Não tem muito tempo isso que vou contar.
Lembro que foi numa época em que o jornalista era, na maioria das vezes, um sujeito durango como eu, vindo do proletariado, com algum conhecimento prático da realidade sobre a qual escreveria. Hoje, há uma predominância do jornalista de classe média, muitos de classe média alta. Tem muita gente que vive em São Paulo mas jamais foi até a Zona Leste, nunca experimentou um sanduba no Belenzinho, não tem a menor idéia de onde fica a Led Slay. Quando esse novo repórter, a trabalho, chega a algum lugar fora de sua rota Oscar Freire-Rodeo Drive, acha que está fazendo um favor àquela gente. Tipo o Elton John no palco do Live Aid, achando que está salvando o planeta.
Mas isso que vou contar aconteceu muito antes de os sobrenomes famosos rechearem as redações.
Eu era um foca naquela Folha do Interior.
Tinha conseguido uma motinha Garelli usada que comprei a prestação e soltava fumaça muito preta e já estava assinando reportagem, o que me tornava quase uma celebridade.
Dia de mormaço na redação, nada para fazer. Chamaram a mim e a outro foca compridão, os que estávamos coçando mais forte o saco, e inventaram algo para se livrarem da gente. Nos mandaram para o campus universitário, fazer matéria de comportamento com os vestibulandos. Fomos. Depois de azarar as meninas, posar de Hunter Thompson do subúrbio ali no centro de Humanidades, contar vantagem para um ou dois perdidos, tomar sorvete Kibon debaixo da árvore, nós concluímos: daqui não sai nada, desse mato não sai coelho.
Então, voltamos à redação e redigimos uma peça que misturava as nossas parcas anotações daquela tarde a uma prodigiosa imaginação ficcional. “Fulano de Tal esperava pela prova que definiria sua vida inteira ouvindo Roger Waters, o disco The Pros and Cons of Hitch Hiking, num walkman vermelho”.
A parte ficcional é fácil de perceber – tudo que vem depois de “Fulano de Tal esperava pela prova…” é cascatol.
A matéria foi publicada e foi um sucesso. Não era propriamente uma barbaridade, mas eu percebi a gravidade daquilo, vi que aquilo podia se tornar um hábito perigoso. Acho que foi a partir dali que resolvi me tornar um jornalista de fato. Era fácil. Tinha muita gente boa com quem aprender: velhos repórteres carcomidos que pareciam que iam se desmilinguir na minha frente; um outro tão cachaceiro quanto brilhante (morreria de cirrose anos depois); um cronista policial que lia o jornal com uma lupa, como se tivesse saído diretamente da pena de Conan Doyle.
Eram quase todos irônicos e independentes. Isso parecia regra. Ser independente era uma questão crucial. Imagino que, se um determinado tipo de poder absolutista quiser acabar com o jornalismo, primeira coisa a fazer é acabar com o espírito independente do jornalista. É só mirar no coração do jornalista.
Muito tempo depois, já sem o habeas corpus da inexperiência, lá estava eu de novo dando mole na redação e o editor-chefe mandou me chamar. Tinha recebido um convite para ir a Los Angeles, uma festa na Mansão Playboy, 50 anos da Playboy. Não sei porque cargas d’água, mas eu tinha sido escolhido. Ia para uma putaria, e ainda por cima estava sendo pago para isso, era o que diziam com ares de galhofa os amigos nos corredores.
Emprestei o livro-reportagem do Gay Talese antes para ler na viagem, A Mulher do Próximo. Achei o livro bom, bem escrito, mas cheio de coisas do tipo: “Naquela noite, a mulher de Fulano deitou-se na cama, abraçou um dos seus gordos travesseiros de pena de ganso e chorou, pensando em como ela tinha sido maltratada aqueles anos todos”.
Havia ali um esforço de pesquisa, grande talento e domínio da linguagem para descrever a formação do Império Playboy, mas eu fiquei com uma sensação estranha, como se estivesse de novo diante daquele lide “Fulano de Tal esperava pela prova que definiria sua vida, ouvindo Roger Waters num walkman vermelho…”.

CONTINUA

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Jotabê Medeiros, paraibano de Sumé, é repórter de jornalismo cultural desde 1986 e escritor, autor de Belchior - Apenas um Rapaz Latino-Americano (Todavia, 2017), Raul Seixas - Não diga que a canção está perdida (Todavia, 2019) e Roberto Carlos - Por isso essa voz tamanha (Todavia, 2021)

3 COMENTÁRIOS

  1. Muito engraçado como, as vezes, eu ainda me sinto inferiorizado perto desse pessoalzinho de sobrenome falando que conhece um restaurante “incrível” em Nice.
    Eu deveria me lembrar mais das vezes que fui a Ledslay. E pensar que é por isso que hoje eu ando a Augusta a pé de madruga como eles andam em Alphaville.

  2. A Mulher do Próximo. Comprei num sebo, tem a resenha de lançamento da VEJA colada na última página. Os nomes dos donos aparecem carimbados em diversas páginas. Bem como uma suástica.
    Texto cheio de bolhas – se o marido ciumento tivesse levado a cabo sua raiva, talvez a história tivesse um ponto de apoio. Talvez. Mesmo assim, ele foi incapaz de jogar sete anos de pesquisas no lixo.
    Você acredita que ele tenha inventado algumas das descrições?

  3. acredito que ele inventou algumas das descrições, assim como o hunter thompson inventou ou imaginou coisas em alguns dos seus livros.
    ambos aprenderam a lição do truman capote em ‘a sangue frio’.
    mas não estou dizendo que não sejam bons. são ótimos.

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