Eduardo Coutinho foi morto a facadas neste domingo (2) em sua casa, na Lagoa, zona sul do Rio. Republicamos esse texto do fim de 2011 sobre uma das obras do cineasta e um dos melhores documentários já produzido sobre a música brasileira
“As Canções”, o mais novo documentário de Eduardo Coutinho, estreou na sexta passada em alguns poucos cinemas de algumas poucas cidades e, provavelmente, não fará a boa e surpreendente bilheteria que Edifício Master teve lá em 2002. Não merecia. Só o anúncio que foi colocado para convocar pessoas no Rio de Janeiro para participar do filme (“Alguma música já marcou sua vida? Cante e conte sua história”) já seria uma deixa para se prever que Coutinho levaria o espectador para o terreno dos sentimentos mais populares: amor, perda, traição, saudade, alegria. E isso dá samba, sabemos bem. Ou samba canção. Ocasionalmente bolero. É identificação imediata e não importa idade ou gosto musical (e olha que a faixa etária d’as canções do documentário é alta). Enfim, sucesso. Mas isso não acontecerá com “As Canções” e sua muita tímida distribuição.
Ao total, 237 pessoas foram entrevistadas pela sempre afiada equipe de Coutinho, 42 foram gravadas e 18 entraram na edição final. O formato do filme é o mesmo de Jogo de Cena (2007) – uma cadeira, um palco, um entrevistado por ver rasgando o peito -, o que acaba lhe conferindo um ar de déjà vu. Mas isso é o de menos, originalidade hoje em dia está nos detalhes ou na construção de algo. O que importa em As Canções são as histórias e suas relações íntimas com a música popular brasileira. Coisa de pele mesmo.
Como a de um músico (tô em dúvida agora sobre a profissão do cara), talvez a mais surpreendente dessa leva. Ele conta sobre seu primeiro casamento que o levou a tocar na Igreja Batista, e da súbita interrupção do mesmo com a morte de sua mulher. Depois a depressão, um novo amor, o segundo casamento, a saída da igreja. Mas acaba lembrando de uma música (“Esmeralda”, bolerão de 1960 cantado por Carlos José) que associa a sua mãe costurando em casa. E começa a chorar copiosamente. Mas sua mãe está bem, viva, 85 anos, não tem nada de errado e ele fica desconcertado sem saber por que chorou desse jeito, com essa música.
Muitas outras histórias aparecem. Doloridas, divertidas, ricas, mas a maioria girando em torno de amores perdidos, por desencontros ou separações. É aí que as músicas de Roberto Carlos (e Erasmo) entram de sola nos corações de alguns entrevistados (“Não se Esqueça de Mim” e “Olha”) e de milhões de brasileiros. Coutinho chegou a afirmar em entrevista recente que o filme todo poderia ter sido feito apenas com Roberto e Erasmo, mas que as negociações de direitos seriam muito problemáticas.
De qualquer forma, entram ainda nesse microcosmo sentimental canções como “Minha Namorada” (Carlos Lyra e Vinícius de Moraes), “Retrato em Branco e Preto” (Tom Jobim e Chico Buarque), “Último Desejo” (Noel Rosa) e as clássicas versões em português das latinas “Fascinação” e “Perfídia”. A música mais nova presente no filme é “Que Nega é Essa?” (Jorge Ben), já que “Pais e Filhos” (Legião Urbana), segundo o próprio realizador, acabou ficando no chão da sala de edição.
E assim, em suas falas e histórias, os personagens vão deixando claro que o romantismo é a faceta mais importante, mais próxima, de sua relação com o cancioneiro popular brasileiro. Músicas servem para lembrar, celebrar ou curar o amor, são terapêuticas em sua essência, e é isso que marca a vida das pessoas (a maioria das histórias do filme são entre mulher X homem, mas também entraram casos de filho X pai e filho X mãe).
Ainda haverá o momento que conseguiremos entender direitinho porque povo tão festivo curte mesmo uma fossa. As Canções, de Eduardo Coutinho, dá uma pista: a música popular é o divã do povão.
Epílogo-diálogo
No sábado a tarde, um dia após a estréia, o colega James Cimino me chamou no facebook perguntando se eu gostava de Coutinho (respondi que sim, claro), porque ele não gostava, tinha escrito uma crítica negativa ao filme e queria saber minha opinião, queria entender porque as pessoas gostavam do cineasta. Então li seu texto, voltei ao bate-papo e, brincando, disse que como ele já tinha me adiantado que não gostava do Coutinho discordei de tudo que ele tinha escrito. Ali, na hora, começamos a discutir o processo dele, as escolhas, mas só depois de assistir o filme à noite tive a confirmação do que, pra mim, era o erro de sua análise.
“Na maioria dos casos, os entrevistados estão apenas expostos ao escárnio público, quando não à piedade coletiva”, diz Cimino sobre os personagens que vão cantando, abrindo e fechando suas feridas publicamente. E isso eu não consigo entender porque vejo aquelas pessoas com muito orgulho de ter essas histórias e de poder contá-las (ou teatralizá-las). Sentir-se constrangido com essa exposição é problema unicamente do espectador.
Tenho certeza que se o estrevistado tivesse se arrependido ou tivesse “apelado”, Coutinho seria o primeiro a cortá-lo (tanto para preservar o filme quanto o personagem, afinal sendo jornalista como Cimino, eu e os camaradas do FAROFAFÁ, ele sabe que ‘respeito’ e ‘confiança’ são fundamentais na relação ideal entre entrevistado e entrevistador).
Cimino fala ainda que “ao encadear essas histórias desconexas umas das outras, não apresenta reflexão nenhuma, como se espera de um documentário”. E aí está outro erro. As histórias não são nada desconexas, pois na costura de todos os depoimentos está a ligação íntima entre sentimentos pessoais e sua manifestação musical (o bom e velho “essa música foi feita pra mim”). No mais, um documentário, como qualquer outro filme, não é obrigado a apresentar reflexões, ou o que quer que seja, como “se espera”. As histórias podem ser bem ou mal contadas, e o resto é com a gente.
Pra mim é impossível imaginar Coutinho explorando a miséria humana, como Cimino afirma numa comparação de As Canções com realities shows que apelam para o choro fácil. Em todos os seus filmes que vi – de Cabra Marcado Para Morrer a Moscou, passando por Santo Forte, Babilônia 2000, Edifício Master, Peões, O Fio da Memória e Jogo de Cena –, a emoção é sempre intensa, mas o choro é raro e quando vem é à reboque de uma identificação com a história de uma ou outra pessoa (e não por meio de artifícios).
Coutinho é um antisentimental por natureza, oras bolas, mas seus entrevistados não, e é desse “confronto” que surgem alguns dos melhores momentos de seus filmes. Porque Coutinho não julga e gosta de ouvir, o que faz com que seus entrevistados se sintam livres e confiantes para rasgar o coração diante das câmeras.
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