Em março de 2010, quando lançava o álbum Bom Tempo, o niteroiense radicado estadunidense Sergio Mendes (1941-2024) falou por telefone com este repórter a pedido do então editor de cultura Cadão Volpato, do site brasileiro iG, cujo material hoje está infelizmente fora do ar, como muito da produção jornalística para internet daquele e de outros tempos. Segue abaixo o texto de abertura escrito à época e a íntegra da entrevista, em que Sergio Mendes falou abundantemente sobre as diversas etapas de sua caudalosa produção musical, do início como instrumentista de conjuntos de samba-jazz ao encontro com rappers norte-americanos e brasileiros nos anos 2000.
(E leia mais sobre Sergio Mendes aqui.)
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Nascido em Niterói há 69 anos, o músico Sergio Mendes está radicado desde 1964 em Los Angeles, junto à meca cinematográfica de Hollywood. Foi daqueles que seguiram o movimento migratório da bossa nova e jamais fizeram o caminho de volta, ao menos não para voltar a morar no país natal. Por contraste, tem sido nesses 36 anos um dos maiores e mais constantes divulgadores da música brasileira mundo afora.
Em 1966, com o grupo Brasil ’66, transformou em sucesso mundial o “samba esquema novo” “Mas Que Nada”, de Jorge Ben (hoje Jorge Ben Jor), cantado em português com sotaque norte-americano por vozes femininas que se tornariam uma das marcas de sua música. Em 2006, a mesma “Mas Que Nada” voltou a estourar mundialmente em nova versão, cantada e tocada por Sergio Mendes com o grupo de rap norte-americano Black Eyed Peas – você conhece, toca todo sábado no programa da Angélica.
Entre um extremo e outro, converteu Beatles, Dorival Caymmi, Burt Bacharach e Carlinhos Brown ao idioma “sergiomendês”, emplacou sucessos pop nas paradas de diversos países, foi parceiro de Stevie Wonder, construiu seu estúdio próprio em Los Angeles com ajuda de um jovem carpinteiro chamado Harrison Ford.
Por estes dias, lança o novo Bom Tempo (Universal) no mundo e no Brasil, completando uma trilogia iniciada em 2006 com Timeless, coproduzido por will.i.am, líder dos Black Eyed Peas. Garoto-prodígio da bossa nova em 1962, é reverenciado hoje por rappers norte-americanos e brasileiros (como Marcelo D2), por ídolos pop (como Justin Timberlake) e pelo filho do cineasta japonês Akira Kurosawa.
Ironicamente, nunca foi figura das mais famosas ou celebradas no Brasil natal. Nos shows recentes de retomada dos Mutantes, por exemplo, o músico Sérgio Dias se divertia revelando que foi composta inspirada no xará a satírica “Cantor de Mambo” (1972), sobre um rapaz que “encontrou seu sucesso algures, além-mar”, vive na América do Norte e ganha bem “cantando mambo”. Ao final deste bate-papo telefônico entre Los Angeles e São Paulo, Sergio Mendes constatou, algo surpreso: “É a entrevista mais completa que já dei”.
Pedro Alexandre Sanches: Há quantos anos você está fora do Brasil?
Sergio Mendes: Eu vou sempre ao Brasil, todo ano, tenho famílias e amigos aí. Mas saí em 1964.
PAS: Não pensa em voltar a morar aqui? Como é sua relação com isso?
SM: Acho que no meu coração eu moro nos dois lugares, como muita gente hoje que trabalha em Nova York e mora no Rio, trabalha no Rio e mora não sei onde. Eu não penso nessa coisa. Para mim, quando vou aí, fico muito feliz de estar aí, e quando estou aqui, também. Porque viajo na maior parte do tempo, então talvez seja mais prático sair daqui para ir para a Ásia, para a Europa. Mas tenho as duas vivências e convivo normalmente com isso esses anos todos. Passo aí no Brasil um, dois, três meses, depois venho para cá. Mas também não passo o ano inteiro aqui, passo dois, três meses. No resto do tempo estou viajando.
PAS: Há uma unidade em relação aos seus três discos mais recentes, mas neste novo sai um pouco o rap, a ligação com will.i.am, ele parece mais brasileiro. Queira que você falasse um pouco sobre isso.
SM: Acho que você tem razão, é exatamente isso. Tentei fazer esse disco mais voltado ao Brasil, com convidados brasileiros: Carlinhos Brown, Milton Nascimento, Seu Jorge. É isso mesmo. Porque cada disco para mim é uma experiência diferente. Timeless (2006) foi uma experiência, com will, John Legend e todos os outros convidados todos. Encanto (2008) foi uma experiência também de música brasileira, mas com convidados internacionais, como Jovanotti, Juanes. E este agora é todo voltado ao Brasil, com músicas que eu adoro, algumas que já havia gravado, e convidados que admiro e respeito. Mas você tem razão, é um disco voltado para o Brasil, chama-se Bom Tempo (2010) porque a gravação transcorreu maravilhosamente. Acho que o repertório descreve bem a diversidade, a sensualidade, a alegria, os ritmos da música brasileira. Foi isso que procurei reunir nesse disco.
PAS: Quando faz um disco, sejam os anteriores ou esse, você pensa se ele será mais destinado para o público brasileiro ou não? Você fez Bom Tempo pensando em públicos do mundo inteiro, ou do Brasil?
SM: Toda vez que faço um disco não é direcionado para um país. É um disco que espero que se comunique com o Japão, com a Rússia, com a China, com o Brasil, com a Venezuela, com a Argentina… Não existe esse tipo de preocupação quando estou gravando. O inicial é a escolha do repertório, os arranjos e depois a direção do disco – se vou ter convidados daqui, como foi Timeless, ou internacionais, ou se vou fazer como neste agora, 99% de repertório brasileiro, de músicas que já gravei, de compositores como Moacir Santos, que eu nunca havia gravado antes, só no meu primeiro disco, lá atrás. Mas não quer dizer por isso que seja voltado somente ao Brasil. Acho que esse disco tem um potencial internacional, porque são os clássicos brasileiros mostrados em português, como foi “Mas Que Nada” (1963). Quando você ouve “Emoriô” (de João Donato e Gilberto Gil, 1975), “Magalenha” (Carlinhos Brown, 1992) ou “Maracatu Atômico” (Jorge Mautner e Nelson Jacobina, 1974), são clássicos brasileiros em que faço uma reinterpretação, procuro dar um novo tratamento, mostrar a música de uma maneira diferente, e mais contemporânea.
PAS: Você sempre privilegiou o trabalho coletivo, com Brasil ’66, Brasil ‘77, Brasil ’88… É como se nos discos mais recentes o elenco de convidados substituísse esses grupos?
SM: É, você pode até pensar nisso. Tendo uma banda, como é meu caso desde o Brasil, quando eu tinha o Bossa Rio – a formação era piano, baixo, bateria, dois trombonese um saxofone. É sempre um trabalho coletivo, qualquer disco, não dá para fazer sozinho. É como um filme, você tem que ter a história, o cast, a direção. Disco é mais ou menos assim, é um trabalho de grupo mesmo.
PAS: Mas poucos podem ter o luxo de ter um elenco como esses que você tem reunido, de Milton Nascimento aos rappers norte-americanos.
SM: Eu não chamaria luxo, esse é meu 38o disco. Milton é um querido amigo meu de muitos anos, Carlinhos Brown já trabalhou comigo no disco Brasileiro (1992). Então não é uma questão de luxo, mas de eu ter dado sorte de ter conhecido essas pessoas e eles quererem também fazer parte do trabalho que eu faço. O will.i.am me procurou, tinha meus discos, era fã. Foi uma coisa mútua, só existe se houver atração dos dois lados, uma coisa que complete o outro lado. Isso é aquela coisa, a vida é a arte do encontro, né?
PAS: Para você essa máxima vale muito, não?
SM: Ah, muito, muito. São encontros que a gente nem planeja, Milton estava tocando aqui em Los Angeles, nós saímos para jantar, convidei, e ele aceitou. Fiquei muito feliz, foi um acaso. Se Milton não tivesse passado por aqui – é claro que penso sempre nele, já gravei músicas dele -, não teria acontecido. Desde lá de trás, quando juntei o Bossa Rio, com Edson Maciel, Raulzinho [Raul de Souza] e Tião Neto, tudo foi um trabalho de encontro, de ter conhecido essas pessoas maravilhosas, de ter conhecido inclusive Tom Jobim e trabalhado com ele, de ter estudado música com Moacir Santos. Por isso reagi à palavra luxo, porque não é por aí. A vida é a arte do encontro mesmo.
PAS: Claro, porque você faz parte dessa realidade, por merecimento.
SM: Exato, sou um músico brasileiro que adora músicos de todos os lugares do mundo. No outro disco tinha convidados franceses, italianos, e é sempre gente que tem o maior prazer em participar. Era a mesma coisa na época do Brasil ’66, que tinha duas cantoras americanas. O grupo foi mudando, tive várias cantoras.
PAS: No caso dos brasileiros em Bom Tempo, todos gravaram com você em Los Angeles?
SM: Não, não. Carlinhos, sim, ele estava aqui comigo, veio para cá especialmente para fazer isso. Seu Jorge colocou vocal aí em São Paulo, mandei a base para ele. E Milton colocou o vocal em Boston. O resto foi todo feito aqui em Los Angeles. Hoje você tem essa possibilidade, né? Com a tecnologia do pro-tools, você manda a faixa, o arranjo já pronto, e o artista pode colocar voz em qualquer parte do mundo.
PAS: Não sei se é acaso, mas os brasileiros que estão no disco são, como você, artistas de vocação internacional, não?
SM: Tenho grande admiração pelos trabalhos deles. Quando ouvi o primeiro disco de Seu Jorge [Samba Esporte Fino, de 2002], adorei a voz dele. Quando conheci Carlinhos Brown na Bahia, em 1993, ele estava começando a Timbalada. Fui à casa dele, houve todo um envolvimento musical. A partir daí fizemos vários trabalhos juntos, é um querido amigo. Tem sempre uma coisa de relacionamento pessoal, não é simplesmente gravar a música do compositor. Tem muito a ver com isso, como foi o caso de “Mas Que Nada”, que eu já tocava no Beco das Garrafas com Jorge Ben, quando eu ainda não tinha saído do Brasil, em 1963. Vim para cá e em 1966 gravei “Mas Que Nada”, que foi um grande sucesso, e depois de novo em 2006. Você vê, 40 anos de diferença, aí você vê a força da música, da composição. É o mais importante para mim, a melodia, a composição. Agradeço aos compositores, que têm me dado a chance de poder gravar as músicas deles, mostrá-las da minha maneira e ter tido a aceitação que tem tido.
PAS: Isso não é muito dito, mas você é um dos descobridores de Carlinhos Brown, não?
SM: Conheci Carlinhos bem no início da carreira dele, estava começando com a Timbalada. Fui visitá-lo na Bahia, ele tinha feito na época uma música especialmente para o meu disco. Adorei conhecê-lo, é muito inteligente, muito musical e muito rápido. Houve realmente um encontro legal de dois músicos que ambos curtem o trabalho do outro, então foi bem natural. A partir disso fizemos Brasileiro, que você deve saber.
PAS: É praticamente todo com ele.
SM: Tem cinco músicas de Carlinhos, as outras são de vários compositores. Ele é um músico sensacional. É excepcional a musicalidade dele, não só como compositor, mas também como músico. Ele toca percussão, toca tudo, mil ideias. Para mim é uma energia muito positiva trabalhar com Carlinhos. Um dos outros compositores presentes no Brasileiro é Guinga, que também vim a conhecer nessa época, tornou-se um grande amigo e considero um dos grandes compositores da sua geração. É também um músico excepcional.
PAS: Seu primeiro disco foi Dance Moderno (1962)?
SM: É, começou na Philips, na Cinelândia, em dois canais. Ou seja, não tinha negócio de gravar em cima, overdub. Não existia isso. Eu me lembro muito bem desse disco, com Edson Maciel, Bebeto Castilho. Foi meu primeirão mesmo.
PAS: Você era muito jovem, quantos anos?
SM: Ah, não sei, 18, 19 (em 1962, Sergio Mendes tinha 20 anos).
PAS: Esse disco e uma série de outros que fez na sequência não eram cantados.
SM: Eram instrumentais. O disco com o Bossa Rio [Você Ainda Não Ouviu Nada!, de 1964] era uma espécie de grupo instrumental da bossa nova. Era a nossa interpretação da bossa nova, instrumental. O Bossa Rio marcou época porque era um som totalmente novo, diferente das outras coisas que se faziam nessa época. Era mais minimalista., bem apimentado, bem para fora.
PAS: De um modo geral, os discos instrumentais dessa fase da bossa nova acabaram conhecidos como samba-jazz. Você caberia dentro desse rótulo no seu início?
SM: Não sei, porque como artista naturalmente nunca rotulo o que faço. Isso vem de fora. É claro que tinha componentes de jazz no Bossa Rio, se você ouvir os improvisos. Mas os arranjos foram de Tom Jobim, de Moacir Santos, então não pode haver uma coisa mais brasileira. Se você pensar em componentes de jazz, é claro que tinha, de jazz e de música clássica. Mas é uma música da época, uma música que marcou. Eu não rotularia nada, com exceção da bossa nova, um nome genial que marcou um estilo e uma época e que é um belo nome. É parte do público decidir o que quer chamar.
PAS: Quando e por que seus discos passaram a ter vocal?
SM: Eu vim para cá em 1962, na época do concerto do Carnegie Hall, com Tom Jobim, João Gilberto. Foi a primeira vez que vim aos Estados Unidos, a Nova York, e adorei. Minha banda era eu, Paulo Moura no saxofone, Pedro Paulo no trompete, Durval Ferreira no violão, Octavio Bailly Jr. no baixo e Dom Um Romão na bateria. Nessa época fui convidado para fazer um disco com Cannonball Adderley [Cannonball’s Bossa Nova – Cannonball Adderley with the Bossa Rio Sextet of Brazil, 1963], que era uma das figuras mais clássicas do jazz norte-americano. Eu era fã dele, e fizemos esse disco, também instrumental.
PAS: Receber esse convite deve ter sido uma surpresa.
SM: Foi, imagina, claro que foi. Nós fomos ao Birdland ouvir exatamente o Cannonball. Ele depois chegou na mesa e perguntou se eu queria dar uma canja, imagina você a tremedeira. Dei a canja com ele, toquei umas duas músicas, e ele disse: “Vamos gravar um disco?”. Ficamos mais duas semanas em Nova York gravando o disco, foi uma experiência maravilhosa também. Mas depois voltei ao Brasil, e vim para cá em outubro de 1964. Chegamos aqui em Los Angeles, ficamos fazendo as chamadas auditions, tocando para gravadoras. O grupo nessa época era Jorge Ben, Wanda Sá, Rosinha de Valença, Chico Batera, Tião Neto e eu.
PAS: Estavam todos em Los Angeles?
SM: Viemos juntos do Brasil. Depois o grupo voltou, e eu então resolvi fazer outra banda. Esse grupo era uma espécie de show case, tinha vocal, instrumental, tocava com trio, Rosinha fazia o negócio dela, que também era instrumental. Não sei exatamente por que, mas falei: vou fazer um grupo com vocais agora. Conheci a [cantora estadunidense] Lani Hall em Chicago, ela era garota, tinha acho que 17 anos. Adorei a voz dela, convidei se queria vir para Los Angeles, porque eu estava armando um grupo. Ela veio, e tinha uma outra menina, brasileira, chamada Bibi Vogel, que depois até voltou para o Brasil e foi atriz de televisão. Tinha um baterista, chamado João Palma, e um ritmista, chamado José Soares, que morava aí no Brasil. Comecei a ensaiar as músicas que eu tocava antes no Beco das Garrafas, como “Mas Que Nada” e “Chove Chuva” [também de Jorge Ben, 1963], mas já com vocal. Quando ouvi o som das duas meninas cantando juntas, em uníssono, achei que aquilo tinha uma sonoridade diferente. Imediatamente falei: que troço bacana esse som. E começamos a ensaiar aqui em Los Angeles. Não tinha trabalho, a gente só ensaiava bastante e fazia muitas auditions aqui. Começou a aparecer gente de gravadora para ver a banda, e um dia apareceram Herb Alpert e Jerry Moss, que estavam começando a A&M Records. Herb tinha acabado de fazer a Tijuana Brass, que era um sucesso enorme, ouviu meu conjunto, adorou e disse: “Nós temos essa companhia, você não quer vir gravar com a gente?”. Pô, maravilha, imagina. Fui para a A&M e gravamos o primeiro disco [Herb Albert Presentes Sergio Mendes & Brasil ’66, 1966], com “Mas Que Nada”, e a partir daí começou o negócio dos vocais. Esse disco foi um sucesso mundial, depois vieram os discos todos, Brasil ’77 [ri], essa coisa toda, com aquelas músicas de que eu gostava muito e gosto até hoje. Naturalmente, tinha solo de piano e essas coisas todas, mas basicamente era vocal, porque além de estar comunicando a música você também tem a letra, e tem o negócio da voz, que é bonito. Essa foi a ideia dos vocais, que continua até hoje e até hoje eu adoro. Hoje cantam Gracinha Leporace e mais duas meninas, é um som de que gosto muito, ficou mais ou menos uma marca.
PAS: Quando fala das auditions, quer dizer que você não tinha uma situação confortável e garantida nos Estados Unidos no começo?
SM: Não. O pessoal veio para cá e voltou ao Brasil, e eu resolvi ficar por aqui. Eu tinha um filhinho de poucos meses, Rodrigo, que tinha nascido em abril, e morava num apartamentozinho num lugar chamado Glendale, um subúrbio de Los Angeles. Aliás, quem conheci nessa época e me ajudou a encontrar apartamento foi João Donato. Ele já morava aqui, ficamos muito amigos, até hoje é um dos meus compositores e pianistas preferidos. Foi por aí, mais ou menos metendo a cara e fazendo audições, tocando aqui, tocando ali, mas não tinha realmente nada acontecendo até gravar e sair o primeiro disco.
PAS: Você foi descobrindo conforme foi fazendo.
SM: Exatamente, e de repente o Herb Alpert ouviu aquilo e gostou muito, aí aconteceu a grande primeira chance. Por falar nisso, somos grandes amigos até hoje, eu, Herb e Jerry Moss. É uma coisa rara depois de 46 anos você ser amigo do seu primeiro patrão [risos]. Tenho muito orgulho disso.
PAS: Uma coisa recorrente desde Carmen Miranda é aquela história de “disseram que voltei americanizada”. O Brasil de um modo geral torceu o nariz para sua experiência aí fora? Como você sentia sua música recebida aqui?
SM: Olha, no início é claro que existiu uma resistência, por parte da crítica especializada, o que é isso, o cara tocando música em inglês? Mas a ironia disso tudo é que “Mas Que Nada” foi a única vez que uma música brasileira estourou no mundo cantada em português, em 1966 e em 2006. É impossível argumentar com isso, né? Mas, claro, existia gente que gostava e gente que não gostava, isso sempre existiu. Lembro que fui tocar aí no Maracanãzinho, fizemos shows pelo Brasil todo, nos anos 1960, 1970 e em 2006, no Réveillon da Praia de Ipanema, para mais de 1 milhão de pessoas. Mas sempre, como até hoje, no trabalho de qualquer artista, vai ter a turma que gosta e a turma que não gosta. Entendi muito rápido que era assim. Mas acho que isso não tem nada a ver com Brasil, porque tem gente aqui nos Estados Unidos e no mundo inteiro que gosta e que não gosta também.
PAS: É que Tom Jobim tinha aquela frase sobre fazer sucesso no Brasil, há uma relação meio conflituosa, um ruído quando se está fazendo sucesso lá fora, bem-sucedido. A própria Carmen teve uma história significativa quanto a isso, de voltar e ser mal recebida aqui.
SM: A experiência de cada um é que conta. Naturalmente, na época dela, que era época de guerra, deve ter sido uma experiência muito pessoal. A minha experiência está sendo ótima, vou ao Brasil todo ano. É claro que, repito, de vez em quando recebo um jornal que faz uma crítica, isso faz parte do trabalho, do percurso. O importante é seguir caminhando e não dar nenhuma bola para esse tipo de coisa.
PAS: Marcos Valle e Anamaria Valle [então esposa do músico carioca] chegaram a fazer parte do Brasil ‘66?
SM: Não, do Brasil ’65, rapidamente, por alguns meses.
PAS: E aí voltaram para o Brasil?
SM: Isso.
PAS: E tinha uma experiência com Nara Leão também?
SM: Ah, Nara Leão é antes, na época do Bossa Rio. Foi meu primeiro trabalho legal, fui contratado pela Rhodia, que juntava pintores, pessoal da moda, da música… Tinha um diretor muito inteligente e criativo na Rhodia chamado Lívio Rangan. Juntei a tchurma, um trio, eu, Tião Neto e Edison Machado, isso em 1962, acho, e convidei Nara para fazer parte. Nós viajamos o mundo inteiro, Ásia, Europa. Tinha os desfiles de modelos e depois o nosso show, e eu tocava durante o desfile das meninos, um trabalho maravilhoso.
PAS: Você tocava com Nara cantando?
SM: Nós tocávamos juntos, é. Éramos um quarteto. Nara cantava e tocava violão também.
PAS: Ela podia ter sido do Brasil ’65?
SM: É… Essas coisas você não pensa, tem que fazer o que está fazendo na hora e curtir o máximo. Teria sido uma boa.
PAS: Eu queria que você falasse um pouco sobre a mistura de repertório que criou, que é uma das coisas mais originais, com Jorge Ben, Beatles, Edu Lobo, Stevie Wonder…
PAS: Então, acho que são as melodias. Quando vou fazer um disco, a primeira coisa que penso é na canção. Quando gravo Stevie Wonder, Paul McCartney ou Milton Nascimento, procuro dar uma interpretação do meu jeito, do jeito que sei e gosto de fazer, e procuro dar uma marca a elas, representá-las de uma maneira original. Foi isso que aconteceu com esse repertório de que gosto muito até hoje. Naturalmente hoje em dia, por exemplo, tenho muito prazer em regravar coisas que já gravei, mas o que estou querendo dizer é que começa com a canção e termina com a canção. É que nem um filme, tem que ter história. Um filme sem história não é nada. Pode rechear do jeito que quiser, trazer os melhores atores do mundo, se não tiver uma história é uma coisa vazia. A música é bem assim, se não tiver grandes canções como as de Tom Jobim, Baden Powell ou Milton Nascimento, você não tem nada. É exatamente por isso que regravo, como em Timeless. Quando gravei “Mas Que Nada” de novo, havia toda uma geração que nunca tinha ouvido aquela música nem sabia o que era Brasil ’66, e de repente descobriu essa canção.
PAS: Tem uma peculiaridade, que quando você regrava “Mas Que Nada”, regrava completamente diferente da versão anterior.
SM: Ah, sim, são reinterpretações. No Bom Tempo, por exemplo, tem regravações que são 2010, não é uma coisa nostálgica. Não dá para reproduzir aquela época. Aquela época foi aquela época, hoje é hoje. Mas gravar, por exemplo, Cole Porter, George Gershwin ou Tom Jobim, é a maneira como você reinterpreta a música e faz o arranjo. Por isso esses compositores são muito regravados por vários artistas. Nos dias de hoje sinto que existe uma grande falta de grandes melodias. Acho que há um vazio em relação a isso, é uma crise mundial. Se você pensar uma grande canção feita nos últimos três anos, cadê? Vai achar uma ou duas, mas não é como naquela época muito fértil. Na época do Jobim, ele escreveu mais de 600 músicas. Existia um repertório variado, enorme. Hoje é difícil. Para mim, tem que ter a melodia.
PAS: O predomínio da música eletrônica nos anos 1990 e 2000 deixou a melodia um pouco perdida?
SM: Não, acho que os instrumentos mudaram. Era o piano, o Fender Rhodes, depois o sintetizador. Depende de como é usado, é como hoje o pro-tools. É o jeito que você usa, você é que tem que colocar seu coração e seu dedo no negócio e utilizar a tecnologia. Mas esses compositores que falei – aliás, tem que incluir Gilberto Gil, que adoro – são o que gosto até hoje de sair pelo mundo tocando e curtindo.
PAS: Em 1969 houve aquele show no Maracanãzinho, que Wilson Simonal abria para você. Pode falar um pouco sobre Simonal?
SM: Foi uma noite maravilhosa. Não só tinha Simonal, como Gal Costa e outros artistas também. Eu adorei. Simonal eu via de vez em quando, tinha uma relação muito amigável com ele. Quando ele vinha aos Estados Unidos me via, quando eu ia ao Brasil também o via. Na época do Beco das Garrafas, ele passava um pouco por lá também.
PAS: Esse show ficou famoso porque ele teria feito mais sucesso que você, que era o artista principal…
SM: Realmente ele fez, estava no auge da carreira dele.
PAS: Foi um momento inédito de consagração.
SM: Foi, mas o nosso show foi excepcional também. Ele era um cara da época, né? Acho que foi a primeira vez que se apresentou no Maracanãzinho também. Mas foi superlegal, eu adorei.
PAS: Logo a seguir houve os problemas dele com a polícia e a política. Você só acompanhou de longe?
SM: De longe mesmo, não soube nada de detalhes daquela coisa toda. Eu tinha um outro tipo de relacionamento com ele, que era de artista para artista.
PAS: Em pouquíssimo tempo, ele saiu daquele momento de consagração no Maracanãzinho para o ostracismo total… [Silêncio.] Quando Stevie Wonder cantou e gravou “Sá Marina” (1968) em inglês, como “Pretty World” (1970), foi por intermediação sua? Você tinha gravado a música no disco Crystal Illusions (1969), e, nos anos 1970, você gravou várias canções do Stevie Wonder. Pode falar sobre sua relação com ele e com a música dele?
SM: Stevie Wonder era um grande fã e amigo, ele é meu amigo até hoje. Na época fiz uma letra para ele, que queria cantar em português. Era um disco chamado Fulfillingness’ First Finale [de 1974, com versos em português na faixa “Bird of Beauty”], ele adorava e adora a música brasileira e adorou cantar. E fez duas músicas para mim nessa época, “The Real Thing” e “Love City“ [do disco Sergio Mendes and The New Brasil ’77, de 1977]. Ele veio ao estúdio, participou da gravação, tocou clavinete, cantou. Estava terminando um disco chamado The Secret Life of Plants (1979), vinha em casa toda noite, ouvia as mixagens. E eu naturalmente adorava e adoro a música dele, sou superfã. E, por curiosidade, no disco Timeless, 30 anos depois, eu estava gravando e ele estava no estúdio ao lado, eu nem sabia. Ele entrou no estúdio onde eu estava gravando, ouviu a música e disse: “Amanhã vou trazer minha gaita e vou fazer um solo”. Que maravilha, mais uma vez a arte do encontro. No outro dia ele gravou, é a faixa do Baden Powell [uma medley com os afro-sambas “Berimbau” e “Consolação”, ambos de 1963], para mim outro dos grandes compositores da música popular brasileira. Ele era um grande amigo, tocávamos juntos na época do Beco. No meu disco novo toca Nathan Watts, contrabaixista do Stevie Wonder há muitos anos.
PAS: Foi você que gravou “Sá Marina” em inglês primeiro?
SM: Foi, Antonio Adolfo é um querido amigo meu também. Quando eu trouxe a música dele para cá, decidimos botar uma letra em inglês, que foi feita pelos irmãos Marilyn Bergman e Alan Bergman, que eram os grandes letristas da época. E “Pretty World” virou um grande sucesso. Duas músicas que Stevie Wonder adorava eram “Sá Marina” e “Você Abusou” [de Antonio Carlos & Jocafi, 1971]. Gravei “Você Abusou”, acho que ele também, não tenho certeza.
PAS: Você lembra como conheceu Stevie Wonder?
SM: [Silêncio.] Ah, lembro. Eu tinha uma cantora na minha banda que se chamava Marietta Waters. Ela era namorada de Michael Sembello. Por causa dela conheci Michael, que era um guitarrista fantástico, e ele me levou para conhecer a banda do Stevie, que se chamava Wonder Love.
PAS: Sembello tocava na banda dele?
Sembello tocava com Stevie Wonder, antes de escrever Maniac [hit pop da trilha sonora do filme Flashdance, 1983]. Ele gravou em vários discos meus também e fez alguns shows comigo. Acabou se casando com minha outra cantora [ri]. De vez em quando ele me telefona, soube que esteve aí no Brasil, trabalhando com o neto do Tom, Daniel Jobim. Ele adora música brasileira.
PAS: Quem gravou “The Real Thing” recentemente [em 2009] foi Bebel Gilberto, você ouviu?
SM: É? Que legal, não ouvi a versão dela ainda, não.
PAS: São fortes suas ligações com a soul music e, de modo mais amplo, com a música negra em suas várias vertentes, não?
SM: Toda música que veio da África, não só para o Brasil como para Cuba, foi uma grande contribuição – para o jazz norte-americano, para o nosso samba, para o maracatu, todos esses ritmos maravilhosos. Para mim, onde existiu África no início da formação de um país, a música é muito interessante. É a música com que me identifico.
PAS: Tem uma razão particular para essa identificação?
SM: Não, a identificação é musical mesmo. Quando nasci já ouvia os batuques de Niterói. Você já cresce com o samba na veia, né? Depois, quando fui à Bahia pela primeira vez e ouvi os ritmos de lá, adorei. Fui a Pernambuco conhecer os maracatus. Isso tudo é África, né? E aqui, o jazz.
PAS: Quais são as origens dos seus pais?
SM: O meu avô José Augusto Mendes, pai de meu pai, era um negro.
PAS: Ah, estava no sangue também.
SM: Sim, claro. Do lado da minha mãe, são portugueses. Então é o clássico, português com negro. Também isso deve ter contribuído muito para eu me identificar com essa música.
PAS: Onde eram nascidos seus pais?
SM: Em Niterói, os dois. Meu pai era médico em Niterói.
PAS: Acho especialmente impactantes os discos Ye-Me-Le (de 1969) e Raízes (1972, chamado Primal Roots na edição norte-americana). Ali há toda uma pesquisa sobre candomblé e referências africanas mesmo, não?
SM: Exato. Ye-Me-Le é um canto, um chant maravilhoso, feito por Luiz Carlos Vinhas e Chico Feitosa na época da bossa nova [lançado por Vinhas em 1967]. Sempre adorei essa música, e por isso gravei em 1969. Raízes foi a primeira vez que fiz um disco no meu estúdio, que eu tinha acabado de construir na minha casa aqui em Los Angeles. Aliás, quem constriui foi Harrison Ford, ele era o carpinteiro. Ainda não tinha começado como ator, foi um pouquinho antes de fazer o primeiro filme, que foi Star Wars (1977), acho.
PAS: E você lembra dele na construção?
SM: Lembro, muito. Ficou um ano e meio trabalhando lá em casa, fazendo o estúdio para mim com os amigos dele.
PAS: E você percebia que ele tinha talendo para ator?
SM: Isso eu não sabia. Na hora do almoço ele estava sempre lendo os scripts, mas é difícil falar que alguém vai ser ator. Ele tinha um talento enorme para a carpintaria. Era carpinteiro mesmo, fez um trabalho maravilhoso.
PAS: Raízes tem como fio condutor a canção “Promessa de Pescador” (1939), de Dorival Caymmi.
SM: Exato, foi a primeira vez que fiz um disco na minha casa, no meu quintal. Então resolvi fazer uma coisa voltada às raízes mesmo, esses cantos da Bahia, os ritmos de candomblé, toda essa coisa.
PAS: Você tem alguma ligação com candomblé, ou é só pela música?
SM: Não, adoro as músicas, o ritmo.
PAS: Você deixou de morar no Brasil em 1964, pouco depois do golpe militar. Como via e se relacionava, de longe, com a ditadura brasileira? Como lhe chegaram acontecimentos como o AI-5, as torturas, a censura?
SM: Saí exatamente no ano, e quando ouvia as notícias aqui era uma tristeza. Foi uma época muito triste para o Brasil, para os brasileiros e naturalmente para mim, que morava aqui e ouvia as notícias. Foi uma época horrorosa.
PAS: Na época você não voltava para cá frequentemente?
SM: Eu voltava, sim. Passava Natal, Ano Novo, e via o que estava acontecendo. Era uma coisa que me incomodava muito, uma coisa horrível, um momento muito triste da história.
PAS: Você sente o Brasil bastante diferente hoje?
SM: Ah, completamente, temos uma democracia, né?
PAS: O disco Horizonte Aberto (1979) saiu pela Som Livre e teve música incluída em novela da Globo. Como foi isso?
SM: Ah, sim, fiz várias trilhas para novelas da Globo. Tinha uma relação excelente, e tenho até hoje – o programa da Angélica é com o meu “Mas Que Nada”. Fiz dois programas dela no ano retrasado, fiz o Faustão, e vejo a TV Globo aqui em casa direto. Vejo futebol, Jornal Nacional, é o que me dá o contato mais imediato com o Brasil.
PAS: Queria entender melhor o sistema pelo qual você lançava seus discos, no selo A&M.
SM: Fiquei por muitos anos, depois saí e fui fazer dois discos, um chamado Love Music (1973) e outro que esqueci o nome [Vintage 74, de 1974] para uma companhia chamada Bell Records, que acabou. Depois fui gravar para a Elektra Records, fiz vários discos lá. E depois Herb Alpert me convidou para voltar à A&M, o que é uma coisa rara, voltar para a mesma companhia. Foi muito legal, porque voltei e logo no primeiro disco [Sergio Mendes, de 1983] tivemos um hit enorme, que foi “Never Gonna Let You Go”. Foi a primeira vez que usei um homem cantando, que era Joe Pizzulo. Foi um momento muito positivo e feliz, outra vez a arte do encontro – essa foi a arte do reencontro, com Herb Alpert e Jerry Moss. “Never Gonna Let You Go” ficou quase um ano no número 2 da parada de sucessos norte-americana – número 2 porque Michael Jackson tinha o Thriller (1982) nessa época. Essa música foi um sucesso nas Filipinas, na Malásia, também no Brasil na época. Aí fiz mais três ou quatro discos na A&M.
PAS: Qual a história por trás do disco Brasileiro (1992)?
SM: Eu também queria de novo fazer uma coisa voltada aos ritmos brasileiros, como foi Raízes. E nessa época eu tinha um percussionista que trabalhava comigo, chamado Meia-Noite, que era baiano e cresceu com Carlinhos Brown no Candeal. Ele me falava muito do Carlinhos, e perguntou um dia se Carlinhos podia me telefonar. Carlinhos me ligou às duas horas da manhã, eu não sabia quem ele era, e começou a cantar uma música para mim no telefone. Era “Indiado”, que ele já tinha feito para mim.
PAS: Você nem sabia quem ele era?
SM: Não, não sabia nada, era o amigo do Meia-Noite. E achei genial, não ele ter me acordado às duas da manhã, mas a música pronta [risos]. Falei: olha, vou aí visitar você, vou te conhecer. E fui à Bahia especialmente para isso. Quando cheguei lá, ele estava começando a fazer a Timbalada, estava com a Timbalada toda na rua tocando aqueles tambores, aqueles ritmos. Fiquei fascinado, então convidei Carlinhos para fazer parte do disco Brasileiro. Veio para cá, gravei quatro ou cinco músicas dele. É um músico incrível, um talento extraordinário. Somos amigos até hoje, participou do novo disco.
PAS: Todos os seus discos desde o início do Brasil ’66 eram feitos no selo A&M e saíam aqui no Brasil também?
SM: Eram feitos aqui, na época pela A&M e depois pela Elektra, e eram distribuídos no Brasil – agora, por exemplo, meus discos são distribuídos pela Universal no mundo inteiro. O único disco que fiz aí, que se originou aí no Brasil, foi Oceano (1996). Fiz overdubs aqui em Los Angeles, mas o disco foi feito aí. Gravei para a Universal Brasil e aconteceu o contrário, para aqui ele foi um disco importado. Foi legal a experiência, com grandes convidados, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Djavan.
PAS: O disco da Som Livre não foi feito no Brasil também?
SM: Foi feito aí, acho que foi lançado só aí, porque tinha a música para a novela Os Gigantes.
PAS: Recentemente, nos shows de reunião dos Mutantes, Sérgio Dias costumava dizer que o grupo fez a música “Cantor de Mambo” (1972) pensando em Sergio Mendes (na abertura, Rita Lee diz que “esta é a história de um rapaz/ que encontrou seu sucesso algures, além mar/ seu nome, Cantor de Mambo”, e a melodia segue dizendo: “Eu não volto mais pra cá, não/ hoje eu sou cantor de mambo/ hoje eu vivo aqui na América/ ganho bem cantando mambo”). Você soube disso na época?
SM: Não, quando foi isso?
PAS: A música saiu em 1972, mas acredito que ele só contou dessa referência recentemente, dando a entender que era uma tiração de sarro. Como soa para você?
SM: Ah, tá bom [ri]… Não soa nada, acho engraçado. Eu realmente não soube, não, nem ouvi a música também, e ouvindo hoje como uma pergunta sua acho uma coisa meio surrealista.
PAS: Entre Oceano e Timeless houve um hiato de dez anos. Por que ficou uma década sem gravar? Foi um período de afastamento da música, em alguma medida?
SM: Pois é. Não sei exatamente por quê. Acho que uma hora você tem que der uma parada, não de trabalhar, mas de fazer disco. Tinha feito muitos, um atrás do outro, e realmente estava sem inspiração, sem nenhuma motivação. Continuei viajando, fazendo shows pelo mundo inteiro, e toda vez que pensava em gravar via que não tinha uma ideia. E fiquei sem gravar dez anos, quando de repente conheci will.i.am e me bateu a vontade de gravar de novo, porque tinha uma ideia, tinha toda uma motivação para fazer, porque era uma coisa nova, atual, que eu podia fazer com prazer de novo. Foi muito importante eu ter dado essa parada de dez anos e ter de novo feito esses três discos.
PAS: E essa ideia partiu de você, do will.i.am, ou de quem?
SM: Essa ideia partiu de mim. A gravadora dele me ligou, dizendo que ele queria vir aqui em casa. Eu também não sabia quem era ele. Meus filhos é que começaram a me gozar, me disseram: “Papai, como você não sabe? Black Eyed Peas!”. No dia seguinte ele apareceu aqui, tocou a campainha, eu abri a porta, ele estava segurando uma porção de discos antigos meus, de vinil – Fool on the Hill (1968), discos instrumentais lá de trás, que eu tinha feito para a Atlantic Records. Começamos a conversar, e ele disse: “Eu nasci aqui em Los Angeles, nos projects”, que são uma espécie de favela, “cresci ouvindo a sua música, conheço tudo, sei tudo que você tocou”. Começou a falar das músicas, eu fiquei impressionado, como é que ele conhecia mesmo?
PAS: Isso te surpreendeu?
SM: Muito, me surpreendeu e me emocionou, né? Nós estávamos juntos aqui, eu, Gracinha e os dois garotos, e will é muito engraçado, muito inteligente. Mas foi uma surpresa enorme para mim, como é que esse cara, da idade dele, conhece tudo que eu fiz? Achei muito legal. E a razão da visita dele era que queria me convidar para tocar no disco Elephunk (2003), do grupo Black Eyed Peas. Fui para o estúdio, gravei, botei um solo de piano, e adorei o jeito maneiro de ele fazer música. Por coincidência, era “Insensatez” (1961), do Tom Jobim. Achei genial a ideia de arranjo dele, uma coisa muito original, contemporânea, atual. Quando voltei para casa, falei para Gracinha: acho que vou começar a gravar de novo. Liguei para ele no dia seguinte e perguntei se gostaria de fazer um projeto comigo, de co-produzir um disco comigo. Ele disse: “Fazer um disco com você é o sonho da minha vida”. Daí saiu Timeless. Por isso que foi tão legal, saiu de novo um encontro, um encontro inesperado, né?, que eu não estava esperando will.i.am me ligar.
PAS: Pelo que você conta, foi ele quem o impulsionou a voltar a ficar entusiasmado em criar?
SM: É, foi, porque quando veio ele, um garoto, dizer que me adorava, que tinha meu trabalho, e que não só ele, como todos os amigos dele… Começou a falar dos caras todos, “você não tem ideia, os rappers, todo mundo, Q-Tip, John Legend, o pessoal adora o que você faz”. Pô, não é possível. Aí me deu vontade de gravar de novo. Will foi um motivador mesmo de eu recomeçar a gravar, foi muito legal.
PAS: Ele disse que os caras do rap em geral gostam da sua música?
SM: Exatamente, uma surpresa para mim.
PAS: Esse não é o sangue africano se manifestando?
SM: É, a África de novo. Aliás, em Timeless trouxe Marcelo D2, que adoro. Ficou muito legal.
PAS: D2 é outro que é seu fã e faz misturas que têm a ver com as suas, de colocar samba no rap.
SM: Grande figura, adoro. É muito inteligente, muito rápido, muito musical. É bem feito o que ele faz. Mas, depois de não gravar por dez anos, o disco vendeu mais de 1 milhão de cópias no mundo inteiro, foi um sucesso enorme. É legal ter uma resposta dessas quando você não está esperando.
PAS: É mais que legal, algo que lhe deu sangue novo para se renovar.
SM: Exato, é estimulante. Fizemos um show juntos, eu não conhecia nem India.Arie, nem Jill Scott, esse pessoal todo. Foi um encontro rnatural, não foi nada forçado. Como eles tinham uma admiração muito grande pelo meu trabalho, foi supernatural fazerem parte. Justin Timberlake também, de repente você não sabe da dimensão do seu trablaho, e tem pessoas no resto do mundo que curtem, como Juanes, aí na América do Sul, ou Jovanotti, na Itália. Eu jamais iria pensar nisso.
PAS: Essa afeição seria uma coisa de toda essa geração?
SM: Pois é, eles têm metade da minha idade. Mas aí é que é o legal de eu estar fazendo esse tipo de trabalho, porque tem toda uma nova geração que possivelmente não teria escutado essas grandes canções da música popular brasileira, de Baden, Jobim, Donato, e de repente essas canções estão hoje no mundo dessa garotada. Acho isso muito legal.
PAS: Você consegue entender por que esses caras do rap se identificam com a sua música? O que ela tem que cativa eles?
SM: Olha, acho que são primeiro as melodias, que são sensacionais. No mundo do hip-hop, do rap, não existem assim grandes melodias, então o aspecto melódico e harmônico da nossa música é muito forte, tem um apelo muito grande para eles. E depois os ritmos, que, como você disse, são ritmos de origem africana que têm muito a ver com o jazz, o hip-hop, a música cubana. Acho que o que atrai muito o mundo inteiro são as melodias. Quando você canta “ariá-raiô, obá, obá, obá”, o mundo inteiro conhece. Acho que força melódica é a coisa mais importante da música brasileira.
PAS: Mas os rappers poderiam ter ido nas próprias fontes, de Tom Jobim, Baden Powell, Caymmi. Poderiam ter encontrado todo mundo, mas encontraram por seu intermédio. Tem uma coisa que pertence a você também atraindo eles, não?
SM: Deixo você fazer esse comentário…
PAS: Modesto…
SM: Não, isso não cabe a mim dizer, você que fala…
PAS: Resumindo, esses três últimos discos, Timeless, Encanto e Bom Tempo, têm um valor especial para você?
SM: Ah, sim, é depois da parada de dez anos que voltao a gravar com o mesmo entusiasmo que tinha quando fiz Dance Moderno. Seria uma boa descrição. Se você não tiver entusiasmo e curtir muito o que está fazendo, é melhor não fazer. Acho que foi por isso que não gravei nada durante dez anos. Faltava motivação, entusiasmo, inspiração, o que você queira chamar.
PAS: Você tem acompanhado a tragédia causada pelas chuvas na sua cidade natal? Como se sente em relação a isso?
SM: Ah, uma tristeza enorme, uma coisa terrível. Acompanho aqui pela televisão, é a minha terra, onde nasci, onde cresci, e pela qual tenho um carinho muito grande. Niterói para mim é muito importante, é lá o começo de tudo, onde aprendi a tocar piano, onde jogava bola na praia de Icaraí, onde mais tarde tomava a barca para ir para o Rio de Janeiro, para o Beco das Garrafas. Niterói é o grande início. Toda vez que volto ao Brasil eu vou lá. Tenho um carinho muito grande, e saudade também. Vou lá visitar minha irmã, vou rever as coisas da época, que estão um pouco diferentes…
PAS: Pela TV agora, você vê imagens familiares? Foi mais na periferia…
SM: É, mas alguns lugares em que houve desabamento, sim, são lugares que eu conhecia, que mais ou menos me lembro. Fiquei extremamente triste com essa tragédia.
PAS: Você viveu de alguma forma histórias de rivalidade entre Niterói e o Rio?
SM: Não, tinha sempre uma coisa assim, mas hoje não. Hoje tem a ponte, Niterói continua tendo seu charme. Como era mais ou menos distante – eram 45 minutos de barca, era longe -, ir ao Rio era um programa. Foi minha primeira partida, se você pensar em termos de viagem. Era tomar a barca para ir para o Rio, para Copacabana. Depois era tomar um avião para ir para São Paulo. Depois outro avião para Nova York. E aí não parou mais.
PAS: Para o Rio era como se Niterói fosse interior, uma periferia? Havia um pouco de preconceito?
SM: É, era uma cidade pequena, mas acho que hoje não existe mais isso, não. Antigamente se dizia que a melhor coisa de Niterói era a vista do Rio de Janeiro, essas piadas, mas acho que hoje não. Com a ponte, acabou muito essa fantasia, Niterói está muito integrada ao Rio. Mas tenho muita saudade dessa época, da barca para o Rio de Janeiro, eu e Tião Neto, que morava lá também.
PAS: E como é viver perto de Hollywood, dessa indústria gigante que é o cinema?
SM: Como é viver em Hollywood [pensa]… Olha, quando vim para cá, que cheguei e encontrei João Donato, a música vai envolvendo muito você. Tive várias bandas que começaram aqui, então tenho toda uma vivência, de tocar piano, fazer show. Por exemplo, toco quase todo ano no Hollywood Bowl. Estou fazendo agora a música para um filme sobre o Rio de Janeiro, uma animation da Fox, que aliás tem um diretor brasileiro, Carlos Saldanha [Rio, lançado em 2011]. Sou o produtor musical executivo desse filme, vai sair ano que vem. É também a primeira vez que faço esse tipo de trabalho, estou adorando fazer. Eles fizeram A Idade do Gelo (2002). É um filme importante, uma animation que se passa no Rio, é uma coisa nova para mim.
PAS: O clima do cinema domina tudo por aí?
SM: É, é a maior indústria da Califórnia, a cinematográfica. Mas aqui tem lugares simpáticos para morar, como onde moro. A grande indústria é o cinema, mas você tem a música, tem as televisões todas aqui, CBS, NBC, ABC. Gosto muito do clima daqui.
PAS: O cinema acaba afetando você como músico? Sua música reflete de algum modo essa proximidade?
SM: Ih, eles usam à beça minhas músicas em filmes, sempre. E adoro cinema, desde Niterói, desde o cinema Odeon. Eu era garoto quando vi pela primeira vez Os Sete Samurais (1954), do Akira Kurosawa, e fiquei fascinado. E agora vou ao Japão todo ano, encontrei o filho do Kurosawa, que me disse que Kurosawa era meu fã, imagina você, e me deu uma gravura do pai dele, uma storyboard que ele fazia do filme Ran (1985). Essas coisas são fantásticas. Vi todos aqueles filmes da época, de Federico Fellini, Roberto Rossellini, cresci muito nesse mundo, e os filmes todos de Hollywood também. A fantasia do cinema era muito presente na vida, e é ainda até hoje, aí no Brasil e no mundo inteiro.
PAS: Quantos filhos você tem?
SM: Tenho cinco, três do primeiro casamento, Rodrigo, de 46 anos, Bernardo, de 44, e Isabela, de 42. Depois tenho com Gracinha o Gustavo, de 23, e o Tiago, de 17.
PAS: Todos de nomes brasileiros…
SM: Mas é claro!
PAS: Moram todos aí?
SM: Moram aqui comigo, todos aqui. Acabaram de ir para o festival de Coachella, que é o maior festival de rock daqui.
PAS: Há músicos e artistas entre eles?
SM: Olha, por enquanto não sei. Tiago toca violão, canta, vamos ver.
PAS: Gracinha Leporace chegou a lançar discos aqui no Brasil, nos anos 1960…
SM: Sim, ela cantava num grupo chamado Grupo Manifesto, foi muito importante [de onde saíram também Lucina e dois futuros produtores musicais da Rede Globo, Guto Graça Mello e Mariozinho Rocha]. E veio para cá em 1968 já, para cantar no Brasil ’66. A primeira música que ela cantou com o Brasil ’66 foi “Lapinha” [no álbum Fool on the Hill, de 1968], do Baden Powell, e daí para frente várias. Ela sempre participa das minhas gravações. No último agora, está cantando bastante coisa.
PAS: Mas ela não é uma cantora constante, de fazer shows solo?
SM: Faz show também, não é constante por causa dos filhos. Não dá para viajar toda hora. Mas foi ela quem ensinou todas as cantoras a cantarem em português. Todas elas aprendem foneticamente com ela.
PAS: Não deve ser muito fácil ensinar…
SM: É uma coisa, dois meses para aprender. É fácil substituir um baixista, um baterista, porque tem já a música escrita, pegando um bom músico está lá. Agora, cantora que não fala em português cantar em português, sem sotaque, é complicado. É dona Gracinha que resolve, que cuida desse departamento [ri].
PAS: Há quem reclame, mas é um charme a mais, não? Elas têm sotaque, a gente sabe que não são brasileiras cantando.
SM: Ah, sim, mas às vezes não têm nenhum sotaque, é impressionante. Fico surpreso de como elas aprendem.
PAS: Chamar norte-americanas é uma questão de praticidade? Você poderia chamar cantoras braslleiras mesmo.
SM: Podia, mas é complicado. Já tem uma, que é a melhor, a Gracinha, então trazer outra brasileira complica [ri]… Mas, só para você saber, tive cantoras na banda que viraram famosas, como Diane Reeves, que começou comigo, e Siedah Garrett, que fez “The Man in the Mirror” (1987) com Michael Jackson.
PAS: Para terminar, como você entende a percepção geral sobre o Brasil no mundo hoje em dia?
SM: Acho que não é só agora, o Brasil foi sempre respeitado no mundo, não só pela música e pelo futebol, como também pela beleza do país, das mulheres, o calor humano das pessoas. E hoje é um país com peso econômico importantíssimo.
PAS: Atualmente é respeitado também politicamente.
SN: Sim, é uma democracia, e um país com um sucesso enorme na área econômica, um país estável. Acho que devemos nos orgulhar disso.
PAS: Aí de longe, você sente orgulho do Brasil 2010?
SM: É, exato, eu sempre coloquei o nome do Brasil nos meus grupos, desde o início.
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