grande filme brasileiro destas décadas iniciais de um século.

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Jotabê Medeiros, paraibano de Sumé, é repórter de jornalismo cultural desde 1986 e escritor, autor de Belchior - Apenas um Rapaz Latino-Americano (Todavia, 2017), Raul Seixas - Não diga que a canção está perdida (Todavia, 2019) e Roberto Carlos - Por isso essa voz tamanha (Todavia, 2021)

2 COMENTÁRIOS

  1. Vi o Som ao Redor e fiquei tocado de mais. A violência de um país mal resolvido, vivendo um constante conflito de classes velado. Fiquei também pensando nos milhares de brasileiros que foram expulsos do campo nas décadas passadas e que hoje engrossam as periferias das grandes cidades brasileiras.

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