Organizado à margem de grupos político-partidários, o festival #ExisteAMORemSP lotou a praça Roosevelt, com Gaby Amarantos, Emicida e Criolo, e pintou a multidão de cor-de-rosa.
A multidão esperava para ver Criolo, e o show de Criolo foi o instante catártico que completou o sentido de tudo. O artista que vem provocando maneiras inesperadas de reconciliação entre periferia e centro em São Paulo e na música brasileira coroou um caminho que já fora pavimentado ao entardecer por Emicida. “Tem maloqueiro aí? Tem favelado aí?”, perguntava Emicida. Tinha.
Ao longo do domingo que passou, o festival #ExisteAMORemSP promoveu na praça Roosevelt, no coração de SP, o que a Parada Gay promove há vários anos e eventos recentes como marchas, passeatas e churrascões “diferenciados” não vinham conseguido promover: trouxe amplas camadas de público de periferia para o centro da cidade.
Nutrida por artistas interessados em reconstruir as pontes centro-periferia, como os paulistanos Criolo e Emicida e a paraense Gaby Amarantos, a periferia veio ao centro participar de um evento auto-organizado, autogerido e autorregulado, que não registrou um incidente sequer, apesar da mistura considerada explosiva por políticos e gestores públicos conservadores. Enquanto isso, no Facebook, rodinhas de jovens conservadores se reuniam para revalidar o hábito de desdenhar esse tipo de (re)encontro, sob o velho pretexto racista maldisfarçado de resmungar que “só tem gente feia”.
“Vamos pra casa em paz, mano, NÃO DÁ MOTIVO!”, Criolo enfatizava repetidas vezes ao final de sua apresentação. Talvez a mensagem não significasse tanto para públicos de classe média e alta (também presentes), mas significa TUDO para a periferia e para o rap – e para o tecnobrega, o forró, o funk, o axé, o arrocha, o lambadão, as periferias paraenses, nortistas, nordestinas, sulistas etc. ali reunidas-simbolizadas numa pessoa só, a de Gaby Amarantos.
Há um punhado de anos, o hip-hop foi alijado e marginalizado em eventos centrais, nucleares, como a Virada Cultural, sob o pretexto subliminar de fazer incitação à violência ou coisa parecida. É uma mentira que virou verdade para a São Paulo DEM-PSD-PSDBista.
Não à toa, Daniel Ganjaman, produtor e músico da banda de Criolo, fez a suave provocação de que este #ExisteAMORemSP estava mais bonito que dez, que cem, que todas as Viradas Culturais juntas. Reunida ali sem anúncio na mídia tradicional, sem patrocínio de grandes empresas, sem cobrança de ingresso, sem bandas estrangeiras para puxar público e publicidade, a multidão surpreendente que se apertava entre as muretas, grades e desníveis da praça Roosevelt recém-reinaugurada pelo prefeito Gilberto Kassab (PSD) parecia concordar com Ganjaman em gênero, número, grau e cores.
O sentido fundamental do #ExisteAMORemSP estava coloridamente desenhado ali, sob a liderança generosa de Emicida e Criolo: o rap (ou seja, a periferia) está de volta aos espaços públicos que lhe foram negados, interditados e proibidos pelas últimas gestões paulistanas. “A cidade é nossa. A cidade não é deles. A cidade é de quem gosta dela”, flamejou, sem um milímetro de irresponsabilidade, a voz de Emicida.
Na noite do domingo, a mídia se dividia em ignorar o acontecimento ou desdenhar do sucesso de um evento que nem sequer fora detectado por seus guias culturais. Houve quem tentasse carimbar o festival de geração espontânea como um evento petista. Nós, da campanha de Fernando Haddad (PT), nos sentiríamos felizes e orgulhosos se fosse, mas não era o caso – e é preciso voltar um pouco atrás para tentar entender o fenômeno mais-que-partidário que vai tomando esta pós-São Paulo.
A história é longa e conta, desde há muito, com o empenho (des)organizativo do movimento Fora do Eixo – uma espécie de periferia, já que o coletivo, hoje com casa e bandeira fincadas no bairro central do Cambuci, tem origem matogrossense, em primeira instância, e polibrasileira, em geral. Desse laboratório surgiu, na véspera do primeiro turno, na mesma praça Roosevelt, o ato #AmorSimRussomannoNão. À véspera da eleição, um libelo coletivo, jovem, festivo e todo pintado de rosa começava a se erguer, não fundado na afirmação deste ou daquele candidato, mas antes pela dialética do “não”.
Ainda que tivesse algo de novo (o estratagema “amor sim”), o #RussomannoNão ainda condizia com o negativismo que é marca trágica de São Paulo, tida como cidade riquíssima, mas (auto)estigmatizada há tempos incontáveis como se fosse o fígado poluído, congestionado e intoxicado do Brasil. O “não” tem sido latente em movimentos gerados por aqui, a exemplo do letárgico e precocemente derrotista Cansei de poucos anos atrás, que, assim como as iniciativas atuais, fazia questão de afirmar e reafirmar seu “apartidarismo”.
O “não” simbólico preponderou: líder isolado nas pesquisas durante a maior parte da corrida eleitoral, Celso Russomanno ficou de fora do segundo turno.
E a dialética do “não” prossegue neste segundo turno, ainda que em pique de transição. O #ExisteAMORemSP presenciou a mesma hostilidade a Kassab e a José Serra (PSDB) que havia surgido no #AmorSimRussomannoNão. Ironia ou galhofa proposital de algum espírito zombeteiro, um dos solitários (único, talvez?) equipamentos públicos inaugurados por Kassab neste processo eleitoral foi capturado dele e (re)ocupado pela rejeição a ele. O “não” ao negativismo kassabista prevaleceu e, ainda zombeteiro, rebatizou a antes gringa praça Roosevelt de “praça Rosa”.
Ambos, Kassab e Serra, foram eleitos para ser hostilizados em coro pelo povo rosa, há duas semanas e ontem de novo – mas isso não significa que a campanha pró-Haddad fosse explícita em qualquer dos dois eventos. Não era, embora estivesse (esteja) subentendida e latente em muitos corações e mentes ali presentes. Nesse sentido, por sinal, estas manifestações soam como um “Cansei” à esquerda, um “Descansei”, o não do não do não.
Mas há uma diferença: a dialética do “não” vem ser posta em xeque pela primeira vez, num libelo que elege um tema 100% positivo (ainda que ainda fugidio de declarar voto ou posição partidária). EXISTE. AMOR. EM SP. A afirmação contraria Criolo, autor de “Não Existe Amor em SP”, hino paulistano ao “não” cantado em uníssono pela multidão rosa, talvez sedenta há muito por encontrar um novo hino. Criolo beija a afirmação que contradiz sua canção, ao aceitar se apresentar de graça e encerrar a programação do festival do “não” que está virando “sim”.
Para NÃO dizer que NÃO falamos das flores, é bom lembrar que o “não” agoniza, mas NÃO morre em SP. No meio do show de Emicida, a Guarda Civil Metropolitana, que havia apavorado a Roosevelt há duas semanas, procurou a (des)organização do evento para reclamar que havia mulheres tirando a roupa na praça.
A tabuleta de “é proibido pisar na grama” (transformada em pergunta, em 1971, por Jorge Ben, “Por Que É Proibido Pisar na Grama?“) persiste cravada neste chão onde o amor se esforça por reflorir, hoje como uma ode ambígua ao não-e-sim.
Evidentemente, o “Não Existe Amor em SP” de Criolo é uma crítica a São Paulo, em grande medida uma provocação dirigida pela periferia de São Paulo ao centro de São Paulo. “São flores mortas/ num lindo arranjo/ arranjo lindo feito pra você”, “a ganância vibra/ a vaidade excita/ devolva minha vida e morra afogada em seu próprio mar de fel/ aqui ninguém vai pro céu”, clamam versos tortuosos que são cantados a plenos pulmões por cada vez mais gente.
“Não Existe Amor em SP” não chegava a ser uma provocação inédita quando lançada, em 2011. Antes do estouro nacional de Criolo (um artista com quase duas décadas de história no rap), pixações anônimas como ”mais amor, por favor” e “o amor é importante, porra!” já povoavam a cidade, na linha de beliscar a falta de amor (inclusive amor-próprio) em e de São Paulo. O que a canção (um rap pode ser canção?) fez foi colocar a mensagem no idioma do “não”, tão familiar à cidade e a seus cidadãos.
Evidentemente, a declaração de que o valor (vamos falar de valores?) “amor” é artigo em falta na cidade se destinava, na prosódia intrincada de Criolo, a confrontar, afrontar e desafiar essa ausência. Quando a coletividade assimila seu discurso e o devolve transformado em “existe amor em SP”, sem o “não” tão arraigado na sentença, a vitória não é do artista (como ele próprio declarou durante o show): é nossa.
O que São Paulo está dizendo, para Serra e Criolo, para Kassab e Haddad, para nós e para o Brasil, é que o recado foi assimilado e que nós, São Paulo, estamos prontos para reocupar, retomar, resgatar e recuperar São Paulo (ou seja, nós mesmos) e o nosso amor (próprio) por São Paulo.
Nestes dias, por incrível que possa parecer a todos que nos acostumamos a pensar São Paulo com(o) o fígado, São Paulo É o amor personificado. E é, em vez de fígado, o coração do Brasil – de um Brasil muito diferente e muito mais inteligente que o que existia até o século passado. A cidade de São Paulo está pronta para transformar ausência em presença – exclusão em pertencimento -, e deve ganhar a eleição do próximo domingo aquele que souber canalizar, expressar, veicular, energizar e retransformar essa nossa carência profunda de pertencimento.
(Fotos Fora do Eixo)
(Texto publicado originalmente no Blog H, do site PenseNovo.TV)
“Enquanto isso, no Facebook, rodinhas de jovens conservadores se reuniam para revalidar o hábito de desdenhar esse tipo de (re)encontro, sob o velho pretexto racista maldisfarçado de resmungar que “só tem gente feia”.”
Ao contrário, só tem gente bonita. Os artistas: gente bonita e cheirosa e pré-digerida pela MTV para um público sem capacidade de se reunir ao redor de conteúdos exigentes, mas que se agregam facilmente ao redor de um tema vazio. Na periferia, na REAL, durante o show rolavam as chacinas de sempre (o fim de semana contabilizou 14 mortos e 16 feridos), enquanto o povinho universitário se pintava de cor de rosa. Parabéns ao movimento que consegue apaziguar os ânimos da juventude com festa, o “rap universitário” vago, e que não cita nomes, não tem inimigos, que faz conviver o discurso revolucionário genérico com a agenda da Editora Abril, feito sob medida para uma juventude de bundões amedrontados de todos os lados. Parabéns ao autor desse texto, que só cita as vozes dissonantes qualificando-as como conservadoras e racistas, pois sua concepção de política não permite enxergar que esse movimento está a direita da maior parte do povo oprimido dessa cidade. Pior que o mal é o falso bem.