Eu e DJ Maluquinho, um dos inventores do tecnobrega, começamos a encher a cara desde cedo. Daí o nosso estado precário quando a Banda Uó subiu ao palco para encerrar o primeiro Eletronika Belém.
O sujeito estava começando a ficar meio perigoso, quase sem conseguir andar direito, tropeçando nas próprias pernas, mas esperto o suficiente para roubar umas latas de cerveja da área vip do festival quando se ligou que o bar ia fechar e perigava da birita já não rolar tão fácil.
Mas nada que o impedisse de entrar de bicão na discotecagem de Rodrigo Gorky, o gordinho nerd que descobriu que podia ser alguém quando inventou o Bonde do Rolê e embalou o funk carioca para o resto do mundo.
Bonde do Rolê, Banda Uó… Diversas encarnações da obsessão de Gorky em dialogar com a música da periferia brasileira. Primeiro o funk. Depois o tecnobrega de camisas xadrez, bonés de grife e bigodes propositalmente cafonas, como se tudo o que a música de massa brasileira já produziu terminasse em ironia.
O show acaba, mas ninguém sai do palco. A discotecagem de Gorky começa. Depois de um tempo sumido, Maluquinho dá as caras novamente. Olho para o sujeito e penso: “Caralho, esse filho da puta tá tão doido que se mijou todo”.
“Que porra foi essa, rapá?”, pergunto.
“O quê?”
“Isso aí na tua calça.”
“Ah, porra, é que deu merda.”
Pra minha surpresa, ele mete a mão no bolso e tira uma lata de cerveja toda amassada, que havia acabado de estourar dentro das suas calças. Ele ri, bebe um resto que havia ficado no fundo e joga a lata no chão.
Maluquinho pode até ser meio doido, mas não é burro. Fica parado um tempo observando Gorky discotecar e me pergunta de onde ele é. Digo que não sei. Maluquinho fica quieto. “Mila”, hit dos meus tempos de axé no bloco do Shopping Picanha, causa uma comoção inesperada e transforma a pista do Eletronika em uma micareta hipster.
“Porra, Vladimir, tu sabe qual é o problema desses DJs da burguesia?”, me pergunta Maluquinho, já emendando a resposta: “O problema deles é que eles não falam no meio da música. Eles não mexem com a galera, não mandam abraço, não pedem palmas, não sabem interagir”.
“Então vai lá em cima e pega o microfone, porra”, respondo.
Mal termino a frase e Maluquinho já está no palco. Dago Donato faz a ponte e logo parece que Maluquinho e Gorky são parceiros de longa data. O que era apenas uma discotecagem vira um acontecimento que dificilmente será esquecido por quem foi à primeira noite do Eletronika Belém.
Porra, Maluquinho é puta velha e sabe de trás para frente todos os truques que fazem a massa se remexer. Gorky entra na onda e manda umas bases espertas na medida para Maluquinho improvisar uns tecnobregas, mandar abraços pras meninas, pros casados, pros solteiros, para as bichas e para as vadias.
A rapaziada aprova a presepada e invade o palco. A temperatura sobe e a inibição diminui. Meninas rebolam, um rapaz tira a roupa e fica só de cuecas. House vagabundo, Alceu Valença, Chiclete com Banana, funk carioca e tecnobrega.
Gorky e Maluquinho no comando da sacanagem. É hora de gritar “vai, vai, vai”. É hora de rolar o treme-treme. É hora do sexo e da safadeza. “Pega fogo, cabaré”, grita Maluquinho relembrando uma expressão antiga dos puteiros da zona boêmia de Belém. Dá certo. O cabaré pega fogo e a festa vira uma zona.
Eu roubo uma cerveja de Gorky e encontro André Paste emocionado por finalmente ver um astro tecnobrega em ação. Dago ensaia uns passos de dança. Um casal se joga no chão e simula uma cena de sexo. Bonde do Rolê e Banda Uó dançam. Todas as conexões possíveis que um festival como o Eletronika poderia supor sendo estabelecidas ali, naquele momento.
Do palco, localizado de frente para a Baía do Guajará, vejo a zona portuária da cidade, o berço de todas as interseções culturais de Belém desde o final dos anos 50, quando os primeiros discos de merengue e os primeiros rádios solid state chegaram à cidade através da rota de contrabando estabelecida a partir do Caribe e das Guianas.
Ninguém agüenta mais. Mentira, as pessoas agüentariam sim. Só que a festa precisa acabar. Maluquinho quer beber mais, puxa um bolo de notas de cem do bolso e sai perguntando onde dá pra comprar uísque. Roubo a chave da sua moto e mando ele pegar um táxi, já meio preocupado que aquela noite termine em tragédia, afinal ninguém quer assistir ainda ao nascimento do James Dean tecnobrega.
O salão se esvazia aos poucos. Ir embora pra que? Mas já deu, daqui o pouco é outro dia.
São seis da manhã no mercado do Ver-O-Peso. Na Barraca da Carioca, espero ela fritar um filé de dourada enquanto bebo a última cerveja da noite e a primeira da manhã. Os raios de sol começam a aparecer por detrás dos casarões antigos do centro comercial de Belém quando uma discussão atrai a minha atenção. Dois feirantes brigam. O negócio fica feio, o clima pesa. Um feirante puxa uma faca peixeira e parte pra cima. Eu, que já me preparava para sangue, tragédia e um corpo no local, respiro aliviado quando tudo o que rola é bate-boca, ânimos apaziguados e a turma do deixa disso.
O clima volta ao normal e enquanto como o filé de dourada com uma providencial Coca-Cola fico pensando na noite de hoje e em uma frase que Marcos Maderito, principal MC da Gang do Eletro, havia falado horas antes enquanto debatíamos o futuro do tecnobrega. “A galera tem que se tocar que o futuro já está acontecendo”, disse ele quando perguntado sobre a importância do estilo hoje. Caralho, eu jamais achei que fosse viver para ver Marcos Maderito e William Gibson alinhados em uma mesma corrente de pensamento. Afinal foi o escritor canadense de ficção científica quem disse, em 1993, que “o futuro já chegou”.
Na volta pra casa, largado no banco de trás do táxi, fico ruminando a frase de Maderito. Penso nas implicações do futuro ser agora, da possibilidade de apropriação de uma revolução tecnológica e apolínea na construção de uma nova configuração de realidade mais dionisíaca e interessante. Volto ao Ver-Peso, à imagem de dois feirantes que comiam ao meu lado enquanto trocavam os últimos lançamentos do tecnobrega via Bluetooth. É um novo momento: malandro, sagaz e otimista, como Maluquinho e Maderito, e não pessimista e angustiado, como Bruce Sterling e William Gibson.
O táxi percorre as ruas do centro comercial de Belém. Vou levar pelo menos uns 40 minutos para chegar em casa. Mesmo bêbado e cansado, ainda consigo me sentir feliz, com a certeza de que o futuro não é mais como era antigamente.
Vladimir Cunha, paraense, é jornalista e cineasta, diretor do documentário Brega S/A (2009) e codiretor do documentário As Filhas da Chiquita (2007).
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Vlad, salvo engano o Rodrigo Gorky é paranaense, como o Timpin e eu…
Que é que tá dando nesses para(na)enses?!
🙂