terça-feira. no ônibus urbano do meio-dia, um senhor negro, de idade avançada, cabelos embranquecidos, rosto enrugado, roupas puídas, conversa exaltado ao telefone celular. “não grita! eu já te expliquei que quando você abre aparece isso na tela mesmo! clica lá!”, ele se debate com o interlocutor. “não grita!, não fica nervoso!”, aconselha, tendo a nós, companheiros passageiros, como platéia involuntária. na paralela, ali ao lado, o cobrador, também negro, se debate para compreender e responder a pergunta proferida em castelhano, ou melhor, em portunhol, pelo passageiro de traços peruanos, equatorianos, bolivianos, latino-hermanos, asiáticos-indígenas, trans-andinos. “onde desce para trianon?”, indaga o turista aprendiz. “hein?”, embaraça-se o brasileiro cobrador, o trianon já aparecendo ali adiante na pista da avenida paulista. “trianon…” “sem ser nesse ponto, no próximo.” “hein?” “daqui a dois pontos.” “ah, duas quadras?” “não, dois pontos”, corrige, estendendo bem didático dois dedos diante do nariz do vizinho latino-americano, doooo-iiiiiiis. “ah, dois pontos”, entende o amigo latino-americano.
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segunda-feira. o ônibus noturno é daqueles que têm piso central rente ao chão de asfalto e sarjeta, para bem acomodar os passageiros que tenham de viajar de cadeira de rodas. nesse modelo de ônibus, a parte traseira é elevada, e os passageiros ficamos no fundão como num poleiro, numa arquibancada, num teatro de (semi-)arena, como se fizéssemos platéia para a frente do frete, para os passageiros que entram, para o motorista, para o cobrador. e o cobrador, negro, vestido com cores de modernidade, desenvolto e ostensivamente à vontade, conversa animadamente ao telefone celular. da arena traseira, os passageiros ouvimos sua conversa, que se desenrola em inglês muito, muito, muito bem pronunciado, daqueles repletos de sutilezas e requintes, “yeah, all right”. a platéia do fundão ouvimos atenta, mas caladíssima, talvez aplaudindo silenciosamente, para dentro, o tele-cobrador trans-afro-paulistano.
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sábado. nós estamos no interior carioca, e trafegamos, na calada da noite de meia-lua-melancia, por uma estradinha de terra plácida e quieta, um riozinho pedregulhado borbulhando ao lado com ares de invisibilidade trans-noturna. ao longe, em direção inversa à nossa, vai se aproximando a figura mítica. o interiorano, vaqueiro, boiadeiro, peão, colono, lavrador, homem surrado pelo tempo, de cor indefinível no lusco-fusco da noite que antecede a madrugada de são joão. em trajes de chapéu e bota, ele galopa um cavalo tão plácido e tranqüilo quanto a estradinha pisada pelas quatro patas que carregam o peso do mito. numa das mãos do boiadeiro, as rédeas do trans-cavalo. na outra, colado ao ouvido do vaqueiro, um trans-objeto reluzente, que contrasta fosforescente com a escuridão ao redor. um telefone celular, bem mais vaga-lume pisca-pisca vermelho-amarelo-verde do que a lua-melancia sorridente-melancólica lá no alto da arena estrelada do céu.

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