‘A Médica’: o palco da polarização

0
47
A atriz Clara Carvalho, em primeiro plano, em cena da peça "A Médica", em cartaz no Masp.
Clara Carvalho em "A Médica" - Foto: Ronaldo Gutierrez/ Divulgação

Em um palco que pulsa a cada cena, a peça A Médica, do dramaturgo britânico Robert Icke, é um espelho impiedoso das tensões que moldam a sociedade contemporânea. Protagonizado pela notável Clara Carvalho, o espetáculo, uma releitura da clássica Professor Bernhardi, de Arthur Schnitzler, não é apenas um drama, mas uma investigação cirúrgica sobre os limites da ética, da identidade e da (des)conexão humana na era das redes sociais.

Clara Carvalho, cujo histórico com o Círculo de Atores passa pela profundidade de textos como A Profissão da Sra. Warren, O Dilema do Médico (que ela também dirigiu em sua primeira investida na direção) e Hedda Gabler (sob sua direção, explorando a psique de personagens complexas), entrega em A Médica uma performance igualmente robusta. Sua personagem, a médica Ruth Wolff, diretora de um instituto de pesquisa do Alzheimer, é uma força inquestionável, mas que se vê forçada a um deslocamento ético particular por sua visão de mundo.

É conveniente já conhecer a trama: a doutora Wolff proíbe a entrada de um padre católico no quarto de uma adolescente à beira da morte após um aborto mal realizado. A médica toma essa decisão de forma racional: a presença do religioso poderia agravar o quadro clínico da jovem. Mas essa decisão profissional se transforma rapidamente em um escândalo público. O embate entre duas autoridades que lidam com a vida e a morte é postado na internet e desencadeia uma onda de perseguição e desinformação que desestrutura a vida da médica. O direito à prática da medicina é questionado, a reputação é destruída.

A peça mergulha numa “discussão de ouvidos moucos” que se tornou tão familiar nas redes sociais, onde a “surdez social” fala mais alto. A doutora é enredada em uma teia de acusações: protetora de mulheres, antissemita, ateia, abortista, racista, lésbica. Nesse tipo de encruzilhada contemporânea, onde o julgamento público é sumário e impiedoso, a sobrevivência é quase uma quimera. A médica não é uma heroína, e não há espaço para o heroísmo tradicional. A pergunta que ecoa na plateia é inevitável: alguém sobreviveria a tamanho linchamento?

Clara Carvalho, com Adriana Lessa e César Mello – Foto: Ronaldo Gutierrez/ Divulgação

É essa humanidade multifacetada, por vezes incômoda, que subverte uma escalada incontrolável de violências em um dilema moral(ista). A ironia se torna ainda mais surreal quando a especialista em Alzheimer perde sua própria namorada para a doença que era sua área de notório conhecimento. É um toque irônico que sublinha a fragilidade humana diante do incontrolável, reverberando a máxima de que a medicina lida com a vida, mas jamais derrota a morte, enquanto a arte, talvez, tenha a chance da imortalidade, como em O Dilema do Médico.

A força do elenco se estende para além da protagonista, com a presença de nomes como Adriana Lessa, Anderson Muller, Chris Couto, Kiko Marques e Sergio Mastropasqua, fundador do Círculo de Atores. A encenação de Nelson Baskerville se vale de mudanças constantes na cenografia, assinada por Marisa Bentivegna, por meio de paredes envidraçadas móveis que recriam, com fluidez, os ambientes do hospital e da casa da protagonista. Essa plasticidade cênica intensifica a sensação de vigilância e a invasão do público no privado. Há uma tensão palpável no ar, diálogos mordazes e situações que parecem extraídas diretamente do universo do cancelamento digital, onde “ninguém resiste a 15 minutos de exposição”. Os elementos técnicos, como a iluminação de Wagner Freire e a trilha sonora original de Gregory Slivar executada ao vivo, enriquecem a experiência teatral.

A montagem de A Médica pode ser vista como um estudo sobre como as pessoas lidam com a diferença e o dissenso. É um convite incômodo, mas necessário, a adentrarmos o palco da polarização e refletirmos sobre a complexidade da condição humana quando exposta ao escrutínio impiedoso da pós-verdade.

A Médica. De Robert Icke. No Masp Auditório, às sextas-feiras e aos sábados (20 horas); e domingos (18). Até 24 de agosto. Ingressos a partir de 40 reais (meia).
PUBLICIDADE

DEIXE UMA REPOSTA

Por favor, deixe seu comentário
Por favor, entre seu nome