então. não sei quem percebeu e quem não percebeu, mas nos dois tópicos mais recentes estivemos discutindo apaixonada e exaustivamente alguns dos aspectos mais superficiais de uma coisa importantíssima, nuclear, chamada mediação de conflito.

ficamos brincando de pula-fogueira, amarelinha e dominó no planeta dos mutantes, fingindo jogar gasolina nas ritas, imaginando atear fogo nos arnaldos, burburinhando sobre quem expulsou ou foi expulso, futricando sobre quem ganhou ou perdeu muito $$$$$, oscilando na corda bamba entre as picuinhas mais incendiárias e as disposições mais pacificadoras. andamos pela fronteira, na zona de guerra, no front, na trincheira. fronteiriços, também nós, entre tochas humanas e homens-baldes-d’água, entre homens-bomba e mediadoras de guerra. pulando fogueira, amanhecendo mijados.

falamos de música. brincamos de seguir (ou não) a trilha de miolos de pão que vai dar na jaula dos julgamentos peremptórios e/ou na boléia da bajulação adulatória por sobre os mutantes, os ex-mutantes, os astronautas, os reis-meninos. nos nos simulamos penetras na festa high society de bolinhas chiques e luluzinhas famosérrimas. lambuzamos de brioche. boiamos na superfície que apenas belisca as mágoas mais fundas & os amores mais profundos de nossas (ir)realezas.

mas as profundezas e as profundidades do assunto crucial estava e está nos rondando, nos cercando, espreitando nossos próximos passos e nosso futuro. histórias em quadrinhos à parte, a (falta de) mediação de conflitos (e de guerra, lá para além dos limites) era e é e será tema definidor da nossa vida por sobre este planeta de mutantes e de não-mutantes.

vai daí que eu te proponho, outra vez: picuinhas pop à parte, vamos aproveitar o know-how e parlamentar um pouquim sobre medi(t)ação de conflitos?, no duro, na real, na maior, numa relax, numa tranqüila, numa boa?

o mote é dado por quem entende do riscado, porque vive na carne e no dia-a-dia a mediação de guerra, e a própria guerra, essa que eu-você-nós finjo-finge-fingimos todo dia que nem estamos vendo, que nem estamos ajudando a compor, em processo de criação coletiva.

da fala desses caras – desses artistas, se me permite – foi extraída a reportagem que segue abaixo, da “carta capital” 416, de 25 de outubro de 2006. e, se a gente não presta atenção nesses caras – nesses artistas -, a gente simplesmente segue incendiando tudo ao nosso redor, bem “contente” e “feliz”, nénão? quem quer ser o estopim da bomba? quem prefere ativar supergêmeos na forma de um balde d’água fresca?

[obs.: tem, sim, música à beça circulando bem ali-aqui onde fica a trincheira, a interlândia, a zona, o front de batalha. ouve só, está tocando neste instante, bem aí nos seus-meus-nossos ouvidos…]

ARTE NA ZONA DE GUERRA
De Vigário Geral à Sérvia, a mediação de conflitos através da cultura

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

Um grupo musical do morro toca no “asfalto” carioca, numa tradicional casa de shows, para um público que mistura empresários, artistas, celebridades e moradores de favelas. A certa altura, a platéia emudece e segura o fôlego, diante da entrada no palco de um batalhão de policiais fardados. Instrumentos em punhos, os policiais militares vindos de Minas Gerais passam a tocar percussão em companhia dos músicos. O grupo, chamado AfroReggae, floresceu a partir de uma tragédia, a chacina que em 1993 exterminou 21 habitantes inocentes de sua comunidade de origem, Vigário Geral.

Em outubro de 2006, pouco mais de um ano depois da cena descrita acima, o coordenador do AfroReggae, José Junior, de 38 anos, está em São Paulo, na avenida Paulista. Participa de reuniões na diretoria da Fiesp, para discutir projetos comuns da federação das indústrias com o recém-criado grupo F4, que agrega quatro das maiores ONGs cariocas, AfroReggae, Cufa (Central Única das Favelas), Nós do Morro e Observatório de Favelas.

Ele e Celso Athayde, da Cufa, se alternam entre a sede da Fiesp e a do Itaú Cultural, onde Junior e o AfroReggae coordenam os trabalhos do Antídoto – Seminário Internacional de Ações Culturais em Zonas de Conflito. A diversidade ali reunida é vertiginosa.

Há o israelense Shai Schwartz, que mora numa cooperativa judaico-árabe em sua terra natal e trabalha em Londres com crianças e adolescentes refugiados de África, Afeganistão, Iraque, Turquia etc., especialmente aqueles que já foram torturados ou presenciaram massacres na família. O rapper Ferréz vem trazer a vivência da zona de conflito chamada Capão Redondo, periferia sul de São Paulo. O jornalista Veran Matic revisa a trajetória de fundador da rádio B92, a primeira emissora independente da Sérvia, que desempenhou papel importante na resistência contra o regime governado pelo ditador Slobodan Milosevic. Somam-se a esses antropólogos, uma psicóloga que media conflitos com as Farcs colombianas, um palhaço norte-americano, um coronel mineiro, uma ativista libanesa, e assim por diante.

José Junior não é só um artista, ou um músico, ou o coordenador de uma estrutura social e cultural que já virou comercial e se multiplica em turnês musicais pelo Primeiro Mundo e em rodadas de negociação com o “PIB brasileiro”. Assim como seus pares espalhados pelo planeta e provisoriamente agrupados na avenida Paulista para o seminário Antídoto, ele se considera (e age como) um mediador de guerra.

“Cresci ouvindo que todo policial, empresário, político ou jornalista é filho da puta, principalmente o jornalista”, provoca, sabendo que é entre esses mesmos personagens que ele hoje deseja circular (e circula) com desenvoltura, sem nunca perder contato com suas origens no centro carioca, em proximidade total com bicheiros, prostitutas, travestis. Outra das inúmeras mediações que se propõe a fazer é entre o tal “PIB brasileiro” e o que ele apelida de “PIB bélico”, ou seja, as comunidades carentes em que coexistem traficantes e trabalhadores, muitas vezes estigmatizados em bloco pela sociedade do “asfalto”.

Na época da chacina, por exemplo, Vigário Geral e a vizinha Parada de Lucas viviam uma guerra entre líderes do tráfico das duas comunidades, cada uma delas controlada por uma facção criminosa. Desde a fundação do AfroReggae, em 1993, Junior e os demais coordenadores vêm se consolidando como mediadores em situações de conflito e de guerra aberta entre facções inimigas. De lá para cá, instalaram um núcleo e promovem grandes shows na antes inimiga Parada de Lucas.

Experiências como essas e as da convivência entre policiais e cidadãos por intermédio não da violência, mas da música, estão condensadas no documentário Nenhum Motivo Explica a Guerra, dirigido por Cacá Diegues e comercializado diretamente em DVD. Sobre a necessidade de aproximar polícia e comunidade, Junior diz que fez questão de que entre os monitores do AfroReggae colocados em contato com os policiais mineiros estivessem alguns abertamente homossexuais; todos eles deveriam, necessariamente, ter sofrido experiências particulares com violência policial. Monitorados, os conflitos passam a ser, eles próprios, instrumentos de resolução de conflitos. “Todo mediador de guerra é alguém que teve perdas na vida pessoal”, sintetiza.

Mas todo mediador se arrisca, também, a ser confundido com a situação que está mediando, a avaliar pelo depoimento de Celso Athayde, co-autor com MV Bill do documentário e livro Falcão: “Bill sempre foi tido como bandido, e eu também, em certa medida. Em parte por nossa causa mesmo, já que o rap também foi uma indústria de denúncias, que não oferecia alternativas ou soluções”.

Citando os processos de apologia ao crime a que ele e Bill respondem por conta de Falcão, diz: “Se Caco Barcellos e João Moreira Salles tratam de violência, é literatura e cinema, porque eles têm autoridade. Nós não temos o mesmo direito, não podemos escrever livro, porque é crime”. Quando a seleta platéia da Paulista aplaude um vídeo sobre mortes violentas em comunidades que ele exibe (e a que assiste chorando), Athayde classifica o aplauso de “constrangedor” e ironiza a situação, indagando se as palmas também não poderiam configurar apologia ao crime.

José Junior gosta de provocar quaisquer interlocutores citando e descrevendo a “narcocultura”. “É uma estética, uma indústria, uma gastronomia. A narcocultura gera grana ilícita e lícita, como quando alguém instala uma padaria do lado da boca de fumo para aproveitar o movimento. ‘É nóis’ é um termo do Comando Vermelho. ‘Tá dominado’ também é, e virou hino da Xuxa. A Nike faz parte do universo da narcocultura”, enumera, referindo-se ao fato de que meninos da favela traficam e roubam para atender ao sonho de consumo de ter um tênis de marca.

As referências à narcocultura e às guerras entre povos se multiplicam ao longo do evento, se embaralhando também com outros signos. Num vídeo sobre conflitos na Argélia, a imagem insistente de um pequeno aparelho de tevê é sempre seguida por imagens de metralhadoras e fuzis; a leitura de que a mídia também pode ser arsenal bélico é recorrente no seminário. A antropóloga brasileira Betty Mindlin discorre sobre os índios massacrados na Amazônia na esteira da exploração de diamantes que virarão “só colar no pescoço de europeus”.

O antropólogo peruano Rodrigo Montoya critica o etnocentrismo: “Vemos o mundo da perspectiva do grupo a que pertencemos. Vemos a nós mesmos como ‘superiores’, e os outros como ‘bárbaros'”. E foca no etnocentrismo ocidental: “Os Estados Unidos atribuem à cultura islâmica uma condição de maldade, contra outra de bondade, que é a deles. Vira ‘normalidade’ versus ‘anormalidade’, ‘civilização’ versus ‘barbárie’, ‘progresso’ versus ‘atraso’. São categorias inúteis. Ao usá-las, as pessoas voltam a argumentos do passado que servem para justificar a linguagem do nosso tempo de que está bem que uns povos dominem os outros”.

O israelense Shai Schwartz, híbrido de ator, dramaturgo, educador, contador de histórias e psicanalista, relata o caso de um jovem da Somália que foi incorporado à guerrilha, matou e estuprou. Num exercício de dramatização, o rapaz acaba por se identificar com o mito do “monstro”, afirmando que “é isso que eu sou, há um monstro dentro de mim”. Conta Schwartz: “No meio do processo, ele disse que ‘nem sempre sou um monstro’, que ‘não sou um monstro quando estou feliz, seguro, confiante em mim’. Perguntei quando ele era um monstro, ele respondeu que é ‘quando estou com medo'”.

Em seguida, Schwartz promove uma dramatização com a platéia do Antídoto, utilizando a fábula de Chapeuzinho Vermelho para conduzir alguns espectadores a se identificarem com as figuras da mãe, da avó e do lobo mau. “Você mata e come garotinhas, mas defende a ecologia. Não sente culpa por isso?”, indaga ao rapaz que, interpretando o lobo, se debate para afirmar que é só lobo, e não lobo “mau”.

Mesmo à luz da distância real e simbólica que separa o Ocidente e o Oriente, a mediação alegorizada pelo israelense faz lembrar as do carioca José Junior ao intermediar relações entre “cidadãos” e “bandidos”, entre traficantes de facções distintas, entre mega-empresários e líderes comunitários, entre “pobres” e “ricos”… Não por acaso, o israelense e o carioca andavam dividindo nestes dias o mesmo palco do Antídoto, no centro nervoso de São Paulo, cidade do PCC.

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Editor de FAROFAFÁ, jornalista e crítico musical desde 1995, autor de "Tropicalismo - Decadência Bonita do Samba" (Boitempo, 2000) e "Como Dois e Dois São Cinco - Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa)" (Boitempo, 2004)

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