Ney de Souza Pereira – Ney Matogrosso – é o nome que, como o próprio artista, abarca a identidade latino-americana. Reescrito com a força de quem rompeu e carrega herança familiar; de quem é único, vindo do estado do Mato Grosso do Sul, na fronteira com o Paraguai; de quem partiu do coração do continente, com suas raízes pantaneiras, para construir uma trajetória única, acompanhando as transformações políticas, sociais e culturais do país ao longo das décadas, com passagens e experiências marcantes no planalto central, na metrópole paulistana e na capital carioca.
Penas, crinas, dentes, unhas, ossos e coisas do mar são as vestimentas que revelam e ocultam, ao nosso olhar e sentir, o mistério e a divindade do artista – artesão, ator, iluminador, diretor, cantor -, intérprete que é de muitos gêneros musicais e de cantos do país. Doce e generoso, com toda a atualidade em movimento de seus 82 anos, Ney nos recebeu em seu apartamento no Rio de Janeiro. Ambiguidades homem-mulher, homem-animal, juventude-velhice, homenagens e lembranças do passado e planos futuros são dimensões que permeiam esta picante entrevista.
Fabio Maleronka: A gente queria começar com uma pergunta em homenagem à Rita Lee, pensando nela com os Mutantes e em você com os Secos & Molhados, e na saída de vocês das bandas para a carreira solo…
Ramon Nunes Mello: Vocês eram duas figuras muito importantes dentro do grupo, que saíram e tiveram carreiras muito promissoras. Você vê essa relação?
Ney Matogrosso: Vejo, sempre vi. E sempre vi uma relação muito, muito interessante com a Rita. Eu admirava muito ela e ela gostava muito de mim também. Uma vez a gente ficou em um camarim, não me lembro, acho que na MTV, que ela tinha programa lá. Ficamos os dois umas três horas dentro de um camarim, conversando, conversando e conversando. Ela me falava do desejo de morar no meio do mato, que se concretizou, né?, porque eu já tinha o meu sítio. A gente conversou muito sobre essa coisa de sair da cidade. Na verdade, não nos encontramos muitas vezes, eu e a Rita. Encontrei ela quando eu era dos Secos & Molhados. Ainda tinha os Mutantes [no início da década de 1970]. Mas a gente não se aproximou muito, não. A gente ficou se olhando mais, porque ela tinha uma história lá com João Ricardo, sabe? Mas eu ficava olhando ela assim, de longe: “Hmm, acho que tem tudo a ver”. Sempre achei que tinha tudo a ver ela comigo, eu com ela, com as histórias. E depois, eu que apresentei o Roberto de Carvalho, porque ela foi ver um show da gente em um lugar chamado Beco, em São Paulo, e o Roberto tocava comigo. Ele tocou comigo até o começo do álbum Bandido (1976). Foi Roberto quem gravou aquela guitarra de “Bandido Corazón“, foi a última coisa que ele fez comigo. Quando a Rita foi no show, a gente ainda estava fazendo Homem de Neanderthal (1975) no Beco. Ela foi assistir e me disse assim: “Você não quer jantar lá em casa amanhã?”. Eu disse: “Vou”. “Leva o músico que você quiser com você”. Ah, eu já tinha visto, tá? Já sei até qual vou levar, né? Levei, e daí pronto.
RNM: Nunca mais se separaram. E ela fez uma letra de música para você, “Vira-Lata de Raça” (1999), que dá nome a seu “livro de memórias”.
NM: Sim. É muito interessante, porque todas as minhas referências são as mesmas dela, eram as mesmas dela. Nessa música, todos os personagens que ela citou eram pessoas da minha adolescência e da dela também, Marlon Brando, James Dean. Embora eu seja mais velho que ela, eram estrelas da nossa adolescência. Eram os transgressores, que foram os que sempre gostei mais, e ela também. É muito compatível.
FM: Dizem que Rita Lee foi a rainha do rock, e acho que é um erro, Rita é a rainha do pop. Você também, não? Você consegue se comunicar com as crianças, com todo mundo, com linguagens que não são só a música.
NM: Não tem que ter rei e rainha de nada. Muitos cantores querem ocupar o lugar do Roberto Carlos, ser a contrapartida do Roberto Carlos. Nunca ansiei por isso, nunca desejei isso, nem me interessa ser rei de nada. Não é uma bobagem querer ser rei de alguma coisa?
RNM: Tanto que Rita preferia se chamar de padroeira.
NM: Sim, acho que ela é mais padroeira mesmo.
FM: Tem a sua relação com os figurinos, desde os Secos & Molhados, de utilizar adereços de teatro, colocar a grinalda; e a Rita aparecer cantando grávida e de noiva…
NM: Não era uma coisa intencional, para marcar nada. A coisa que mais me atraiu foi ela entrar de noiva grávida nos anos 1960. Aquilo era tão absolutamente fora dos padrões que eu ali na hora já disse: “É mesmo essa daí!”. E a grinalda que usei é porque eu queria colocar uma coisa na cabeça, não sabia o quê. Tinha uma grinalda de noiva, umas flores, eu disse: “Ah, eu vou botar isso porque também é uma coisa de mulher”. Eu não estava vestido de mulher, mas queria ter um objeto de mulher só para confundir, sabe? Aí botei uma grinalda de noiva. Nunca quis ser mulher, não, tá? Eu gosto de ser do sexo masculino. Mas nunca respeitei esse limite, entre um e outro.
FM: Vocês dois têm também uma relação forte com os animais…
NM: Ela tinha uma jaguatirica quando fui lá [na casa dela]. E ficou lá com o Roberto tocando piano, e a jaguatirica em cima de mim. Até aí nenhum problema. Só que a jaguatirica começou a fazer assim com os dentes na minha cabeça [Ney mostra o movimento passando a mão na cabeça]. Aí eu disse: “Olha, Rita, se sair uma gota de sangue ela vai me atacar”. Porque ela não estava me atacando, ela estava brincando comigo, mas com o dente, no meu cabelo. Aí ela tirou a jaguatirica, prendeu. Rita tinha uma jaguatirica solta na casa dela.
Renata Rocha: E ela esperou você falar, para tirar?
NM: Ela viu que eu não tinha problema com a jaguatirica. Imagina, eu estava gostando. Só que começou a fazer uma coisa que eu não tinha mais controle sobre ela. Estava no meu colo, eu ficava passando a mão nela, alisando. Era linda.
RNM: Falando também da relação que você tem no palco, desses seres, esses animais que aparecem na sua dança, na sua interpretação, no seu canto, como faunos. Como a gente vê nestas telas em sua parede, você retratado pela artista plástica grega Alkistis Michaelidou, que fez uma exposição em Atenas, com seres mitológicos… [Em 2018, a artista plástica grega Alkistis Michaelidou realizou as exposições “Ney Matogrosso: Beautiful As a Greek – The Greek Mythology Inspires a Revolutionary” e “Ney Matogrosso – A Primordial Revolutionary”, em Creta e Atenas, com obras representando a figura de Ney Matogrosso combinada com elementos da mitologia grega.]
NM: É, um centauro. Na verdade, nunca busquei nada de animal. As coisas que eu usava eram penas, crinas, dentes, unhas, ossos e coisas do mar. Muitas pessoas faziam para mim, especialmente nos Secos e Molhados, coisas que eu usava na testa. As pessoas faziam com esses elementos todos e eu adorava. Tem aquele anel de unha de onça que eu fiz, era uma unha desse tamanho; botava e ficava aquela unha aqui assim [mostra o tamanho com a mão]. Mas eu não buscava isso, no meu corpo. Isso vinha inconscientemente.
FM: Quando você gravou “Homem com H” (1981), tem alguma relação com o papel do Lima Duarte na novela, o autor coloca, depois Gonzaguinha te liga… Como foi essa história?
NM: Gonzaguinha era da mesma gravadora que eu. Eu tinha acabado de gravar a música, mas ainda não sabia se eu ia liberar para o disco. Fui lá e disse: “Gonzaguinha, ouve isso aqui, me fala o que você acha disso?”. Ele disse assim: “Porra, Ney, isso é uma tirada que só você poderia cantar e inverter todo o significado”. Eu não tinha visto dessa maneira. A minha restrição é porque era um forró, e eu achava que não sendo do Nordeste eu não poderia cantar. Não tinha entendido ainda que sou um cantor do Brasil e que, portanto, posso cantar qualquer coisa. Agora tenho essa mentalidade.
RNM: Há muito tempo, não é, Ney?
NM: É, há muito tempo, mas, naquele momento eu achava que forró poderia ser visto como oportunismo. Era muito separado. Gostei da música, eu gostava, mas achava isso: as pessoas vão dizer que estou sendo oportunista, cantando um ritmo que não faz parte do meu universo. Mas faz.
FM: Você usa o Mato Grosso no nome e se entende como artista brasileiro…
NM: Mais do que brasileiro, latino-americano. Desde o começo.
FM: Como você conseguiu olhar para esse lado latino-americano de uma forma muito ampla?
NM: Não tinha como não prestar atenção a isso, porque meu avô era argentino e minha avó, paraguaia. Eu tinha isso muito forte, sabia de onde tinha vindo. Acho uma tristeza o Brasil não prestar atenção à América Latina, só à América do Norte. Já prestou mais, nos anos 1940 e 1950 o rádio tocava música da América do Sul, da América do Norte, inglesa, francesa, mexicana. Tinha música do mundo inteiro. Minha memória do rádio brasileiro é essa. Mas os Estados Unidos se empenharam em colocar a música deles no mundo. É uma música muito interessante também, mas a nossa acontece no mundo sem empenho nenhum de governo, é respeitada no mundo.
RNM: O que norteia você na escolha do seu repertório?
NM: O que me norteia é eu pensar assim: se fosse compositor, você falaria isso? É onde eu decido se eu vou cantar ou não a música.
RNM: Você abre espaço para muitos compositores e cantores.
NM: Sim, eu estava contando, acho que tenho seis músicas gravadas que não saíram ainda, com gente nova. Gosto de fazer isso. Não é por favor, eu não faço favor. Faço porque gosto.
FM: “O Vira” (1973) pega também essa questão de ter uma tirada com os sentidos da letra?
NM: “O Vira” não tinha nenhuma conotação sexual, as pessoas é que começaram a colocar uma coisa onde não existia. A Luhli fez uma música infantil. Ela quis fazer “O Vira” porque João [Ricardo] era português, era uma homenagem, e fez “O Vira” com aquela letra. Aquilo tudo fazia parte do imaginário da Luhli, ela era toda voltada para essas coisas. Ela acreditava nessas coisas, nessa comunicação, e eu acredito também. Não vou acreditar? Como é que não vou acreditar nisso?
FM: Nessa provocação da conotação sexual, você já falou em algumas entrevistas sobre usar “fodia pra ser feliz” em “Pro Dia Nascer Feliz” (1984)…
NM: Ah, isso era escracho, deboche. Eu só cantava isso quando o Cazuza estava, só quando ele estava presente. Ele rolava de rir. Uma vez vi uma cena hilária demais do Cazuza. Ele bebia muito, ia nos lugares, ia ficando bêbado, ia ficando bêbado. Era um show da Gal Costa num teatro que tinha aqui no Leblon. Teatro Casagrande? Não, era um lugar grande [o Scala Rio], do mesmo dono que era dono de um monte de coisa, um espanhol. Tá, show da Gal, e Cazuza lá, eu em uma mesa, ele em uma outra colada na minha, e eu vendo ele bebendo, ele bebendo, ele bebendo. Quando o show acabou e está todo mundo de pé aplaudindo, olhei para o lado e Cazuza estava com o pau de fora, batendo com o pau na mesa, aplaudindo com o pau. Tive um acesso de riso, nunca tinha visto uma coisa tão irreverente. Ele era muito engraçado.
FM: Fala um pouco da Gal, do que ela representa, nessa partida?
NM: Quando cheguei, ela já estava no panorama. Eu era aquele que comprava todos os discos dela. Eu adorava aquele primeiro disco em que ela virou roqueira. Até então era MPB, mas ela começou a gritar, tinha muita influência de Janis Joplin naquele momento. Adorei aquele disco, muito. Depois, quando virei cantor, nos aproximamos e estivemos juntos em vários lugares, e era muito agradável estar com Gal. Era uma pessoa muito divertida, acho que as pessoas não sabem disso, Gal tinha um humor, e Gal gostava de falar sacanagem. A gente sentava e ficava falando putaria. Ela adorava, ria muito, e chegava perto de mim e já puxava um assunto. Por isso acho que a namorada dela sempre me vetou. Gal me disse que duas vezes quis que eu dirigisse o show dela. Eu disse: “Não, uma vez”. E ela: “Não, duas”. Essa segunda vez eu nem soube… Porque quando a gente se juntava, Gal ficava muito acesa. Eu estimulava uma coisa nela, acho que [a companheira e empresária] ficou com medo de deixar eu me aproximar muito.
RR: Você falou do uso das penas, das crinas, isso tem uma relação com seu início de fazer os artesanatos, os cenários, os adereços?
NM: É que eu fazia artesanato, muita coisa para vender, e usava esses materiais todos. Mas depois já era uma outra coisa. Não era mais um adereço, era para me transformar em um personagem. Eu me lembro que tem uma gravação, não sei se é de “O Vira” ou de “Sangue Latino” (1973), em que estou cheio de penas enfiadas no cabelo. Meu cabelo era preso, eu usava feito um rabo de cavalo. E meu cabelo todo cheio de pena enfiada, eu não queria ser humano, queria ser uma coisa híbrida, gostaria que me vissem como algo híbrido. O lado animal sempre usei dessa maneira, para me tirar do humano completamente. Não completamente, mas confundir um pouco mais.
FM: E sua ligação com o teatro, no Ruth Escobar, depois no Teatro Oficina com Zé Celso Martinez Corrêa? Essa relação com o personagem, com a transformação, você se sentia livre quando estava maquiado?
NM: Sim, eu ouvia dizer que artista não podia andar na rua. Já tinha 31 anos. Perder o direito de andar na rua para mim ia ser um sofrimento. Andava muito pela Liberdade [em São Paulo] e via muita foto do teatro Kabuki ali no bairro japonês. Achei interessante, eu disse: “Olha só, é possível, sim, eu ser um artista e ninguém encher meu saco, ninguém me impedir de andar na rua”. Eu tinha visto uma cena com Roberto Carlos que me deixou muito chocado. Uma vez nós fomos no aeroporto, eu e Luhli, com uma amiga dela que era americana, que ia viajar. E essa americana era muito amiga do Roberto também. Nós estávamos no Galeão, parados, nos despedindo dela, e um grupo de pessoas descobriu Roberto Carlos. Vieram correndo, na direção dele, que pensei: vão jogar ele no chão. Se uma pessoa batesse com força nele, ele caía. Quando vi aquilo eu disse: “Meu Deus, eu não quero essa vida para mim, não quero multidão correndo atrás de mim, gritando e ameaçando”. É a integridade física da pessoa, né? Então, quando vi essas fotos na Liberdade, me deram essa luz. E se eu talvez pintasse o rosto todo? Não copiei o Kabuki, porque o Kabuki é todo colorido. Usei apenas o branco e preto, e aquele rosto variava, aquela maquiagem variava muito. Não era sempre o mesmo.
FM: Você diz que, quando foi fazer televisão, os diretores falaram que você não podia olhar para a câmera, mas você olhava, e isso te dava uma liberdade.
NM: Isso foi a primeira vez que nós fomos fazer o Fantástico. Tinha um ensaio antes e, na hora que entramos para fazer, uma voz disse assim, eu não sei nem quem era: “É proibido olhar para as câmeras”. Eu disse: “Mas eu vou olhar”. Por que não olhar para a câmera? Eu me interessava em me comunicar com quem estivesse em casa assistindo, não é isso? Você podia ser visto, mas você não podia se comunicar. Ah, mas eu vou olhar. Aí, fizeram um comentário bem escroto ao meu respeito. Olhei, e nunca deixei de olhar. Nunca deixei de olhar.
RNM: Eles tinham receio daquele olhar, da comunicação…
NM: É, da comunicação com quem está em casa, que era o que eu queria. E eles, não, não podia… Quem estava se apresentando na televisão não podia ter essa comunicação. Olha o grau da loucura.
RR: E nessa época você estava muito presente na televisão, não?
NM: Sim, sim. Mas eu sempre olhei, em todas as televisões que fui eu olhei.
RR: Nessas transgressões, fiquei pensando também em quando você canta “Barco Negro” (1975), não muda o eu-lírico e canta no feminino. Isso foi uma decisão?
NM: Isso deixou um crítico com ódio. Eu conheci a música quando estudava em um ginásio aqui no Rio de Janeiro. Morava em Padre Miguel e pegava um trem todo dia para ir para Campo Grande. O colégio era lá, um colégio muito bom. E tinha lá um cinema enorme, os cinemas todos eram enormes, em todo canto. E tinha um porteiro que deixava os adolescentes assistirem filmes proibidos. E lá eu vi Martine Carol nua, vi muitas. Vi um filme chamado Amantes do Tédio em que aparecia em um determinado momento a portuguesa, Amália Rodrigues, cantando “Barco Negro”. Aquela música entrou na minha cabeça naquela hora. Era uma coisa tão forte, tudo aquilo que ela dizia. Passaram-se os anos, fui fazer meu primeiro disco solo, nem me lembrava mais do “Barco Negro”. Mas um amigo me disse: “Ney, tem umas músicas interessantes da Amália Rodrigues aqui”. Quando vi estava “Barco Negro”. Porra, é a hora, é a hora. Nem pensei que era no feminino. Disse: “Vou cantar no feminino”. Porque não tinha cabimento, não podia cantar aquilo se não fosse no feminino. Uma criatura falando que o marido tinha ido para o mar e que as mulheres da praia diziam que não ia voltar, e ela dizia: “Vocês são loucas”. Só podia ser no feminino, e cantei no feminino. E o cara que escreveu esculhambou o disco inteiro, você sabe que ele tirou a crítica dele da internet, né?
RNM: Quem é? José Ramos Tinhorão?
NM: Sim, sim. Ele dizia que o disco era uma merda – ele não falou merda, mas que eu tinha escolhido a pior música do Milton Nascimento. Cantei “Bodas”, do Milton Nascimento. Era uma coisa, uma música de protesto. E escreveu que eu cantava um fado onde eu chorava igual uma rameira. Falei várias vezes, fiz questão de falar isso em toda entrevista que eu dava. No fim da vida, ele foi lá e tirou. Tem uma coisa dele toda lá, todas as críticas estavam lá.
RNM: Ele não é superconservador?
NM: Sim, ele que seja conservador, mas não pode falar isso de mim. Como é que vai me falar uma coisa dessa porque eu canto uma música no feminino? Na minha cabeça, aquela mulher chorava, acabava assim, debruçada sobre o mar, chorando. E foi o que eu fiz. Quando fomos gravar o clipe, fiz isso também. O clipe é lindo e acaba assim, eu debruçado sobre o mar, chorando. Porque homem não chorava, né? Também tinha isso, essa mentalidade.
RNM: E o homem não pode dar uma voz feminina…
NM: Isso da voz eu já tinha entregue para Deus. Todos tinham entregue para Deus, não vai mudar minha voz, eu não forcei. Como uma rameira, o que é isso? Uma puta? Sabe? Mas falei tanto que ele tirou.
RNM: Tem uma história da Rita Lee, que ligou para o crítico, quando ele falou mal de um show dela….
NM: Eu vi gente que tirava show de cartaz, como era o nome daquela mulher? Tirou Zezé Motta de cartaz do Teatro Ipanema. A mulher falou tão mal, como era o nome dela? Barbara Heliodora? Era uma que fazia crítica de música, Maria Helena Dutra? Ela tirava show de cartaz…
RR: Era censura militar de um lado, censura conservadora de outro. E da própria mídia também, não?
NM: É, tinha. Fiquei dois anos sem meu nome ser publicado no Jornal do Brasil porque eles não publicavam nome de travesti. Mas onde que eu sou uma travesti? Eu nunca fui uma travesti, nunca. Sempre gostei de ser do sexo masculino. Mas eu não ia me submeter a essas bobagens, de que homem vai até aqui, daqui para lá não é mais homem. Isso é bobagem.
FM: Queria que você falasse sobre a música “Sorte“, que tem uma energia diferente.
NM: Conheço [o compositor] Ronaldo Bastos, conheci a gravação da Gal Costa (1985), que era linda. E há poucos anos atrás me pediram para cantar “Sorte”, não lembro nem para o que era. Acho linda a música, bom astral. Faço um show com Leandro Braga, só voz e piano, e encerro com essa música, com “Sorte”. É muito positiva, muito otimista. Gosto de tudo que Ronaldo fez para Gal, das versões. Ele fez várias, “Chuva de Prata” (1984)…
RR: E você pode contar um pouco sobre as cidades em que morou, as passagens por elas e marcos na sua trajetória de artista? Em Brasília no começo, no Rio de Janeiro, em São Paulo, se abrem novos caminhos… Como foram essas passagens?
NM: Brasília foi o lugar onde eu me aproximei de tudo que me interessava em termos artísticos. Quando cheguei em Brasília e era dono do meu nariz, fui em todas as coisas que meu pai proibiu. Fiz curso de teatro, uma peça de teatro, cantava em coral. Foi ali que tudo começou. Era 1961, Brasília não estava nem pronta. Quando pedi uma licença remunerada do hospital em que trabalhava, em 1966, fui para São Paulo. Fiquei dois anos, depois voltei, trabalhei mais dois anos, trabalhei até 1970, pedi outra licença sem remuneração. Quando eu tinha que voltar, já estava envolvido com os Secos & Molhados. Aí fiquei nesse dilema, volto para Brasília para continuar sendo funcionário público ou largo tudo para trás e vou me meter com a música? Fui lá e pedi demissão. Eles disseram: “Nossa, você é louco. Você tem oito anos de trabalho, vai largar sua aposentadoria?”. Eu disse: “Que aposentadoria, gente? Tenho 22 anos, vou pensar em aposentadoria?”.
RR: Eu queria perguntar também sobre os espaços pelos quais você já passou, o Teatro Ruth Escobar, os shows nos teatros e nas casas de música, nos estádios também, na penitenciária, no morro do Vidigal.
NM: Nunca tive problema com relação aos espaços que as pessoas tinham. Quando me chamaram para cantar no presídio, foi porque estava havendo um festival de música deles, e o que me chegou foi o seguinte: que tinham feito lá dentro uma enquete para escolherem um artista que convidariam, e eles me escolheram, não sei por quê. E eu fui, e adorei a experiência. Teve um cara da revista Veja que falou absurdos, tudo mentira, que saí de lá mostrando marcas roxas pelo corpo, que eles tinham me beliscado. Gente, esse homem é doente da cabeça, porque não aconteceu absolutamente nada. Só me trataram muito bem. Quando cheguei no presídio, achei que ia ficar em um lugar especial, reservado. Nada. Botaram meu camarim no meio dos presos. Toda hora batiam na porta, um preso querendo entrar, querendo falar comigo. Eu disse: “Deixa logo a porta aberta, que assim quem quiser falar comigo fala”. Mas tudo tão natural, tão leve, e eles começaram a fumar maconha dentro do camarim. Eu disse: “Olha, isso não. Vocês façam isso da porta para fora. Daqui a pouquinho vão dizer que sou eu que estou fumando, e não sou eu que estou fumando, então eu não quero levar fama sem proveito”. Respeitaram, ficaram do lado de fora da porta, todos fumando. Lá dentro era tudo liberado. Era o Presídio Lemos de Brito, que não existe mais, né? Entendi que isso era normal lá dentro, que era tudo liberado mesmo. Mas o máximo que aconteceu foi isso. Para mim não foi um problema. Depois vi uma entrevista que fizeram com os presos nesse dia, as pessoas muito felizes. Um deles disse uma coisa assim: “Nós estamos presos aqui, mas a nossa cabeça é livre”. Tem uma restrição, mas a cabeça está livre. Achei muito interessante o cara falar uma coisa dessa. Estreei o show Bandido no Presídio Lemos de Brito. Antes de ir para o teatro, fiz no presídio.
RR: Como eram as escolhas dos tamanhos de público, de sala?
NM: Não tinha escolha. O Beco era uma coisinha assim, o próprio nome já dizia. Cantei para 60 pessoas e não tem problema. Tinha lugares assim, um hotel em São Paulo, o Baretto, cabiam 80 pessoas. Fiz uma temporada lá. Já cantei para milhares de pessoas e já cantei para 60, e está tudo certo, faço igual. Não muda. Não me entrego menos por ser menos gente.
FM: Como você vê a canja musical, suas entradas em show dos outros, ou a entrada de outros em shows seus?
NM: Raramente eu faço isso. Entrei em um da Rita Lee no Canecão porque ela me chamou e eu não tinha como dizer não. Eu estava lá assistindo e ela disse: “Ney, vem para cá”. Eu disse “ai, meu pai”, mas fui. Cantei “Bandido Corazón” com ela, porque ela tinha me dado. Depois do Homem de Neanderthal [Ney se refere a seu primeiro disco solo, Água do Céu – Pássaro, de 1975, que começa com a faixa “Homem de Neanderthal”], Bandido foi o disco em que virei gente, deixei de ser bicho. Rita me deu “Bandido Corazón” e a guitarra quem gravou foi Roberto [de Carvalho]. Foi a última coisa que ele fez comigo. Mas nos meus shows não tem [canja de outros artistas], só em pouquíssimas ocasiões me pediram que botasse alguém. Porque meu show é tão amarrado, tem um começo, um meio e um fim. Se qualquer pessoa entrar ali corta, então não tenho o hábito de botar pessoas cantando comigo no meu show. Canto com outras pessoas, como agora cantei com Criolo. Adoro fazer essas participações. Gosto porque não vou com toda a minha banda, vou com um músico da minha banda, dois no máximo, e mistura. Aí já não é mais o som do Criolo nem é o meu. Gosto de gravar com outras pessoas.
RR: E a direção de shows de outros artistas?
NM: Já fiz muitas, mas faz tempo que não faço. Preciso ter um tempo livre, de poder ensaiar, estar junto na primeira semana depois da estreia, e não tenho tido esse tempo mais. Quando dirijo acompanho a primeira semana, porque é a hora em que você vai vendo a coisa acontecendo, se precisar mexer…
FM: Como é a comunicação que você estabelece com as crianças, desde “São Francisco”, da Arca de Noé (1980)?
NM: Para mim é ótimo. Imagina, quando vejo que alguma coisa que faço se refere ao universo infantil e vejo as crianças gostarem daquilo, beleza. Já pensei em fazer um show para criança, mas nunca realizei. Pode ser que ainda dê, pegar um repertório voltado para isso. Mas, não é tatibitati, não. Eu fazia peça infantil, sempre respeitei o entendimento delas, sempre fiz como se fosse para adulto. Alguns anos atrás comecei a selecionar o repertório para isso, mas não levei adiante.
FM: Quais shows de estreia lhe marcaram, nos Secos & Molhados e em outras estreias solo?
NM: Todos me marcaram, porque em todos eu estava ali totalmente empenhado. O primeiro dia é sempre um nervoso. Tudo pode acontecer, cair um refletor em cima de você, qualquer coisa. Então, sempre é uma coisa, assim, que minha mão sua demais, sabe? Quando pego no microfone, minha mão está correndo suor pelo cotovelo. Depois passa. É só nos primeiros dias mesmo. Tem uma repercussão, e você fica ligado na repercussão daquilo, porque interessa saber de que maneira foi. É tudo muito parecido sempre, até hoje.
FM: Por quê?
NM: Eu ensaio à exaustão, um mês, todo dia, quatro horas por dia. É muita coisa. Então chego com uma margem, não de segurança, mas de conhecimento do que vou fazer. Mas sempre tem a pira, sabe? Acho que isso nunca vai acabar isso, sempre será. Acho bom ter isso, porque nunca entrei assim, está tudo dominado. Não, não tem nada dominado.
RNM: Você não fica em cartaz, fica?
NM: Não se fica em cartaz mais, né? Eu ficava. Antigamente todo mundo cantava de terça a domingo, só tinha a segunda de folga. Era pesado. E todo mundo fazia. Não faço mais. Uma única vez fiz dois shows seguidos no mesmo dia, foi com os Secos & Molhados, e disse: não quero mais fazer isso. No segundo você já não tem o gás que tem no primeiro. Duas sessões no mesmo dia não faço mais.
RNM: Quando está em turnê, você já vai gestando seu próximo trabalho?
NM: Às vezes sim, às vezes, não. Às vezes, o acaso também interfere, me leva para outro caminho e não acho que posso abrir mão do que eu estou fazendo. Aí fico fazendo dois shows, como já fiz, duas bandas, todo mundo descansava. No comecinho do show de Cartola foi assim, estava fazendo um show com a Aquarela Carioca, iam lançar aquele livro de fotos do Luiz Fernando Borges da Fonseca, e eu tinha um acerto com a editora de que faria um show. Eles primeiro me pediram para botar um disco no livro, queriam botar O Cair da Tarde (1997). Eu disse: “Não, não quero botar um disco que já está pronto, quero fazer um”. Já tinha cantado Cartola com Raphael Rabello, decidi fazer um disco inteiro de Cartola. Fiz aquele primeiro CDzinho com poucas músicas, dez ou onze. Tinha o compromisso de apresentar isso nas quatro cidades em que o livro seria lançado, um pocketzinho. Quando acabou o último show, em Brasília, já tinha uma proposta para voltar, para fazer num teatro.
RNM: Aí foi mantendo…
NM: Sim, no final tive que aumentar o show do Cartola e gravei um disco. Foi virando muito mais do que era, um repertório muito maior, fui aumentando e fiquei com duas bandas. Com uma fazia Cartola, com outra fazia As Aparências Enganam.
RNM: Como você lida com seu presente, em relação com o passado de tantas histórias significativas, na história da música?
NM: Não sei, porque ainda estou em movimento. Não paro muito para pensar nisso porque ainda estou fazendo. Ainda pretendo fazer, enquanto estiver vivo. Enquanto estiver vivo, eu vou fazer.
RNM: Tem alguma coisa que você quer fazer e ainda não fez?
NM: Não, não… Eu quero fazer mais cinema. Vou fazer outro filme da Ana Carolina. Não preencho ficha dizendo que sou cantor. Boto lá “artista”, para eu ser livre para fazer todas as coisas que me interessarem e que eu possa e entenda que possa fazer. Tem coisas em que não vou me meter, mas, se achar que posso, eu faço. Cinema me interessa muito. Porque eu queria teatro, queria ser ator, mas teatro me ocupa tanto quanto música. Cinema, não, você vai ali, em dez dias faz sua parte e vai embora, está liberado. Teatro tem a temporada, isso tudo que tem com a música também.
(Colaboraram Maria José Motta Gouvêa e Sônia Barreto.)
Fabio Maleronka Ferron Foi coordenador do Circuito Municipal de Cultura de São Paulo e curador da Virada Cultural em 2014 e 2015. Integrou o Conselho Gestor do Auditório Ibirapuera (2013-2016) e o Conselho de Administração da Spcine (2015-2017). É doutor pela USP, organizador e co-autor do livro Depois da Última Sessão de Cinema – Spcine, Audiovisual e Democracia.
Renata Rocha é arquiteta urbanista graduada pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e mestre em administração pública e governo pela FGV-SP. Publicou diversos artigos, capítulos de livros, estudos e pesquisas acadêmicas.
Ramon Nunes Mello é poeta, escritor, jornalista e ativista dos direitos humanos. Mestre em Poesia Brasileira pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, é autor dos livros Vinis Mofados, Poemas Tirados de Notícias de Jornal, Há um Mar no Fundo de Cada Sonho e A Menina Que Queria Ser Árvore e Organizador do livro Vira-Lata de Raça – Memórias (2018), de Ney Matogrosso, publicado pela Editora Tordesilhas.
Ele gostar de ser homem eu não acredito não,mas a entrevista é muito boa,pena que os gays preferem viver de mentira e ilusão.