Depois das compositoras, seguimos nós com as cantoras, desta vez negras, desta vez na “CartaCapital”, edição 571, de 11 de novembro de 2009.

Dor de batucada

Por Pedro Alexandre Sanches

O Brasil raramente reconhece como nobres suas cantoras negras, ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos com Billie Holiday, Sarah Vaughan, Ella Fitzgerald, Nina Simone ou Dinah Washington. Se é que temos nossas equivalentes às grandes damas do jazz, elas atendem por nomes como Elis Regina, Gal Costa, Maria Bethânia ou Nana Caymmi, todas de peles bem mais alvas que as das congêneres norte-americanas.

Não é que não tenhamos grandes vozes negras. Contamos com a fibra de sambistas da pesada, como Clementina de Jesus, Dona Ivone Lara, Alcione, Leci Brandão, Jovelina Pérola Negra, Teresa Cristina. Nossas cantantes negras parecem tender mais ao samba (e, eventualmente, ao soul e ao funk, caso de Sandra de Sá) que, digamos, ao jazz, à bossa nova ou à dita MPB.

São coisas da vida, cantaria a ruiva Rita Lee, e este não é assunto que instigue maiores interrogações, debates ou estudos acadêmicos. Ou melhor, não era. Produto de uma dissertação de mestrado do jovem jornalista e historiador Ricardo Santhiago, de 26 anos, o livro Solistas Dissonantes – História (oral) de cantoras negras (Letra e Voz, 294 págs., R$ 40) mexe com sutileza no vespeiro oculto atrás das tais “coisas da vida”. E chega a conclusões tão cristalinas quanto desconcertantes, sobre os porquês da ausência de cantoras negras na MPB, na bossa, no jazz, nos gêneros de maior empatia junto ao público das classes médias para cima.

A primeira e mais direta das constatações é de que essas cantoras existem, sim, sinhô. Santhiago vale-se da metodologia da história oral para registrar os depoimentos em primeira pessoa de treze brasileiras negras que, ao longo de compridas trajetórias profissionais, não quiseram e/ou não souberam traçar caminhos musicais calcados nas qualidades e nos estereótipos de samba, batucada ou pagode.

Algumas delas gozam ou gozaram de certa popularidade e reconhecimento, como Alaíde Costa, Eliana Pittman, Rosa Marya Colin e Zezé Motta. Mas a maioria tem presença restrita e marginal nos meios de comunicação. Não se pode dizer que sejam amplamente conhecidos do público nacional os nomes de Adyel Silva, Arícia Mess, Áurea Martins, Graça Cunha, Ivete Souza, Izzy Gordon, Leila Maria, Misty e Virgínia Rosa.

Juntas, as treze formam um mostruário que está longe de ser completo. Elas próprias evocam, em suas falas, colegas ausentes que caberiam perfeitamente no escopo do livro: Angela Maria, Elizeth Cardoso, Carmen Costa, Elza Soares, Leny Andrade, Tânia Maria, Rosa Passos, Daúde, Leilah Moreno, Jaqueline Ribas. Ah, e também uma pioneira entre as compositoras brasileiras, que surge no depoimento de sua sobrinha, Izzy Gordon: “Dolores Duran também era negra”.

Mesmo incompleta a seleção, a leitura acumulada dos depoimentos deslinda aos poucos uniformidades surpreendentes. É quase unânime, por exemplo, o relato sobre a resistência de gravadoras, produtores e músicos diante da não identificação das artistas com o samba.

Leila Maria conta do convite feito por um músico “muito conhecido”, para um trabalho conjunto: “Eu disse que queria cantar jazz, Tom Jobim… Na mesma hora ele disse que eu tinha outro perfil, que devia cantar sambas e que essas não eram músicas que traduzissem o sentimento ‘do negro’. Encerrei o encontro ali e nunca mais voltei”.

Zezé Motta lembra que para sua estreia-solo, em 1978, recebeu músicas de Caetano Veloso, Rita Lee e Moraes Moreira. A gravadora Warner apostou nela, a bordo do sucesso como atriz, no papel-título do filme Xica da Silva (1976), de Cacá Diegues. Mas as vendagens não atingiram as expectativas da gravadora, que tentou então “redirecionar” sua carreira rumo ao samba.

“Esperneei pra cá e pra lá, mas no disco Negritude (1979) topei gravar alguns sambas”, ela declara no livro. “Mesmo assim, sempre rejeitei o rótulo de sambista, não porque tivesse algo contra o samba, mas porque (…) eu achava isso, vamos dizer, meio estranho… Parecia uma ditadura com o artista negro.”

Em prol da sobrevivência, Ivete Souza (assim como Eliana Pittman) zanzou pelo circuito dos shows tipo macumba para turista, “exóticos”, e reflete em paralelo sobre a imagem prévia que se faz de uma cantora negra e a resistência a ela caso não corresponda à tal imagem. “Xiiii… Já vai ter pagode de novo” é o tipo de frase que afirma ouvir com frequência nos bares onde canta. Mas diz que interpretar músicas do repertório de Elis Regina provoca outro tipo de comentário: “Olha aí, olha a negona. A negona quer ser branca”.

Nas falas de Ivete e Zezé transparece a dura questão racial subjacente às relações neste país onde, garantem, “não somos racistas”. Histórias assim são fortes e abundantes. Áurea Martins ganhou notoriedade em anos recentes com discos discretos e sofisticados, mas deixou perdido no tempo longínquo um LP de estreia pela RCA. “Cheguei a escutar uma das diretoras da gravadora dizer: ‘Esse disco? Com essa neguinha?’”, lembra. De fato, O Amor em Paz (1972) passou despercebido, mesmo com as canções de Tom Jobim, Baden Powell e Chico Buarque.

Ivete conta de um teste para crooner em que perdeu para uma cantora branca: “Depois, (o contratante) disse ao rapaz que me indicou, que jamais colocaria uma negra cantando numa banda de baile, porque não faz uma bela figura. Uma loira chama mais atenção”.

Casos parecidos tem Alaíde Costa, espécie de centro gravitacional de Solistas Dissonantes, citada como desbravadora, parâmetro e exemplo por quase todas as outras cantoras. Equivalente feminino à presença negra de Johnny Alf no advento da bossa nova (de resto toda branca), ela rememora diálogo que ouviu entre os avaliadores de um teste no início da carreira. “A Alaíde canta melhor, tem mais personalidade”, disse um. “É, mas a outra também é boa… E não é neguinha”, respondeu o segundo. “Lembro com dor”, constata a cicatriz.

Como em Alaíde, a consciência do peso do embate racial aparece em alguns depoimentos. “Todos diziam que o disco era maravilhoso, que a cantora era maravilhosa… Mas a coisa não ia adiante. Convites para eventos e projetos nunca rolaram”, expõe Leila Maria, reconhecida como excelente intérprete. “Foi aí que comecei a cantar a bola para a questão do racismo.”

“Ao longo da minha vida, recebi muitos elogios: dizem que sou uma cantora maravilhosa, que canto muito bem… Mas as oportunidades que tive como cantora não refletem isso”, ecoa Rosa Marya Colin.

Adyel Silva aborda o mesmo tema sob outro ângulo, descrevendo a dívida assumida pela avó, zeladora do banheiro público do Anhangabaú, para lhe comprar um piano. E reúne a figura da avó à de Alaíde Costa, ao interpretar aquele gesto: “Nunca conversamos sobre isso, mas talvez ela (Alaíde) tenha sofrido a mesma coisa que sofri. (…) Talvez ela sinta uma responsabilidade igual àquela que minha avó quis me passar quando comprou o piano para eu tocar na sala, e não ficar na área de serviço”.

A propósito, Alaíde conta em seu depoimento que viveu sem água nem luz, que teve três irmãs mortas por tuberculose (“assim como grande parte da minha família”), e que conciliou os primeiros tempos na música com a profissão de babá.

No diálogo com o autor, Leila Maria testa a hipótese do racismo, cita o contrato de silêncio entre os que o praticam e os que o sofrem e demonstra como ainda estamos diante de um tema tabu: “Eu mesma não falo disso, porque tenho medo de que não entendam o que estou dizendo e não apenas me tomem como preconceituosa, mas achem que estou usando isso como um recurso para justificar por que não acontecem mais coisas na minha carreira”. Note-se, ela diz que se cala, já falando.

O mesmo dilema amedronta Adyel, segundo conta Santhiago: “Ela me ligou dois dias antes do lançamento do livro, dizendo que estava com muito medo. O medo era de que não entendessem o que ela estava dizendo”. E ele chega a outro ponto crucial da narrativa fragmentária, mas coesa, que ergueu: “O primeiro passo para a transformação de um estado é o reconhecimento desse estado”.

Leila e Adyel não parecem equivocadas em temer que as queixas guardadas se confundam com vitimização. Mostram saber que a discriminação só se consuma quando há a permissão silenciosa dos discriminados. O ponto a que Alaíde e sua dinastia involuntária chegaram até aqui é o da recusa firme e quase sempre silenciosa em ceder às enormes pressões externas para corresponder a papéis limitados e predeterminados.

Isso transborda da significativa sequência de frases do tipo “jamais vão me dizer o que eu devo gravar, como devo cantar” e “jamais vão me dizer o que eu devo fazer” (Alaíde), “canto o que quero, não gosto de ditadura nem de patrulha, vinda de lado algum” (Zezé), “falo que sou preta, mas que sou cantora e eles vão ter de me engolir” (Áurea) ou “por que não na sala?, é isso, é exatamente isso: por que não na sala?” (Adyel).

Solistas Dissonantes auxilia a história a dar mais um passo adiante, à medida que, fato raro, deixa a tenacidade teimosa de nossas Ellas, Billies e Sarahs se fazer acompanhar não só pelo canto, mas também pela reivindicação.

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Editor de FAROFAFÁ, jornalista e crítico musical desde 1995, autor de "Tropicalismo - Decadência Bonita do Samba" (Boitempo, 2000) e "Como Dois e Dois São Cinco - Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa)" (Boitempo, 2004)

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