foto: nem de tal

O M/n Reppublica de Venezia começa a se afastar do cais 23 do porto do Rio e os passageiros correm à ponte de comando para admirar o trabalho hercúleo do minúsculo rebocador. Surpresa: desta vez não há rebocador. Duas poderosas hélices laterais do motor suíço do Venezia é que fazem o serviço. Esse navio anda até de marcha-a-ré.
A bordo, 1.500 fiats Uno, 11 italianos, um libanês, três brasileiros, dois cães, dezenas de toneladas de papel Klabin e um estoque de macarrão para consumo próprio que parecia interminável.
Apenas 28 tripulantes (dos quais 70% napolitanos) fazem funcionar o navio. O destino é o Porto de Gênova, mas desceremos em Livorno.
Houve um tempo em que tudo que um aventureiro queria na vida era sumir no mundo num desses navios cargueiro. Nem que fosse descascando batatas, lavando o convés ou dando lustro no timão. Kerouac fez isso.
“Se oriente, rapaz. Pela simples razão que você pode ir pro Japão num cargueiro do Lloyd lavando o porão”, cantava Gilberto Gil nos anos 1970.
Me esgueirando por entre os contêineres monumentais, sentado na borda de um bote salva-vidas, no ponto mais alto dos quase 30 metros de altura desse monstro flutuante, eu compreendo a sedução que essa viagem exerceu sobre tantos viajantes.
Mas o tempo passou e esses navios não usam mais marujos voluntários içados do porto com um arpão. Ninguém mais entra de gaiato nem o capitão te recruta com um balde e um esfregão na mão. Os marinheiros são todos sindicalizados e as cozinhas de bordo tem descascadores automáticos de batatas, forno elétrico e lavadoras de pratos.
Quando o navio passava por Cabo Frio, à noitinha, conheci Angioletta, 48 anos, que vivia em Higienópolis e estava retomando o caminho da Itália natal. Abraçada à cadela Nana (referência ao romance de Émile Zola, ela me explica), ela confessa que o excesso de bagagem é o maior motivo de estar no navio.
Muitos fazem essa viagem porque têm medo de avião. Outros, porque é bem mais barato (cerca de US$ 800, na época). A maioria, porque o limite de bagagem é extremamente flexível. Pode-se levar um piano, animais grandes, baús, até um carro ou os móveis de Jacarandá herdados de uma tia.
Em um dia, você já viu tudo lá dentro. A cabine é pequena, e o enjôo chega rápido. Pensei no livro A Expedição Kon Tiki, do aventureiro norueguês Thor Heyerdhal, que conta sua viagem do Peru ao Caribe numa jangada. Fazia-se acompanhar por dois marinheiros, um papagaio e um livro de Goethe.
O mundo vai desaparecendo, sobra só uma imensidão azul. Os navios que cruzam estão muito distantes, de noite são só luzinhas que surgem e desaparecem no meio de uma tragada.
Velhas revistas L’Espresso e Oggi que a gente lê e relê continuamente; um cardápio ortodoxo do cozinheiro Genaro, que é fã de Terence Trent D’Arby (nota atual: e que iria me ensinar a fazer a berinjela ao forno que é melhor que qualquer prato do El Buli).
O cargueiro viaja a 17 milhas por hora (cerca de 32 km por hora). Imagine que você está indo para a Europa de carro, a 32 km por hora.
Andando pelo porão do cargueiro, a impressão é que, a qualquer momento, a gente vai encontrar o hipopótamo do filme E La Nave Va, de Fellini.

abril de 1990

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Jotabê Medeiros, paraibano de Sumé, é repórter de jornalismo cultural desde 1986 e escritor, autor de Belchior - Apenas um Rapaz Latino-Americano (Todavia, 2017), Raul Seixas - Não diga que a canção está perdida (Todavia, 2019) e Roberto Carlos - Por isso essa voz tamanha (Todavia, 2021)

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