dois textos recentes proseavam, no espírito do tempo, sobre esse tema tão prosaico, tão espinhoso, tão gostoso…

um deles, da “carta capital” 419, de 15 de novembro de 2006, proseava sobre um livro de um colega jornalista cuja prosa se debruça sobre os hábitos sexuais brasileiros ao longo do século da canção, tomando como antena, pretexto e material de pesquisa ela, a canção brasileira.

o outro, da “carta capital” 414, de 11 de outubro de 2006, proseava sobre a versão pós-tudo do clássico grego “lisístrata”, proseada-e-versada pelo rapper paulistano ferréz. greve de sexo era o mote de aristófanes, e continuou sendo o de ferréz, o da diretora teatral débora dubois, o da equipe que reinventou “lisístrata” para 2006.

música, teatro, literatura, poesia, rap, periferia, política, comportamento, sociedade, sexo (quanto tudo se mistura)… vamos conversar um pouquinho (sobre tudo isso &) sobre sexo?

POR DEBAIXO DOS PANOS
Um livro utiliza letras de canções para investigar a sexualidade brasileira

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

A canção popular teria alguma utilidade além de fazer cantar, dançar e divertir? Uma vertente ainda incipiente de estudiosos quer responder que sim, motivada pela idéia de que elementos corriqueiros do dia-a-dia, como letras de canções, podem ser aliados valiosos para a compreensão do desenvolvimento das mentalidades humanas e, portanto, de sua própria história. O exame do modo como o amor e o sexo costumam aparecer em letras de música, por exemplo, poderia ajudar a decifrar como viveram e por onde caminharam homens e mulheres durante mais de um século de música gravada no Brasil.

O teste foi levado adiante pelo jornalista e pesquisador carioca Rodrigo Faour no recém-lançado História Sexual da MPB – A Evolução do Amor e do Sexo na Canção Brasileira (Record, 576 págs., R$ 64), que passeia pelos hábitos sexuais e amorosos dos brasileiros num arco que abrange da pioneira maestrina e compositora carioca Chiquinha Gonzaga (1847-1935) à anárquica funkeira carioca contemporânea Tati Quebra Barraco.

Uma das descobertas centrais do autor é a de que, até os anos 1960, a música brasileira foi quase sempre governada por um imaginário que fundiu e confundiu amplamente amor com sofrimento e proibição. A repressão sexual seria o outro lado da moeda tirânica do amor interditado, mas de dentro dessa dicotomia o autor retira uma outra hipótese, que pode surpreender ouvidos mais desavisados: contrariando impressões de que movimentos como a axé music e o funk carioca escancararam a sexualidade de modo inédito nas canções, Faour sustenta e demonstra que a pornografia e o desejo de liberação sexual são vetores mais ou menos constantes na música nacional, desde os tempos de, por exemplo… Chiquinha Gonzaga.

Segundo rememora o livro, foi ela quem compôs e lançou, em 1895, o maxixe Corta-Jaca, de versos como sou gostosa/ que dá gosto de talhar/ sou a jaca saborosa/ que amorosa faca está a reclamar/ para a cortar/ ai, que bom cortar a jaca/ sim, meu bem, ataca!/ assim, assim. A interpretação de Faour é de que o termo “jaca” fosse uma metáfora para se referir à vagina da narradora; e encontra apoio na indignação que a canção causou ao ser reinterpretada, em 1914, no Palácio do Catete, pela primeira-dama Nair de Teffé, esposa do presidente Hermes da Fonseca.

Embora ela o tenha tocado apenas ao violão, sem os vocais, aquela apresentação para uma platéia de elite foi o suficiente para que o senador Rui Barbosa proferisse na tribuna um discurso escandalizado: “É a mais baixa, a mais chula, a mais grosseira de todas as danças selvagens, irmã gêmea do batuque, do cateretê e do samba! Mas, nas recepções presidenciais, o Corta-Jaca é executado com todas as honras da música de Wagner, e não se quer que a consciência deste país se revolte!”.

“A hipocrisia do brasileiro é intensa, mas sacanagem a gente sempre teve. Esse é um dos mitos que tento tirar. É engraçado ver os discursos indignados de cada época, eles são sempre muito parecidos”, resume Faour. A reação moralista de Rui, portanto, guardaria parentesco distante com, por exemplo, a reprovação expressa nos anos 2000 contra versos como 69, frango assado, de ladinho a gente gosta/ se tu não tá agüentando/ pára um pouquinho/ tá ardendo, assopra ou Dako é bom, Dako é bom/ calma, minha gente, é só a marca do fogão, da periférica Tati Quebra Barraco. Tal discussão não raro envereda pelo campo estético, com críticos diversificados deplorando a qualidade musical de forró, axé ou funk, mas deixando em segundo plano a reflexão sobre o que as letras querem traduzir.

Embora acredite que há uma minoria constante de compositores dispostos a distender os costumes de cada época, Faour sabe que a história da vida privada brasileira passou por profundas transformações no decorrer do século XX. O culto ao amor romântico persiste, mas, notadamente a partir dos anos 70, se distanciou bastante de características típicas da dita “era de ouro” da canção brasileira.

“Confesso que fiquei um pouco chocado ao estudar os sambas dos anos 30, 40 e 50. É inacreditável o quanto a mulher é maltratada neles. A música brasileira era masculina, feita por homens, quando não havia ainda a revolução sexual nem o politicamente correto”, diz Faour, que dedica a primeira parte do livro a esmiuçar as canções de amor interditado produzidas na primeira metade do século passado, e suas variadas conseqüências.

O percurso do cultivo masoquista ao amor sofrido encontra ápices em sambas como os de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito (tire o seu sorriso do caminho/ que eu quero passar com a minha dor) e em fossas como as de Antonio Maria (se eu morresse amanhã de manhã/ não faria falta a ninguém) e Dolores Duran (ai, a solidão vai acabar comigo). Mas isso era só o começo.

Lupicinio Rodrigues se especializava em tratar o amor interrompido como nutriente para rancores e ressentimentos (mas enquanto houver força em meu peito/ eu não quero mais nada/ só vingança, vingança, vingança aos santos clamar/ você há de rolar como as pedras/ que rolam na estrada/ sem ter nunca um cantinho teu/ pra poder descansar), e ali a misoginia encontrava terreno fértil para prosperar. Assim advogavam Custódio Mesquita e Joracy Camargo, compondo para a voz desbravadora de Carmen Miranda: Quem é que faz o teu bifinho com batatas/ e estraga tanto as lindas mãos lá na cozinha?/ e no entretanto é só você que não me liga/ e ainda descobre sempre em mim cada defeito.

Indo para extremos trágicos, a apologia à violência era constante (e causava indignação bem menor que as letras de conteúdo sexual de outrora, ou mesmo de hoje). Alvarenga e Benedito Larcerda eram explícitos em Lá Vem Ela Chorando: lá vem ela chorando/ o que é que ela quer?/ pancada não é, já dei!. De tais abusos não escaparam nem mesmo os mais sofisticados compositores brasileiros, como Noel Rosa (mas que mulher indigesta/ merece um tijolo na testa) e Ary Barroso (essa mulher há muito tempo me provoca/ dá nela, dá nela/ é perigosa, fala mais que pata choca/ dá nela, dá nela).

Para o autor da História Sexual da MPB, o machismo até então inerente em nosso cancioneiro só deu primeiros sinais de abrandar com o advento da geração universitária dos anos 60, que teria em Chico Buarque um líder no esforço de lançar olhares mais generosos sobre o feminino por intermédio das canções. Ao longo dos anos 70, Milton Nascimento, Ivan Lins e Vitor Martins, João Bosco e Aldir Blanc, Gonzaguinha e outros seguiriam essas pegadas pré-feministas.

Artistas românticos como Roberto e Erasmo Carlos seguiam privilegiando o amor culpado e atormentado, e sambistas modernos como Martinho da Vila ainda cometiam arroubos machistas (já fiz seu retrato/ apesar do estudo, você não passa de uma mulher). Mas a contraditória década de 70, ditadura e tortura à parte, testemunhava uma revolução de costumes hesitante e temerosa, mas intensa e duradoura. Aos poucos, subiam de status e ganhavam visibilidade as canções de sensualidade e erotismo, bem como de duplo sentido e pornografia, todas revisadas exaustivamente por Faour.

Foi em meados dos 70 que compositoras como Joyce e Rita Lee, respectivamente na bossa e no rock, passaram a falar do feminino, e no feminino. Surpresa à parte contida no livro é a importância que ele atribui a Vanusa no campo da emancipação feminina, em temas popularíssimos como Rotina (minha amiga, o tempo passa/ não espera por ninguém… vê se fala, vê se grita/ vê se assume a sua vida) e Mudanças (hoje eu vou mudar/ vasculhar minhas gavetas… parar de dizer ‘não tenho tempo pra vida’/ que grita dentro de mim, me libertar). Em 1982, com S.O.S. Mulher, Vanusa ensaiava enfim uma resposta à violência armazenada em décadas e décadas de canção masculina: A mão que te acaricia/ é a mesma que esbofeteia/ (…) o teu silêncio é cúmplice da violência/ acorda pra vida e pede socorro.

A canção dita “cafona” dos anos 70 avançava velozmente pelo terreno do comportamento social e sexual, por intermédio de artistas como Raul Seixas, Vanusa, Odair José, Wando, Sidney Magal etc. Em geral eram solenemente ignorados e hostilizados pelas elites da época, mas sofriam vigilância e censura constantes por parte do regime, como o pesquisador Paulo César de Araújo documentou fartamente no livro Eu Não Sou Cachorro, Não (Record, 2002).

Conforme a mulher se emancipava, surgiam até homens tentando fazer algo equivalente, como analisa Faour: “É difícil para o homem ser mais delicado, colocar os sentimentos à flor da pele. Ney Matogrosso foi o primeiro a colocar a sexualidade masculina na música. Antes, quando faziam isso, iam sempre para a grosseria”.

A flexibilização dos costumes a partir dos anos 70 jogava holofotes sobre a androginia e a homossexualidade; também historicamente maltratadas nas letras das canções, essas testavam primeiras manifestações mais positivas, e ainda largamente tímidas e medrosas, que o autor investiga no bloco Os Gays na MPB.

Na persistente polarização com o amor interditado, as vertentes interessadas no sexo livre foram paulatinamente ganhando mais peso, em movimentos como o rock dos anos 80, a axé dos 90 e o funk dos 2000. Mas, segundo um balanço final do autor, o panorama ainda não chega a ser dos mais promissores. “Vai ver as letras de Los Hermanos, por exemplo. É só apologia ao sofrimento. Não são machistas, mas ainda fazem do sofrimento amoroso um dramalhão. Ficar reproduzindo esses estereótipos até hoje é um pouco demais”, avalia.

Para criticar esses hábitos, ele recorre ao trabalho da psicanalista e sexóloga Regina Navarro Lins, inspiradora do trabalho e autora do prefácio, e que aparece no livro afirmando que “não é Marlboro, Coca-Cola ou IBM. A propaganda mais poderosa do mundo é a do amor romântico, que está entre nós há 800 anos”.

Diz Regina, em entrevista a CartaCapital: “Esse tipo de estudo é importante, porque, através das letras, se pode entender como as mentalidades vão mudando ao longo do tempo. No passado, quando Lupicinio Rodrigues falava de vingança na separação, era só ódio e ressentimento. Quando Gilberto Gil canta Drão (de 1982), fala da separação de outro modo, mais suave e generoso. Felizmente hoje começa a sair de cena o amor romântico, que eu chamo de projeto-cilada, porque só envolve cobrança, projeção, sofrimento. Começa a entrar em cena um amor mais fundado na amizade, no companheirismo, na manutenção de um espaço próprio para além do outro”.

Faour tenta enfim resumir as pretensões de seu livro, apoiado no estudo das mentalidades: “Quero alfinetar um pouquinho as pessoas. Quero que reflitam um pouco mais sobre o que escutam, que sejam mais críticas e conscientes, até para que os artistas de hoje em dia possam ser um pouco mais transgressores. Por que o machismo ainda é tão forte nas letras, por que nossos artistas gays não saem do armário até hoje? Acho inadmissível em 2006 ainda termos músicas machistas ou de amor romântico”.

Mesmo pessimista até certo ponto, Faour encerra o livro se referindo a transgressores que estão em atividade no presente, como é o caso recente da experiência “neo-hippie” dos Tribalistas Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown e Marisa Monte (eu sou de ninguém/ eu sou de todo mundo e todo mundo é meu também), e como acontece também na forte inversão de princípios e valores que os funkeiros enviam dos morros cariocas.

É dali que chega Tati Quebra Barraco, produzindo o avesso da misoginia dos sambas e boleros chorosos do começo do século passado e decretando, com tom agressivo, que tô podendo pagar motel pros homem/ e isso é que é mais importante. Trata-se de letra de canção, vinda da periferia marginalizada, mas deve dizer alguma coisa a mais sobre os cidadãos e cidadãs brasileiros que romperam a barreira do século XXI.

GREVE DE SEXO NA PERIFERIA
A Lisístrata de Aristófanes viaja da Grécia Antiga à atual guerra civil brasileira

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

A idéia inicial, inusitada, era tomar o clássico grego Lisístrata, escrito em 411 a.C., e criar a partir dele uma peça teatral para jovens. Mas o que teria a ver com a juventude dos anos 2000 aquele enredo em que mulheres de Atenas e de Esparta decretam greve de sexo contra seus próprios maridos, com o objetivo de forçar o encerramento da Guerra do Peloponeso?

Nem os autores da idéia, os jovens produtores independentes Rennata Airoldi, Charles Geraldi e Paulo Almeida, do Grupo Já, saberiam responder com exatidão a esse primeiro dilema. Chamaram, para dirigir a peça, a encenadora Débora Dubois, uma especialista em montagens teatrais para jovens. Diretora das populares Pirata na Linha e Motorboy e atualmente em cartaz no Teatro do Sesi com uma adaptação “jovem” de O Retrato de Dorian Gray, ela primeiro hesitou, invadida por ondas de antipatia pelo tema e por não achar “a menor graça” na comédia de Aristófanes.

Em seguida, pensou encontrar uma alternativa: faria sentido falar daquilo se a releitura transportasse o tempo-espaço da Grécia ancestral para o da guerra civil travada cotidianamente em qualquer periferia, em qualquer favela brasileira. Artista e cidadã de classe média, Débora propôs convidar o escritor e rapper Ferréz, do Capão Redondo, para reescrever o texto, e então tudo se transformou.

Sob o punho e as convicções ideológicas de Ferréz, Lisístrata ganhou o subtítulo de Sexo, Drogas e Greve. A protagonista, uma suburbana bem brasileira chamada pelas companheiras de “Lísis”, passou a defender a aliança das mulheres dos morros do Maluf e do Lalau numa greve de sexo contra seus maridos e amantes empenhados em defender, como soldados rasos do tráfico de drogas e de armas, uma guerra econômica muito mais rica e próspera do que eles. É com essa roupagem que a peça entra em cartaz na sexta 6, no Teatro Fábrica, uma antiga fábrica de automóveis convertida em teatro, em frente ao cemitério da Consolação, no centro de São Paulo.

Nem autor nem diretora nem equipe sabem decifrar se estão produzindo algo direcionado a adolescentes ou a adultos, a platéias centrais ou a espectadores que venham da periferia, a amantes do teatro grego ou do hip-hop. Mas, desde os levantes do PCC, a realidade não pára de ofertar motivações inesperadas para concretizar as intuições antes imaturas dos realizadores.

No início de setembro passado, a prefeitura de Pereira, uma das cidades mais violentas da Colômbia, criou um fato político ao acertar, numa reunião com cerca de 25 companheiras de membros de gangues e grupos armados, que elas adeririam a uma versão século XXI da “guerra” de gregas contra gregos de Aristófanes. “Se nossos maridos gostam tanto de sexo, vamos deixá-los sem sexo até que se sentem para falar de convivência”, afirmou Omaira, esposa de um pistoleiro, a Lísistrata desse caso real e contemporâneo.

Na versão de Ferréz, Lisístrata vai mais além, e discursa pelo posicionamento das mulheres frente ao estado vigente, este em que “ficamos vendo novela, e essa matança todo dia, tiro pra todo lado, quem morre é os nossos parentes”. Sua cruzada, nesta guerra de facções entre iguais, é para “parar de ver uma felicidade falsa e começar a de fato viver, sem os nossos barracos serem invadidos pela polícia a todo momento, sem nossos filhos serem chamados de lixo, de macacos; temos que aprender que toda essa vida que jogaram nas costas da gente de fato não é a nossa vida”.

A “convivência” mencionada por Omaira toma conta da tentativa de união de mundos distintos de Débora e Ferréz, que antes dessa aliança nem se conheciam. A partir da provocação lançada por Ferréz, de que não seria possível localizar Lisístrata na periferia brasileira sem incluir personagens negros, foram convocados os atores Dárcio de Oliveira, Joice Jane Teixeira (autora de um dos raps da trilha sonora) e Pedro Paulley (que também atua na novela Cristal, do SBT).

Foi por conta do encontro que Débora se viu lidando com hip-hop e colocando as Mulheres de Atenas de Chico Buarque para conviver, na trilha sonora, com Racionais MC’s e funk carioca. Ferréz, por sua vez, se pegou advogando a favor do feminismo e contra a violência doméstica. A esse respeito, incluiu no texto outro episódio recente e real, protagonizado por moradoras do bairro de Casa Amarela, em Recife (PE). Inspiradas numa experiência uruguaia, elas adotaram o uso de apitos para alertar umas às outras quando estivessem sendo agredidas, sem ter de entrar em confronto direto com o agressor.

Na peça, as mulheres sublevadas escondem as drogas da comunidade numa igreja evangélica e andam munidas de apitos e de armas. Pistolas de brinquedo, em estilo desenho animado, foram a alternativa que Débora encontrou para representar o poderio masculino, que nas montagens de Aristófanes costuma ser representado por pênis gigantescos.

Sobre o convívio dos habitantes dos morros do Lalau e do Maluf com a igreja evangélica, Débora ensina, após ter sido ensinada por Ferréz: “No morro, você tem duas opções. Ou é amigo do tráfico, ou da igreja, senão você fica sozinho. Se precisa de um remédio, é um ou o outro que vai dar”. No sentido inverso, ele aprende com ela primeiros rudimentos sobre o que é teatro.

O aprendizado mútuo vem dotado também de boa dose de conflito. Foi o que aconteceu quando Débora entendeu que o texto tendia a generalizar e atacar em bloco as elites e as classes médias. “Ele coloca os políticos misturados com a gente, como se fôssemos as mesmas pessoas, e isso eu não quis deixar”, diz. O autor discordou, mas lhe deu autonomia para fazer o que quisesse. Ela excluiu algumas das referências incômodas.

Ferréz faz o contraponto: “No meu ver, ‘generalizar’ é uma palavra estranha. Há uma pequena, mas tão pequena elite que se importa, mas também não faz nada para mudar. Dizer todo mundo diz, mas conversa não enche geladeira. Para mim, o caos social ainda está só começando. Vejo isso claramente, é tanta opressão, desemprego, falta de perspectiva, onde se acha que isso vai chegar? Temos uma elite cega, corrupta, assassina, que faz tudo para se manter assim. Então, para mim é isso, pau, pau, pedra, pedra”.

Se resiste, Débora também faz esforço para pacificar conflitos. Conta que tentou eliminar a personagem que vai à comunidade para tentar fundar uma ONG, a seu ver deslocada do contexto. Ferréz bateu pé, e conseguiu demonstrar a ela como por vezes a periferia se sente espoliada pelo que entende por estratégias dissimuladas para lucrar à sua custa. A fala da ongueira, ao ser rechaçada (“então vou abrir uma igreja”), foi acréscimo da diretora, e fez o autor sorrir.

Assim segue a negociação entre Débora, mulher de classe média, e Ferréz, homem de periferia. Acordos nem sempre são obtidos. A Guerra do Peloponeso não acabou por causa da peça de Aristófanes, o final de Lisístrata não é feliz, nem a violência acabou na Colômbia de 2006. No Brasil de 1968, o discurso do deputado oposicionista Márcio Moreira Alves, que incluía entre outros lances a insinuação de que as esposas dos militares entrassem em greve de sexo contra eles, culminou na decretação do Ato Institucional nº 5.

Os ventos de hoje, no entanto, parecem soprar para o lado contrário, como insinua o fato de o termo “coexistência” ser palavra de ordem em inúmeras bocas (é o tema, por exemplo, da 27ª Bienal Internacional de São Paulo, que começa no sábado 7). Ferréz e Débora parecem saber disso, intuitivamente. “Em alguns pontos, o pensamento dela também se torna revolucionário. A coisa é feita de forma a incomodar. O texto e a peça dão sorrisos e tentam tomar algo também”, diz ele. “Talvez eu trate essa peça como um embrião, uma obra inacabada, dele e minha. Nossa”, afirma ela.

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