há muito peguei gosto pelas coisas grandiosas da vida: a temporada das amoras, o cachorro dormindo na grama, o primeiro beijo na frente da igreja, o vento no rosto durante o passeio de bicicleta.
para não enrolar muito, um só canção velha do roberto: se eu pudesse voltar no tempo

e observar o menino que cresceu saltando apressado do carro e caminhando ereto e feliz pela usp, em direção à aula de alemão ou sânscrito.
e o sol ardido do inverno.
e os amigos que eu consigo enxergar sorridentes de dentro do carro em movimento, lá dentro na mercearia, felizes lançando mais um livro.

há muito cultivo com certo enfado o desprezo pelos jogos pequenos e mesquinhos do dia-a-dia: o rateio do poder, a bajulação, a batalha hierárquica pelo melhor computador & a melhor salinha & a melhor secretária.
o combate diligente às idéias novas e à ousadia (o poder é o sexo dos velhos, já dizia leminski).
o desprezo pela pequena história, pelas histórias invisíveis.
a impaciência e o deboche com os mais humildes e sem chance.
os falsos progressistas que, escondidos atrás de uma cortina de mentiras, dizem pelear em nome da objetividade.

é uma olímpica queda-de-braço essa que se trava todo dia entre as pequenas coisas grandiosas e as fabulosas coisas medíocres.
quando as coisas medíocres parecem triunfar, é preciso combater a chegada da angústia com alguma inspiração e presença de espírito.
ajuda muito também contar com alguma proteção de fora: um vaso com arruda, um padre cícero esculpido a canivete que veio do juazeiro, uma santa comprada de um pescador na foz do rio são francisco.

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Jotabê Medeiros, paraibano de Sumé, é repórter de jornalismo cultural desde 1986 e escritor, autor de Belchior - Apenas um Rapaz Latino-Americano (Todavia, 2017), Raul Seixas - Não diga que a canção está perdida (Todavia, 2019) e Roberto Carlos - Por isso essa voz tamanha (Todavia, 2021)

2 COMENTÁRIOS

  1. Chegada a angústia, ando procurando minha inspiração e presença de espírito (confesso que a procura está difícil). Quanto a tudo escrito antes disso, concordo com cada letra e acento. Só posso dizer que vejo e vivêncio sempre, todo santo dia. Santos e Demônios, a arte de aprender a viver com eles (em nós e nos outros). Gosto MUITO do que tu escreve Jotabê. Vim parar aqui pelo blog do meu amigo Marião.
    bj.

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