POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES
Cotação: 2 e ½

Se as capas dos discos pudessem contar a história dos discos, as de Caetano Veloso talvez desnudassem confissões perturbadoras. O rei-sol leãozinho que enchera de luzes e cores a maioria das capas desde pelo menos 1979 de repente se turvou, à beirada do século XXI. De 1999 para cá, tudo virou escuridão nas vitrines de seus discos autorais. As nuvens carregadas na capa marítima do novo Zii e Zie – Transambas exacerbam este já comprido ciclo de sombra – e, não, o assunto aqui não é a embalagem do CD.

Em 2002, como num soluço otimista, Caetano se ligou ao bardo esganiçado Jorge Mautner e lançou Eu Não Peço Desculpa, ensolarado da capa à sequência de canções pop leves, quase descontraídas. E então o tempo fechou, e fechado contiua. Cê, de 2006, inaugurou e Zii e Zie eleva às alturas algo que eu arriscaria chamar de uma “estética do desagradável” dentro destes 41 anos de caetanografia. Nos dois álbuns, o artista arranca de dentro e põe para fora, às dezenas, motivos de ódio, desolação, separação, tristeza, depressão, inveja, solidão, dor, medo, morte.

Delineia-se daí um Caetano franco, quase transparente, mas duro de ouvir. À gosma roxa de Cê, somam-se agora modos de cantar do dono da banda, entre agressivos e lamuriosos (Por Quem?, Tarado) e a aspereza das sonoridades e da banda. Seus “transambas” não são de cantarolar ou assoviar junto, e custa um bom número de audições até começarem a causar alguma empatia. Mesmo nos que pendem à bossa nova, não há barquinho, nem patinho, nem saudadinha – exemplos dessa vertente são a (des)esperançosa Sem Cais (“inda posso me apaixonar”, ele canta e não-canta), a zangada Falso Leblon, a relutante Lapa e Lobão Tem Razão, por sobre a qual a morte ronda assustadora. A barra aqui é pesada, como se dizia nos tempos da obra-prima Transa, lá por 1972.

A ponte induzida entre Transa e Transambas é evidente, mas os temas de lástima de agora (e de Cê) mais fazem lembrar Araçá Azul, de 1973. Lá, a atitude antipop se chamava “experimentalismo”. Aqui, desnuda que a capa de Araçá Azul, se parecem mais com melancolia e desamparo – e até empatia, quando os espinhos de Sem Cais penetram os ouvidos, ou quando Perdeu passa a soar menos estranha e sua rispidez começa a fazer sentido.

Não se sabe se o subtítulo de Zii e Zie quer se referir a um esquecido LP chamado Transamba, lançado em 1973 pelo futuro cantor de samba-enredo Marcos Moran, com versões black-pop para sambas de Chico Buarque, Novos Baianos, Antonio Carlos & Jocafi e Paulinho da Viola. Mas é transparente a intenção de bulir com o samba, do modo torto e arrevesado de hábito. Mesmo nos dois espécimes pinçados do disco de 1976 de Clementina de Jesus (Incompatibilidade de Gênios, de João Bosco e Aldir Blanc, e Ingenuidade, de Serafim Adriano), o andamento desacelera, a simpatia se esfumaça, a ironia é ressaltada. Leal ao samba de uma nota só dos tempos idos da crucial invenção tropicalista, Caetano reafirma, quantas vezes julgar necessário: chova ou faça sol, a música para ele é, sempre e ainda, musa híbrida. Desorganizado e despido de sua (suposta) caretice, o santo samba em Caetano é trans.

Se há no fundo dos cutucões ao samba uma sombra de rivalidade entre os modos baiano e carioca de sentir alegria (e tristeza), Caetano não deixa claro – ele nunca deixa, e esse é outro ponto nuclear do programa de governo tropicalista. Incrível é perceber que nestes tempos, esteja brigando com o samba, listando termos repulsivos, berrando raivas, tentando repelir o ouvinte ou fazendo as guitarras gritarem, Caetano só faz falar de amor, o tempo todo. Faria então sentido o mar que quebra majestoso na praia lúgubre da capa de Zii e Zie. Deve ser esse o modo tropicalista de amar. E muita gente fala esse idioma por aqui.

p.s. (três horas mais tarde): deve ter dado para perceber, publiquei este texto sem querer, freud explica… saiu na “rolling stone” do mês passado, mas eu não chequei se há alguma diferença entre esta versão, “original”, e a efetivamente publicada. coisas do jornalismo…

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