Há 50 anos, era lançado Lugar Público, o livro de estreia de José Agrippino de Paula.
Ele foi o guru do tropicalismo, foi a força que agrupou os principais nomes da Tropicália.
No meu livro de fotografias com recheio de crônicas, O Bisbilhoteiro das Galáxias, creio que a ausência que mais me dói é a de Agrippino. Lembro que foi o momento em que tive mais vontade de fazer uma foto de um entrevistado, aquele momento em que visitei Agrippino em sua casa no Embu, em 2003.
Ele tinha ganhado uma câmera Super-8 de um grupo de psicanalistas que queria estimulá-lo para que voltasse a filmar. Eu ajudei a escoltar a câmera da feirinha da Praça Benedito Calixto até a casa dele no Embu das Artes.

Agrippino vivia em algum outro mundo paralelo ao nosso. “Fica ali, sentado na varanda, coçando a barba. Às vezes, nem a luz acende. Sempre com essas roupas esfarrapadas, sempre na paz, é um sossego danado. Eu sempre desconfiei que ele fosse um cara bom, pelo tipo de vida que ele leva”, me disse um dos seus vizinhos. 

Eu cheguei e não tinha ninguém em casa. Fiquei esperando um tempo e logo subiu a rua um sujeito barbudo, arredio e de passadas lentas. Parecia vestir uma roupa indiana que, esfarrapada e mal rearticulada, parecia uma fralda. Entrou em casa e fechou o portão na minha cara. Eu me identifiquei e ele me deixou entrar com uma voz doce.

Para falar comigo, Agrippino ficou em pé na varanda, no lado de trás da casa, e me apontou um pedaço de mato lá no alto do morro.
“Você veja que nós estamos aqui no Embu, é periferia, mas ali naquela descida de morro você vê uma vegetação que parece do tempo do descobrimento do Brasil. Lá em cima, você vê? Ali tem uma estrada. Onde é que ela vai dar? Estou interessado nessa história do ponto de vista da paisagem”, ele me disse. Estava descrevendo o ponto de partida do filme que faria com a câmera Super-8 que acabara de ganhar.

Fiquei olhando para aquela barba grisalha e o olhar compreensivo e suavemente alienado do homem à minha frente, e tive vontade de guardar aquele momento. Não era um momento que diria respeito à entrevista, não tinha vontade de descrever aquilo, apenas de guardar para minha própria estima.

Foi uma foto que eu não fiz. Não tinha máquina comigo, não tinha pensado nisso.
Eu o ouvia falando e era como se ouvisse versos de Whitman. “Quando abarcarmos esses mundos e o conhecimento e o prazer que encerram, estaremos finalmente fartos e satisfeitos?/ E minha alma disse: Não, uma vez alcançados esses mundos prosseguiremos no caminho”.
Era um homem de notável entendimento da humanidade que tinha abdicado (involuntariamente?) da razão para viver em outro tipo de realidade. Não conseguia vê-lo como um enfermo, mas como alguém que se refugiava de um pesadelo.

Escrevi muito sobre a literatura de Agrippino, cujo maior livro é Panamerica, e também dei depoimento para um documentário sobre ele.
Participei de palestra sobre Agrippino no Centro Cultural São Paulo, ao lado do Aguilar.
Escrevi sobre a música de Agrippino, que o Selo Sesc recuperou na casa Hermano Penna e lançou em disco com o título Exu 7 Encruzilhadas. “Não ouça música, bicho. Crie seu barulho”, ele escreveu, antecipando o Do it Yourself do punk rock.
Ele pouco saía de casa e interessava-se menos ainda pelo que acontecia mundo afora. Mantinha poucos hábitos de seu passado, como o de comer arroz vegetariano todo dia. Era esquizofrênico, a mãe e o irmão o tutelavam.
Sua literatura é uma das mais originais com a qual já me defrontei.

Meu amigo Sérgio Pinto de Almeida tem uma pilha de originais inéditos do Agrippino.
Não fotografei Agrippino, mas o Paulinho Liebert o fez magnificamente.
Aqui está a prova.

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Jotabê Medeiros, paraibano de Sumé, é repórter de jornalismo cultural desde 1986 e escritor, autor de Belchior - Apenas um Rapaz Latino-Americano (Todavia, 2017), Raul Seixas - Não diga que a canção está perdida (Todavia, 2019) e Roberto Carlos - Por isso essa voz tamanha (Todavia, 2021)

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