minha participação na “carta capital” especial de encerramento de 2007 e início de 2008, uma edição (a 477) que teve como mote e título de capa a expressão “esperanças do brasil”.

muitas (ou muitíssimas) dessas esperanças, na minha modesta opinião, levam a falsa alcunha de “minorias” e nasceram e/ou moram nas periferias de são paulo (e de qualquer outro cantinho brasileiro). algumas delas, como quelynah, negra li, leilah moreno e cindy mendes, parecem hillaryobamas em miniatura reunidas numa pessoa só, não é mesmo? êita, feliz mundo novo!

AS MENINAS DA PERIFERIA
Uma conversa com as protagonistas de Antônia sobre racismo, machismo e superação


[dentro da reportagem, a legenda de uma foto com as quatro cantoras-atrizes reunidas prestava informações breves sobre elas: “Negra Li (esq.), nascida na Vila Brasilândia, recebeu CartaCapital em casa, na Granja Viana. Quelynah (a segunda), de Heliópolis, e Cindy (dir.), se reuniram num centro assistencial em Osasco. Em gravação de novela na Globo, Leilah (a terceira), de São José dos Campos, participou por telefone”.]

CartaCapital: O filme Antônia fala sobre o dia-a-dia na periferia. Que importância dão a essa questão, e como o filme transformou a vida de vocês? O que é periferia?

Quelynah: Periferia é um lugar longe da cidade. Fala-se periferia, mas sou da favela. Não moro mais lá, mas sou de Heliópolis. Estou na música desde os 13 anos. Tive passagem por igreja, aos 15 ouvi hip-hop pela primeira vez e me identifiquei. Por quase dez anos, fui casada com Thaíde, um dos precursores do hip-hop no Brasil. Ele me ensinou muita coisa, me ensinou o que é hip-hop. Fui finalista do reality show Pop Star, do SBT, do qual saiu o grupo Rouge. Fiz backing vocal para Alexandre Pires. Antônia foi meu maior trabalho até agora. (A cineasta) Tata Amaral foi muito respeitosa com a gente. Respeitou nosso dialeto, nosso jeito, nossa cultura. E o filme abordou, além do hip-hop, a mulher que enfrenta os obstáculos, o machismo e vários outros preconceitos.

Cindy Mendes: A Tata trouxe a figura da mulher na sociedade, mas também dentro do hip-hop. A mulher que não tem força e originalidade não consegue nem sair do primeiro palquinho, morre ali mesmo. O cenário de Antônia é a periferia, e a Tata mostrou que lá existem garotas bonitas, que cantam bem…

Q: Mostrou o talento, não só a violência.

CM: Hoje se tornou chique falar de periferia. Está na moda ser negro e do hip-hop.

Q: O glamour do morro, a favela chique.

Leilah Moreno: Na verdade, só conheci a realidade das periferias e visitei favelas quando fui fazer Antônia. Vim do interior, de São José dos Campos, e lá praticamente não tem periferia. Mas venho de uma família humilde, tive mais uma vida interiorana, de roça, de área rural. Antes de mudar para São Paulo, já estudava aqui. Fazia Universidade Livre de Música, acabei participando do programa do Raul Gil, fiquei dois anos contratada pela Record, gravei dois discos. Não terminei o curso, faltando quatro meses para me formar parei, não tinha grana para pegar ônibus todos os dias de São José para cá. Mas tenho vontade de fazer faculdade de cinema. Vontade, não, eu vou fazer.

Negra Li: Lembro de viver na Vila Brasilândia sem muita perspectiva, de ficar na rua o dia inteiro com minhas amigas e sentir agonia porque sempre quis ser cantora e pensava: “Será que não vou sair daqui?”, “como vou fazer para começar?” Você não sabe por onde começar, onde se oferecer para cantar. Mas tive uma família maravilhosa. Minha mãe conseguiu botar os cinco filhos numa escola particular, com bolsa de estudos. Hoje estudo música na escola Groove. Estou lá firme e forte, no final do ano tem apresentação, vou cantar três músicas da Elis Regina. Nunca ninguém me apresentou nem me ensinou a ouvir MPB, meus pais não tinham bagagem musical, não tinham discos porque são evangélicos. Meu pai era, minha mãe é. Eu sempre fui. Estou aprendendo agora a ouvir Baden Powell, Gilberto Gil, Jorge Ben. E estou adorando.

CC: Como era estudar em escola particular? Tinha preconceito?

NL: Tinha tudo. Alguns professores, por serem pessoas mais inteligentes, me tratavam até melhor por saber que eu era de origem humilde. Mas minha merenda era ki-suco e pão com manteiga. Meus irmãos só tinham sapato, não tinham tênis, e na educação física a professora falava alto: “Que barulho de toc-toc é esse?”, “veio com sapato fazer educação física?”. Meus irmãos não agüentavam, saíram antes da escola. Eu e minha irmã íamos em festa da escola de uniforme, porque não tínhamos outra roupa. “Por que você veio de uniforme?” “Ah, estamos fazendo tipinho, a gente gosta assim.” Mas minha mãe sempre me passou orgulho, a gente tinha auto-estima. Chegava nervoso, cada um contava a história que tinha passado, “uma menina hoje me chamou disso”. Meu pai falava muito “você não pode abrir mão de ser livre, da sua liberdade”. E eu entendi claramente o que ele quis dizer com aquilo.

CC: Antônia é um filme feminista? E vocês, são feministas?

Q: Sou muito feminista. Dizem que todas as feministas são feias, eu sou bonitinha (risos).

CM: Será que sou? Não sei… Comecei muito nova, contra a vontade da família. Decido tanto pela minha vida, às vezes eu até queria ter um pouco mais de apoio. Mas, por fazer tudo tão sozinha, por aderir a um estilo musical que é tão masculino, acho que a gente acaba criando uma autodefesa feminista.

Q: O meio do hip-hop é muito machista. A gente tem de bater de frente com eles, com talento e inteligência. Os manos são tristes, viu? Mas não são só eles. Um repórter na Bahia me perguntou se sofro preconceito no hip-hop por ser branca. Olha o tamanho do meu nariz, olha a minha boca! Sou negra, acho que é porque estava com o cabelo loiro. Um preconceito puxa o outro, né?

NL: Só mais tarde fui enxergar que fui vítima de machismo. E às vezes não era nem porque os caras não eram boas pessoas, mas porque a maioria dos homens é machista, principalmente os do hip-hop, tanto os rappers quanto o público. Comecei num grupo, um dos vocalistas já morreu. Morreu de tiro porque saiu com a garota de um cara adolescente, o de menor matou ele. Não estava virando, eu meio que pagava para cantar, cantava para meia dúzia de pessoas. Saí. Fui cantar com o (grupo) RZO, e quando estava com eles muitas vezes tinha que agir de uma forma que não era eu. Tentava me vestir com roupas dos meus irmãos. Falavam que eu não podia sorrir para os homens, nem podia cumprimentar com beijo, estaria querendo graça. Tinha que dar a mão, ser séria, fazer “e aí, beleza?”, impor respeito. Sou negra, mulher, da periferia e canto rap. Quem vai levar a sério?

CM: Por mais que a televisão tenha aberto espaço para atrizes negras, ainda é tudo muito rotulado. Para uma negra, é difícil encontrar um papel fora do da empregada ou da escrava. Antônia me trouxe esse espaço, como cantora e como atriz. Depois do filme é que resolvi e fui estudar música. Era um sonho, agora é realidade. Muitas meninas pararam por falta de apoio, de oportunidade.

Q: O que falta para a gente é determinação, e essa é a mensagem de Antônia. A gente tinha um discurso estranho, de ficar só sofrendo, reclamando. Sempre tive o sonho de ir para uma gravadora, mas depois vi que é bobeira, que hoje selo independente deixa você livre para o trabalho, para ser quem você é. Lancei meu disco independente. Tenho um sonho de cantar na MTV e dizer assim: “Alô, gravadoras, muito obrigada por não terem apostado em mim”.

CC: Negra Li não mora mais na Brasilândia. Como é hoje sua relação com a periferia?

NL: Minha mãe ainda mora lá, no mesmo lugar onde nasci. Tenho certeza que qualquer um ali que ganhasse na mega-sena ou melhorasse de vida procuraria um lugar mais sossegado para viver. Passaram a exigir de mim uma atitude que eu não tinha. Minha família sempre viveu ali, teve muita necessidade quando eu era mais nova, e um vizinho ou outro emprestava um pouco de açúcar, mas não era a Brasilândia que ia lá nos ajudar. Hoje me cobram buracos na rua, “olha aí, Negra Li, tem que ver isso”. Eu não devo isso, não sou político. Fico triste por causa disso. Quando foram passar o filme em telão na Brasilândia, eu tinha feito uma operação plástica e não pude ir. O líder comunitário disse que nunca me viu andar na rua ali. Eu andava, ia a pé até Pirituba. Para ficar melhor, me matriculei no coral da USP, que era gratuito. Não tinha dinheiro, mas fui atrás de saber onde davam aula de canto. Muitas vezes pedi ao motorista para descer pela frente, para poder freqüentar as aulas, melhorar.

CC: Que cirurgia você fez, e por quê?

NL: Fiz no nariz, porque sou supervaidosa. Quando me vi na primeira temporada de Antônia na tevê, me olhava de perfil e falava: “Por que a ponta do meu nariz cai? A da minha irmã não cai”. Associações de negros me criticaram, mas não posso fazer por que sou negra? Então não sou livre, continuo sendo escrava. Sou escrava, não dos brancos, mas dos próprios negros. Gente, se não gostasse de ser negra jamais teria o nome Negra Li. Escolhi o nome Preta para minha personagem, teria feito isso se não tivesse orgulho?

CC: Você já disse que quando era pequena não encontrava na tevê uma Xuxa negra para se espelhar.

NL: É, eu queria ser Paquita, mas não dava, né? Quando Adriana Bombom apareceu ali, ela revolucionou. Fez muitas meninas sonharem mais alto. Não sei se ela faz idéia do que foi ela ter aquele espaço ali.

CC: E você, faz idéia da responsabilidade que tem?

NL: Também não faço (ri). Ainda bem que tem Leilah, Quelynah e Cindy para dividir comigo. Porque, puxa, que responsabilidade é isso. Você alisa o cabelo, dizem: “As menininhas se inspiraram no seu black power, por que foi alisar?”. Ainda bem que são quatro, cada uma com seu estilo, para as pessoas verem que qualquer um pode ser do jeito que quiser.

CC: A personagem de Leilah no filme passa pela experiência da prisão. Como foi fazer aquelas cenas?

LM: Achei bacana mostrar a realidade da cadeia, até porque eu já conhecia. Trabalhei naquele mesmo presídio, por cinco anos cantei nas festas de fim de ano e dia das mães que faziam para as detentas. Você tem que ter muito cuidado com o que fala. Num show normal se fala “até a próxima, galera”. Na cadeia, ninguém quer estar ali no próximo show. Nos primeiros shows fiquei um pouco mais em silêncio para poder aprender como falar com elas. Quando você começa a sacar é muito bacana, porque a cada palavra de esperança você vê o brilho no olho delas. Você passa confiança, e elas guardam durante muito tempo, porque não têm muito do que se lembrar ali dentro, não têm experiência boa ali.

CC: O funk carioca tem em comum com o rap o fato de ambos terem modificado a vida de muita gente na periferia. O que pensam do funk carioca?

Q: O hip-hop está meio assustado com a chegada do funk a São Paulo. Até chutei a bola para o Mano Brown. Mas, não sei, o hip-hop não está de passagem. A história do funk carioca é muito peculiar, né? Gosto muito da batida.

CM: A batida é maravilhosa, mas, gente… Fico preocupada, porque a música brasileira é riquíssima, e eu encaixo o hip-hop dentro da MPB. Nós não somos brasileiras? Não cantamos em português? Mas se o funk é encaixado dentro da MPB, ele está acabando com a MPB.

CC: Não tem gente que acha o mesmo do rap?

CM: Não, a gente não pode dizer que o rap dos Racionais não contribuiu para a MPB.

Q: Fico meio encabulada com as letras do funk, mas gosto daqueles de afirmação, é som de preto, de favelado/ mas quando toca ninguém fica parado. Procuro fazer músicas que tragam informação, e trago no pacote a sensualidade, que eu sabia que era uma coisa que batia de frente. Falo sobre auto-estima, que é uma coisa de que a gente precisa muito, muito, muito. E sobre perspectiva de vida.

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