Um instantâneo de Brasil: “o futuro é ancestral”

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"Erva de Gato". Still. Reprodução
"Erva de Gato". Still. Reprodução

Com roteiro e direção de Novíssimo Edgar, o curta-metragem Erva de Gato estreia nesta sexta (6) no Festival do Rio

Estreia nesta sexta-feira (6), no Festival de Cinema do Rio, o curta-metragem Erva de Gato, do cantor, compositor, artista plástico, performer e cineasta paulista Novíssimo Edgar, que apesar da experiência no campo da sétima arte, pela primeira vez assina roteiro e direção da obra. Marcadamente político e atualíssimo, a estreia se dá em mais um momento conturbado da vida nacional recente: os assassinatos, na madrugada de hoje (5), no Rio de Janeiro, de três médicos que estavam participando de um congresso na cidade, um deles irmão da deputada federal Sâmia Bomfim (PSol/SP) – nunca é demais lembrar que o assassinato da então vereadora carioca Marielle Franco (1979-2018), do mesmo partido, em 2018, nunca foi elucidado.

A entrevista exclusiva que o multi-artista concedeu ao FAROFAFÁ foi realizada antes do citado crime. A distopia cinematográfica de Novíssimo Edgar aborda temas como ancestralidade – inclusive religiões de matriz africana –, povos originários, viagens no tempo, domínio das milícias, violência, ódio, racismo e os muros erguidos entre pessoas e geografias em decorrência de ideologias políticas, sobretudo por parte daquelas que batem no peito para dizer que não têm ideologia.

Novíssimo Edgar tem enorme consciência política e conhece o poder transformador da arte. Não tem, portanto, a pretensão de encerrar tanto assunto em 20 minutos de filme. Ele aposta mesmo na obra como uma espécie de piloto, aberta a desdobramentos, ainda não sabe se um longa-metragem ou mesmo uma série. A conferir. Mas não foge da raia. Com atuações intensas (a preparação de elenco é de Clayton Nascimento), o elenco conta com Grace Passô (Praça Paris), Ítalo Martins (atualmente em cartaz na novela Terra e Paixão, da Globo) e Giulia Del Bel (As Five, Meu nome é Bagdá), que também assina a produção executiva do curta-metragem, que tem trilha sonora de Pupillo.

Erva de Gato acaba se configurando um pequeno instantâneo de Brasil. E quem achar qualquer exagero em sua obra não está entendendo a obra ou o Brasil. Ou, quem sabe, dos dois.

O multi-artista Novíssimo Edgar - foto: Anni (@electricbusy)/ divulgação
O multi-artista Novíssimo Edgar – foto: Anni (@electricbusy)/ divulgação

SEIS PERGUNTAS PARA NOVÍSSIMO EDGAR

ZEMA RIBEIRO: Quais as principais diferenças ao assumir completamente roteiro e direção de um filme?
NOVÍSSIMO EDGAR: Talvez possam ser os vícios de uma narrativa que são criados. Porque quando você vai dirigir e você criou o roteiro, você conhece todos os atalhos desse universo. A parte boa é que se depender de algum atraso de set você vai conseguir fazer uma decupagem nova ali, e entender o que dá para tirar sem afetar totalmente a história, adaptar, etc. e tal, por ter todo esse enredo. Mas ao mesmo tempo pode criar esses leves vícios de como contar a história. Nesse caso também pode ser muito legal, viável, ter um montador que às vezes não faz parte do projeto, não conhece totalmente a história, de cabo a rabo, e a montagem pode mudar totalmente o filme, isso me agrada muito também. Eu acho que é essa é a diferença: se você dirige uma história onde você recebe o roteiro, você vai ter a sua visão de diretor, de como realizar aquilo; se você é um roteirista, você já está com cinestesia na cabeça, até umas horas, criando, imaginando, na maioria das vezes você já tem uma noção de direção de arte, do que você quer ali. Então quando você assume a direção também, acho que dá um plus.

ZR: Erva de Gato foi filmado em 2021. Além da pandemia, a que se deveu esta demora para o lançamento?
NE: Na verdade ele foi filmado em 2022, o Erva de Gato. Porque em 2021 eu ainda estava trabalhando no roteiro dele, eu estava na Dinamarca, tendo umas aulas de cinema, eu estava trabalhando numa trilha sonora de um filme [Baloon Wars] e na direção de narrativa de um game lá da Dinamarca, com a diretora Sissel Morell Dargis, e aí por isso que teve a demora também, da mudança do roteiro, da elaboração, de tentar contar essa história de uma melhor maneira dentro de 20 minutos.

ZR: Como se deu a escolha do elenco e a escolha por Pupillo para a trilha sonora? Em minha opinião, todas escolhas acertadíssimas.
NE: Obrigado, viu? Essa questão do elenco, são só pessoas que estavam próximas de mim, que me ajudam bastante, que acreditam no meu trabalho, então optei real por estar com essas pessoas e, eu acho que por ordem do destino, todas são as melhores no que fazem, isso é muito incrível. Pupillo eu já estava tendo um trabalho musical com ele, mas só que no meu próximo disco eu decidi mudar a produção musical, ir para uns outros lugares, até para explorar umas outras coisas assim, e ele aceitou demais também, continuar trabalhando comigo, expandindo esse lugar no audiovisual, ele assinando a trilha sonora, porque é uma das pessoas que mais entendeu assim como eu posso ser múltiplo dentro da música e dentro dos outros campos de arte também. Acho que foi a primeira pessoa que topou misturar frevo com eletrônico e botar alfaia no hip hop, sabe? Já tinha essa malandragem, essa cumplicidade. A Grace Passô, eu já tinha feito uma performance com ela, dirigida pela Dione Carlos, que foi a Retrospectiva Preta [2020]. A gente fez um jornal trazendo só notícias positivas. Depois eu atuei numa peça dela chamada Ficções Sônicas, que foi gravada no Teatro Municipal de São Paulo, peça bem linda, assim. E ela me deu a honra de dirigi-la nesse filme, super salvou o filme, na verdade, durante o set, teve uma hora que eu estava numa maluquice, quase tirando umas cenas, ela segurou firme na atuação, na personagem, no que a personagem traz, foi muito importante. Del Bel, meu Deus do céu! Sem ela o filme não teria existido, sabe? Ela é a alma dessa parada. Ela leu o roteiro e falou, “não, isso tem que virar filme!”, ela já estava atuando em várias paradas, já grandes assim, também, e começou a assumir o lugar da produtora executiva que ela é, o poder de realizar as coisas, e criar também, porque ela ajudou muito ali também na sala de roteiro, a desenvoltura dos personagens, características, psicologia dos personagens, vixe Maria! Ítalo muito amigo também, muito próximo, Goretti, nossa, maravilhosa, que entregou tudo ali, também, todo o background, nossa! Uma irmandade ali.

ZR: Erva de Gato é uma espécie de distopia que antevia o futuro de um Brasil então separado por discursos e práticas de ódio. O filme encara também temas como o racismo, a violência das milícias e questões relativas às religiões de matriz africana. Você é um artista que atua em várias frentes, com atuação destacada na luta antirracista. Como surgiu a ideia de um filme e como foi desenvolvê-la?
NE: O filme foi uma metamorfose, porque foi um conto que eu escrevi, onde era isso, um devoto de Baster [ou bastardo, como eram conhecidos os filhos de mulheres africanas e colonos holandeses na Colônia do Cabo; a expressão popularizou-se posteriormente, tornando-se sinônimo de filho fora do casamento], que virava um gato, que trocava sua alma humana por de gatos, para conseguir viver mais e ver a evolução da humanidade, um dia se encontrava numa casa com jovens na América latina. Surge como uma coisa mais ou menos assim, e aí eu começo a perceber que na real o que eu estou querendo falar é como que um ancestral, de um pensamento afrodiaspórico, consegue se atrelar e dialogar com o pensamento indígena futurista, pensando no Brasil pós-colônia. Então vêm essas palavras-chaves e começa esse trabalho de lapidação, onde uma militante negra é morta pela milícia, trazer toda essa contemporaneidade, se transforma num ancestral, seu irmão mais novo, então, perceber que ancestralidade também é contemporânea, o futuro é ancestral. E essa divisão do país acontece diversas vezes, em 2011 o Pará pediu para se separar em três, em Tapajós, Carajás e na região de Belém, que ia ser o Pará mesmo, porque é muito grande em si, e é difícil, se a gente for ver também, o Sul tentou se separar, o próprio Brasil em si era separado, tinha o estado do Brasil e Maranhão e Grão-Pará, então pensando nessa questão histórica também, esse ectoplasma de uma separação de um lugar tão grande que também pode ficar passeando não só no passado, mas como no futuro, porque a gente vê isso, até quando a gente ficou nessas sanções entre Bolsonaro e Lula, até tipo com o Haddad, acho mais assim, a gente viu que estavam se separando muito as pessoas, a gente viu que o Nordeste salvou o país, com seus votos, aí é uma consciência real, política. É um filme bem trabalhado, bem lapidado, pensado diversas vezes, de como trazer isso em 20 minutos, fica bem, como eu posso dizer, simbólico, em algumas partes, como no bolo, nas melancias, do que em diálogo. Esse é um enredo para fazer um longa, para fazer uma série, sabe?

ZR: O filme estreia agora no Festival do Rio e deve percorrer o circuito de festivais. Eu acredito no trabalho como uma poderosa ferramenta pedagógica para debater os temas a que nos referimos. Quais as tuas expectativas em relação à circulação da obra, para além do circuito de festivais?
NE: Essa questão pedagógica é incrível, a Del Bel tem essa visão, ela está tentando já articular alguns eventos e exibições independentes, para poder trazer e ficar mais acessível, tentar entender como pode ser disponibilizado para algum streaming, um Mubi da vida, onde as pessoas conseguem acessar e assistir, um Itaú Cultural, um cinema, Cine Sesc, sabe? Entrar num circuito assim também que eu acho que abrace essa questão mais pedagógica, educacional, creio que tem esse poder também. Mas, a princípio, o filme, na real, é para rodar festivais, mas ele é gerado quase como se fosse uma pílula da essência do que pode ser e ele é pensado como um piloto, quase como um episódio piloto que pode se desdobrar em uma série ou um longa, mas eu creio que em série podem ser bem mais aprofundados os temas, da questão indígena, da questão da volta no tempo, dessa questão do gato, que já pega a fantasia, e trabalhar, explicar o porquê, como que aconteceu esse assassinato desse ancestral, o que ela fazia antes, sabe? Mostrar, se aprofundar mais, então eu creio que ele vira quase um episódio piloto para uma série.

ZR: A curto e médio prazo, o que você pode nos adiantar, e ao fã-clube, sobre novos projetos? O que o inquieto Novíssimo Edgar está aprontando?
NE: Agora eu estou participando da Bienal de Artes de Montevidéu, que é dia 25 de outubro, estou com peças de artes plásticas e tapeçaria, tudo costurado à mão. Vou participar do show do Nelson D., no Primavera Sound, ele inclusive é um dos produtores do disco novo, que eu vou trabalhar para lançar ano que vem, já estou trabalhando, na verdade, já tem uns 70% já. Creio que isso é o que mais está perto, já tem datas de lançamento. Os outros projetos são os novos contos que estão sendo lapidados em roteiro, pensados para as próximas produções audiovisuais, além de algum pensamento de game também, gosto muito de trabalhar com videogame, mas dessa vez eu gostaria de pensar alguma coisa mais tabuleiro. Deixa eu ver mais o quê [pensativo]. Montar logo um núcleo novíssimo de performance, sei lá, Academia Novíssimo Edgar, alguma coisa assim, de performance, pensar como conseguir também desdobrar essa cabeça aqui, de compartilhar mais com as pessoas, encontrar pessoas também que estão a fim de trocar, criar coletivamente. O cinema me ensinou muito isso, não dá para fazer cinema sozinho.

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"Erva de Gato". Cartaz. Reprodução
“Erva de Gato”. Cartaz. Reprodução

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Veja o trailer:

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