O que existe em comum entre os rappers Afro X e Dexter (que dividiram cela no Carandiru), o “Assum Preto” de Luiz Gonzaga e as “prison songs” de Johnny Cash
A música brasileira ficou mais rica em novembro de 2009, quando veio à luz o disco Das Ruas pro Mundo (Auto-Estima Records), do rapper paulista Afro-X. Ali, o rap se acasala com gêneros antes distantes, como o funk-soul brasileiro de Carlos Dafé e Sandra de Sá e o rock do CPM22, e ressurge cheio de vida e vibração.
No finalzinho de dezembro, saiu Dexter & Convidados ao Vivo (Alta Voltagem Fonogáfica), sob assinatura de outro dos mais importantes porta-vozes do hip-hop daqui. Esse ainda não escutei, mas vem repleto de participações especiais, como as dos poetas do rap Mano Brown, GOG e Lino Krizz (*), do homem-máquina do ritmo Fernandinho Beatbox e da cantora de samba-soul Paula Lima.
Afro-X e Dexter foram amigos de infância, parceiros no hoje extinto grupo 509-E e dividiram cela na Casa de Detenção do Carandiru. Condenado a 14 anos de prisão por dois assaltos a mão armada e um estelionato, Afro-X comandou em liberdade o lançamento de Das Ruas pro Mundo. Dexter segue cumprindo pena de 39 anos por um homicídio e sete assaltos a mão armada.
As trajetórias de ambos iluminam o filme Entre a Luz e a Sombra, de Luciana Burlamaqui, premiado melhor documentário pelo público do festival francês de Biarritz e causador de impacto profundo em quem o assistiu no brevíssimo período em cartaz por aqui, no final de 2009.
Outro personagem é o juiz Octavio Barros Filho, que, como corregedor de presídios de São Paulo, permitiu e estimulou a saída corriqueira de Afro e Dexter da prisão para fazer shows livres à luz da noite. Em Entre a Luz e a Sombra, o juiz traça um paralelo com um grupo de câncer que gosta de frequentar, e joga de volta à sociedade aqui fora parte importante da responsabilidade pelos crimes cometidos nas mãos de Dexter e Afro:
“Se a pessoa não se olha no espelho, não ama seu corpo, sua doença, suas chagas, ela não se recupera (…). O grupo de câncer tem que trabalhar com o amor. Tem que se amar. Tem que gostar de si próprio. E tem pessoas lá que não conseguem olhar, porque detonaram uma doença pra se matar. (…) O mecanismo é o mesmo. Do mesmo jeito que a gente fala que a sociedade quer esse lixo de prisão, esse é o câncer da sociedade que não é capaz de se amar. Não ama um preso. Não digo amor no sentido bonzinho, ‘vem cá que vou bater na sua cabecinha, gracinha’. Não é isso. Respeito. Se o doente não é capaz de se respeitar e provocou essa doença nele inconscientemente, é aí que eu digo, a gente é o inconsciente. A gente tem que mostrar pra sociedade a luz, quando ela quer a sombra”.
Pode até parecer incômodo esse papo de ouvir música (e ideologia) de (ou sobre) presidiários e ex-presidiários. Mas eu lhe digo: é a coisa mais manjada do planeta. Naquele país autodenominado América, gêneros “do povo” como blues, folk e country são pródigos em exprimir os sentimentos de poetas pop privados de liberdade. “Leve uma mensagem para Mary/ mas não diga a ela onde estou/ leve uma mensagem para Mary/ mas não conte que estou no xadrez”, cantavam os Everly Brothers em 1959, num lindo folk mais tarde regravado pelo adorado Bob Dylan. Por afinidade e propósitos reabilitadores, o trovão da música country Johnny Cash fez shows antológicos dentro dos presídios de Folsom e San Quentin.
O amor pela sombra também viceja na nossa história musical, embora jamais compreendido pela sociedade encarcerada em shoppings, condomínios e carros blindados. Odiado pela bossa nova por conta do baião rústico (ou “vulgar”?) que inventou, Luiz Gonzaga passou a vida intrigado com Lampião – e, embora defensor contumaz da lei e da ordem (foi soldado quando mocinho), conquistou o Brasil sob um desconcertante figurino de cangaceiro. Em Assum Preto, alegorizou com sutileza, na figura de um pássaro triste, o dilema entre cantar encerrado numa gaiola ou viver “cego dos óio” no mundão aqui fora. “Já fui cangaceiro, ganhei dinheiro mode assassiná/ (…) hoje sou músico afamado tocando em reisado, novena e leilão“, ecoava Jackson do Pandeiro em 1960.
Mais recentemente, a ex-chacrete Rita Cadillac, corajosa como ela só, elevou o moral das tropas do Carandiru cantando É Bom para o Moral. Hoje em dia, a adolescente explorada e queridinha-de-mídia Mallu Magalhães venera o folk de Dylan e Cash, e talvez nem saiba por quê. A resposta mora na nordestina e sertaneja Assum Preto.
Em liberdade, Afro-X foi convidado a viajar para mostrar em Nova York o clipe de “Regenerado”, com cenas gravadas dentro do que restou do Carandiru implodido. Lá, travou contato com instituições dedicadas à reabilitação de ex-presidiários. Lançou em 2009 o livro biográfico Ex-157, e hoje dirige em São Bernardo do Campo a ONG SuperAção, que leva rap a crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social. “Tento trabalhar mais na prevenção”, diz.
Sobre a condição de ex-presidiário, conta: “Muitas vezes me causa constrangimento, quando sou parado pela polícia e descobrem que sou eu, ou quando visito um cara da periferia e percebo que ele esconde a carteira de mim, ou quando um cara do Morumbi deixa uma joia à vista para me testar. Mas enfrento fácil, porque o pior já passou”.
Sobre a vida de homem livre, reflete: “É um novo trabalho, uma nova correria. Sinto na pele toda a responsabilidade de ser um homem de negócios, gerar alguns empregos, correr atrás da divulgação do disco”.
Após o advento do PCC (Primeiro Comando da Capital) e o consequente endurecimento do governo estadual paulista no sistema carcerário, o juiz Barros Filho foi afastado da corregedoria e a rotina de saídas de presos-artistas se interrompeu. Transferido, Dexter está no presídio de Hortolândia, no interior paulista, e o acesso a ele ficou cada vez mais restrito. Ainda assim, lançou em 2005 Exilado Sim, Preso Não (Alta Voltagem/Porte Ilegal), uma potente coleção de “prison songs”, como chamariam os irmãos da outra América. E trava contato com o mundo aqui fora via blog e Twitter. “Salve Jorge, bom carnaval aí no Recife!”, disse @dexter8anjo para @jorge_benjor em 11 de fevereiro passado.
Dexter e Afro ficaram estremecidos após o final do 509-E. Seguem rotas aparentemente opostas e professam opiniões divergentes sobre o rap. Mesmo assim, ouvir seus discos demonstra que o ponto de vista de Afro-X continua a se somar ao de Dexter – e que ambos se somariam aos de seus conterrâneos ditos “livres”, se nos dignássemos a ouvi-los, e amá-los.
(*) Lino Krizz não é muito conhecido fora dos guetos do rap, mas você certamente o conhece: é ele o responsável, ao lado de Robson Moura, pelo kuduro “Vem Dançar com Tudo”, o famoso “oi oi oi” da abertura da novela global Avenida Brasil.