LIVRO-CAIXA

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Coincidências são coincidências.
Não tenho instrumentos para decifrar, e anda acontecendo muito.
Nos últimos meses, diversas vezes olho para o relógio e está lá: 22h22. Não foi uma ou duas vezes, foi mais de uma dezena. Também já vi diversas placas de carros com esses números em sequência.
Primeira explicação é óbvia: é o dia que a L. nasceu. Mas o que devo fazer? Cuidar mais dela? Levá-la para viajar? Comprar algo que ela queira muito no Natal?

Outra coincidência: toda vez que entrei no porão da Rua Delfina em busca de um gipsy martini, calhou de estar tocando Stones. Sempre tocando Paint it Black.
Paint it Black.
E não é que só tenham esse disco, o repertório é bem variado.

Papo de neve também. Toda conversa mole sobre esse calor maluco de São Paulo termina com o elogio da neve. A nevasca que pegamos em NY e não conseguíamos chegar no apartamento, cinco quadras dali.
A neve que fechou um aeroporto durante 7 horas, e eu dormi num banquinho.
O frio de Curitiba que criava lâminas de gelo nos vidros dos carros. O dia em que nevou em Curitiba nos anos 1970.
E esse ar-condicionado no toco, que está gelando minha nuca.

Hoje de manhã, numa banca da USP de que participei, o aluno que defendia a tese lembrou de duas histórias muito bonitas sobre escritores e vocação.
Vinicius, o aluno, lembrou primeiro que, nos idos de 1929-1930, quando trabalhava na prefeitura de Palmeira dos Índios, em Alagoas, Graciliano Ramos só escrevia relatórios. Foi então que alguns desses relatórios caíram na mão de Augusto Schmidt, editor carioca, que os leu e sentenciou: “Aqui tem um grande escritor!”, e se dispôs a editar Graciliano.
O que a história prova? Que um escritor não consegue se esconder de seu destino?
Para mim, prova que é possível fazer qualquer coisa com envolvimento, com gosto.

A segunda história se refere a um amigo antigo, o Rodrigo Garcia Lopes. Há alguns anos, um suplemento cultural de um jornal diário convidou vários escritores para imaginar entrevistas fictícias com famosos reclusos da literatura, tipo Rubem Fonseca, Dalton Trevisan e J.D. Salinger.
Rodrigo foi incumbido de inventar uma entrevista com Salinger, o autor de O Apanhador no Campo de Centeio. Em dado momento, “Salinger” citava que o autor brasileiro que gostaria de conhecer seria José Agrippino de Paula.
Zé Agrippino, que sofria de esquizofrenia e vivia isolado no Embu, alienado do mundo, curiosamente leu a entrevista. E a mostrou a interlocutores. “Viu? O Salinger gostaria de me conhecer. É o Salinger!”, orgulhou-se.
O que a história prova? Que uma farsa bem urdida pode enganar qualquer um?
Para mim, prova apenas que é possível aproximar grandes verdades por meio de belas ilusões.

Era 1997.
Eu tinha ido à Cidade do México ver o show do U2, que se preparava para vir ao Brasil pela primeira vez.
No hotel, me informaram: Bono fora visto à tarde tomando tequila no restaurante Mezzanote.
Eu não tinha pressa. Passei o dia todo em busca de umas botas mexicanas de fazendeiro, botas clássicas que usei muito pouco.
Depois do show, no Autódromo Hermanos Rodríguez, fui jantar no Restaurante Karisma, uma cantina de comida típica mexicana nas imediações do Museu Nacional de Antropologia do México.
Quando o táxi parou e eu estava descendo, uma van se projetou à frente do táxi, com outras duas em seu encalço. Era o U2, a banda vinha jantar no mesmo local que eu. Me cumprimentaram alegremente, mas mudaram de postura quando souberam que eu era jornalista – e a chefe da segurança ficou a noite toda de olho em mim. Ela era bonita, usava coturnos e cabelos muito curtos. Era Susie Smith (soube depois que viveu com Adam Clayton, o baixista, de quem se separou em 2001).
Só sairiam dali por volta das 4 horas.
Até hoje, o U2 anda pelo mundo buscando um jeito perfeito de fazer um show que emocione uma multidão. Demonstram dedicação obsessiva a esse objetivo. É muita ambição – só comparável àquela vez que tentamos costear de caiaque toda a enseada de Bombinhas.

Meus blocos de anotações sempre estiveram repletos de coisas assim, úteis anotações inúteis, a maioria rascunhada em algum momento de espera – no bar, no trânsito, na mesa do restaurante. Os textos acima foram batucados recentemente.
Mas na sexta-feira, dia anual da minha maior confusão astral, eu revirei os bloquinhos avidamente, buscando alguma iluminação, e só encontrei uma frase que achei digna de nota:
“Um homem cuja consciência dos vícios da natureza humana o levou a uma vida errante, escorregadia”.
Escrevi aquilo a propósito do personagem de quadrinhos Ken Parker, herói que tinha em mente mencionar numa palestra no Itaú Cultural (no dia em que o Mário Bortolotto voltou definitivamente à roda-viva dos vivos).
Faço então hoje um brinde aos amigos cuja consciência dos vícios da natureza humana não os levou para tão longe – para minha sorte. E concluo com a última anotação, brand new, de hoje:

A garota que falava dormindo sempre disse coisas sem nexo:
“balcões, balcões!”, “encontrei, encontrei!”, “solta meu braço!”.
Noite passada ela disse meu nome. Claramente. Lindamente.

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Jotabê Medeiros, paraibano de Sumé, é repórter desde 1986 e escritor de Belchior - Apenas um Rapaz Latino-Americano (Todavia, 2017), Raul Seixas - Não diga que a canção está perdida (Todavia, 2019), Roberto Carlos - Por isso essa voz tamanha (Todavia, 2021) e O Último Pau de Arara (Grafatório, 2021)

5 COMENTÁRIOS

  1. Olá!

    Seu blog é muito bom, adorei!

    Quero aproveitar para te convidar a conhecer meu blog também e participar da Promoção 1001 Seguidores. Como prêmio você pode levar para casa uma das agendas 2011 recheadas de fotos dos mais de 40 países que visitei! Se quiser, traga também seus amigos e leitores! 😀

    Aguardo você! 🙂

    Bjos!

  2. Parabéns bro, por abrir essa caixa.
    Estamps aqui, eu, Vagner, Dri e Mari já na terceira garrafa de vinho e no final das torradas com escabeche. Excelente interpretação do Vagner, mais conhecido como "cabelo mal cortado" de poesia, sendo uma de propria autoria. Booomm.
    Fechamos com seu livro-caixa e aí, bem, aí tô pra lá de bagdá.
    bjos
    Também acho que nasceu pra isso.

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