Ave Sangria voa outra vez em “A Banda Que Não Acabou”

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Mito pernambucano dos anos 1970, a história da banda de rock Ave Sangria reverbera até hoje em circuitos underground e motiva, enfim, o documentário Ave Sangria, a Banda Que Não Acabou, de João Cintra e Mônica Lapa, em última exibição no 17º In-Edit hoje, às 19h30, na área externa da Cinemateca Brasileira. Saborosa, a história é sempre repetida por conta de detalhes folclóricos, mas o filme ajuda a demonstrar que, como de praxe, há uma cordilheira maciça sob o asfalto folclórico.

A parte pitoresca reside no samba de breque “Seu Waldir” (1974), de Ave Sangria, o único álbum deixado pela breve banda na época. Interpretada de homem para homem pelo vocalista e compositor Marco Polo, “Seu Waldir” diz mais ou menos assim: “Seu Waldir, o senhor/ magoou meu coração/ fazer isso comigo, seu Waldir,/ isso não se faz, não/ eu trago dentro do peito um coração apaixonado batendo pelo senhor/ o senhor tem que dar um jeito/ senão eu vou cometer um suicídio, nos dentes de um ofídio vou morrer/ (…) o senhor precisa ser mais decidido e demonstrar que corresponde ao meu amor, pode crer/ se não eu vou chorar muito, seu Waldir/ pensando que vou lhe perder/ seu Waldir, meu amor”.

Ave Sangria foi lançado um ano depois da explosão dos Secos & Molhados, pela mesma gravadora que propulsionou a banda de Ney Matogrosso, a Continental. “Seu Waldir” foi definida como faixa de trabalho, provavelmente na crista da onda glam rock de então, e escalou as paradas de sucesso (não apenas em Pernambuco).

Provocou indignação no radialista pernambucano, causou espécie na sociedade sob ditadura, destilou horror na esposa do general. A ave sangrenta se viu capturada em pleno voo: “Seu Waldir” foi proibida pela censura e o disco, recolhido das lojas e rádios (em alguns exemplares a faixa chegou a ser riscada a golpes prego). Quando relançado, no final de 1974, sem “Seu Waldir”, o timing havia passado. No mesmo período, o conterrâneo Alceu Valença atraiu para sua banda quatro dos seis integrantes da Ave Sangria.

Alceu não costuma tocar no assunto, mas deu sua versão no livro Alceu Valença em Frente e Verso (1989), de Anamelia Maciel: “Nunca tive mais do que duas horas de conversa com Marco Polo e naquela época já tinha gravado meu segundo LP Molhado de Suor (1974) num estilo bem particular. O que aconteceu é que quatro elementos do Ave Sangria foram tocar comigo no Festival Abertura da Rede Globo em 1975”. Seguiram-no os guitarristas Paulo Rafael e Ivson Wanderley (o Ivinho), o baterista Israel Semente e o percussionista Agrício Noya. A parceria não frutificou, e apenas Paulo Rafael seguiu com Alceu, de quem foi diretor musical até morrer, em 2021.

“Ave Sangria” (1974)

Premida pela censura e pelo avanço de Alceu, a Ave Sangria se dissolveu menos de dois anos depois de nascer. Passou a integrar o mito não só como uma das melhores bandas psicodélicas de Pernambuco nos 1970, mas também como uma banda de glam rock, sexualmente ambígua e audaciosamente simbolizada pela figura da ave humana que ornamenta a capa do único LP.

Em 1981, Ney Matogrosso tentou revigorar o mito, mas sua regravação de “Seu Waldir” teve o mesmo destino da versão original: o compacto lançado com “Folia no Matagal” no outro lado foi apreendido e faixa foi excluída do LP Ney Matogrosso de 1981. O amor entre homens, pelo que se vê, causava verdadeiro pavor nos militares de 1964.

E a história real, ao que parece, era outra: Marco Polo compôs “Seu Waldir” para ser cantada por Marília Pêra na peça teatral A Vida Escrachada de Joana Martini e Baby Stompanato (1970). Como a atriz acabou por não lançar a trilha sonora da peça, ele retomou “Seu Waldir” para seu próprio repertório (“pra desafiar o machismo que imperava no Recife naquela época”, segundo afirmou num disco de Gonzaga Leal) e, a seguir, incluiu-o no LP Ave Sangria.

Os remanescentes da banda nunca pareceram totalmente à vontade com essa história, e A Banda Que Não Acabou confirma isso ao tratar o tema com ligeireza – ele aparece na voz de outros personagens, e não pelas dos únicos dois integrantes ainda vivos da Ave Sangria, Marco Polo e o baixista Almir de Oliveira.

Mas esse, lembremos, é apenas o folclore. O filme sobre a Ave Sangria se apoia numa viagem de automóvel pelas estradas pernambucanas, conduzida por Roger de Renor (célebre nos anos 1990 como dono do bar recifense Soparia, que serviu como caldo de cultura para a geração manguebit), durante a qual Marco Polo e Almir revisitam memórias e histórias da Ave Sangria. Como signos de um acontecimento suspenso no tempo, brilham na tela a filmadora Super 8 empunhada por Marco Polo e, sobretudo, a simpática e psicodélica Rural Willys em que viajam Marco, Almir e Roger.

Marco Polo, Roger de Renor, Almir de Oliveira e a Rural Wyllis psicodélica

A trilha sonora do road doc ressalta a potência e a originalidade de rocks setentistas compostos por Marco, Almir e Ivinho: “O Pirata” (“sou bandido, sou sem alma e minto/ minha casa é o reino do mal/ o meu pai é um animal/ minha mãe há muito que enlouqueceu/ só resta eu com a minha faca e a minha nau/ sou pirata, solitário, sem mais nada/ sem bandeira, sem espada, no mar pra viver”), “Dois Navegantes” (“não deixes a vela apagar/ nem o mastro cair/ nem a corda prender/ só deixes o vento que solta teus cabelos/ espelhos dos meus/ te soprar/ e soprar em mim”), “Por Quê?” (“eu sou da cidade/ mas nasci no mar/ tudo que eu quero é cantar/ por enquanto”), “Lá Fora” (“lá fora é esse mormaço”, “e o silêncio costurado na boca de um guarda”), “Hei! Man” (“ela subiu pela colina/ correndo e vestida de amarelo/ corpo suado e maneiro/ ela me viu e não se escondeu/ uma sensação me deu/ não quero nem saber/ rolei com ela pelo chão”), “Geórgia, a Carniceira” (“Geórgia, a carniceira dos pântanos frios/ das noites do deus Satã/ jogando boliche com as cabeças das moças mortas de cio”), “Corpo em Chamas” (“quando eu botar fogo na roupa/ você vai se arrepender do que me fez/ você vai ver meu corpo em chamas pelas ruas”), “Momento na Praça” (inspirado na “Ismália” de Alphonsus de Guimaraens), o rock instrumental “Sob o Sol de Satã“…

Marco Polo expõe a influência exercida no rock da Ave Sangria pelos sambas, cocos e emboladas do paraibano Jackson do Pandeiro (mais um ponto de interseção com a fase roqueira/psicodélica de Alceu Valença), mas também pelas fusões de rock, blues, jazz e música latina operadas pelo guitarrista mexicano Carlos Santana.

Marco e Almir relembram a origem comum dos integrantes da banda, arraigada na Vila dos Comerciários, no bairro Tamarineira, o que explica o primeiro nome da banda, Tamarineira Village – “Tamarineira Village” (1986), o rock-homenagem composto e gravado por outro irmão em psicodelia nordestina, o paraibano Zé Ramalho, não dá as caras no documentário.

Na versão de Marco Polo, três dos integrantes que saíram para se juntar a Alceu Valença (Ivinho, Israel e Agrício) entraram em processo autodestrutivo após o insucesso da empreitada (ele não diz, mas o caso de Paulo Rafael desautoriza a maldição). Marco seguiu no jornalismo e Almir, na engenharia. Em 2014, após 40 anos de separação, a banda se reagrupou para uma série de shows, sem o baterista Israel (que morreu em 1990) e o percussionista Agrício (ainda vivo, mas sofrendo as consequências de um AVC). O aniversário de 40 anos da banda foram coroados com a edição em CD e vinil de Perfumes y Baratchos, gravação precária da última performance ao vivo da Ave Sangria – com cinco faixas até então inéditas em disco, duas delas instrumentais.

Ivinho morreu no início do processo de confecção do que viria a ser o segundo álbum da “banda que não acabou”, o seminal Vendavais (2019), seguido pela regravação visceral de uma das 11 inéditas de Perfumes y Baratchos, “Janeiro em Caruaru”, agora rebatizada “Janeiro” (2020). Na nova formação, Almir assumiu guitarra e violão e músicos de nova geração ocuparam baixo (Juliano Holanda), bateria (Júnior do Jarro) e percussão (Gilu Amaral).

No palco, os sobreviventes Marco Polo e Almir de Oliveira

Na cena mais eloquente de Ave Sangria, a Banda Que Não Acabou, a Rural Wyllis de Rogê para num posto de beira de estrada e a câmera permanece fixa diante dos banheiros masculino e feminino, ambos ilustrados por desenhos de grandes aves humanas. Almir sai do cubículo “ele” e logo em seguida Marco Polo surge de dentro do “ela”. Os diretores demarcam assim que, voluntária ou não, a participação da Ave Sangria na história do rock e da música popular brasileira se deu pela ambidestria sexual e pelo confronto com a repressão, para muito além do folclore.

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