A voz do morto sussurra

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Não sabemos bem qual é, mas deve haver um fio narrativo unindo as obras do cineasta carioca Eduardo Ades, que coloca em cartaz agora seu segundo documentário em longa-metragem, Torquato Neto – Todas as Horas do Fim, dirigido em dupla com o produtor musical também carioca Marcus Fernando. O primeiro filme foi Crônica da Demolição (2015), sobre a ascensão e queda do mitológico Palácio Monroe, no centro do Rio de Janeiro. O terceiro, já filmado e em processo de montagem, proseará sobre o desastre ambiental provocado pela Samarco (etc.) nas Minas Gerais.

Por ora, imerso em momento histórico que apresenta mais armas de destruição que de construção, Eduardo fala sobre a ascensão e queda, a demolição, a implosão, a ruptura de barragem, o suicídio do poeta piauiense Torquato Neto (1944-1972), cujo bebê mais garboso e espetaculoso (a tropicália) completa 50 anos por estes tempos. (Leia resenha sobre Todas as Horas do Fim na edição 994 da revista CartaCapital, nas bancas e plataformas digitais a partir de sexta-feira 9 de março.)

Torquato Neto (1944-1972) - foto João Rodolfo do Prado/Divulgação
Torquato Neto (1944-1972) – foto João Rodolfo do Prado/Divulgação

Pedro Alexandre Sanches: Pode contar um pouco sobre sua trajetória no cinema até aqui?

Eduardo Ades: Já tinha produzido alguns curtas, e, na minha produtora (Imagem-Tempo, criada há 14 anos), meu primeiro filme como diretor foi A Dama do Estácio, uma homenagem a A Falecida (peça teatral de Nelson Rodrigues), com música de Noel Rosa e com Fernanda MontenegroNelson Xavier Joel Barcellos. E o primeiro longa-metragem como diretor foi Crônica da Demolição (2015). Também produzi Yorimatã (2016, documentário de Rafael Saar sobre as compositoras e cantoras Luhli Lucina) e Morro dos Prazeres (2013, documentário de Maria Augusta Ramos, também diretora do novo O Processo, sobre a deposição da presidenta Dilma Rousseff).

PAS: Você tem uma ligação especial com música, ou é impressão.

EA: Eu tenho. Não sei, na verdade a ideia de fazer A Dama do Estácio veio de uma música, “O X do Problema” (1936), do Noel. Aquela música me remetia à A Falecida. Comecei a juntar as coisas, as referências, e escrevi aquele roteiro.

PAS: A Dama do Estácio remete também à Aracy de Almeida (que na realidade era dita “a dama do Encantado”), não?

EA: Isso, a interpretação da música é dela. A gente bota a versão dela cantando. Está no YouTube, esse a gente liberou.

PAS: Qual é a participação do codiretor de Todas as Horas do Fim, Marcus Fernando?

EA: A gente é diretor junto, igual. Na verdade a ideia surgiu do Marcus, foi ele que se interessou por fazer um filme sobre Torquato Neto. Quando ele me trouxe a ideia me interessei de cara, porque era um nome que eu conhecia de músicas que admirava muito, só que eu não sabia nada sobre esse cara. Sabia de algumas informações esparsas. Participou da tropicália. Aquela música “Pra Dizer Adeus” que não é tropicália é dele também (em parceria com Edu Lobo, que a entregou a Elis Regina em 1966 e simultaneamente a gravou em dupla com Maria Bethânia). “Go Back” (1988) dos Titãs, “Let’s Play That” (1972) do Jards Macalé, tinha letras muito poderosas.

É a história de um suicídio muito precoce, com 28 anos. Quem foi esse cara? Foi aos poucos, fazendo o filme que fui conhecer um pouco mais do que ele tinha feito. Acho que isso é mais ou menos o que a maior parte dos espectadores do filme conhece do Torquato. É um nome que aparece em vários lugares, a gente já ouviu Caetano Veloso citar, Gilberto Gil citar, alguém mais citar. A gente conhece o nome na capa do disco, mas não sabe mais profundamente o que ele fez, quem ele foi. Eu também era um pouco essa pessoa que me interessava em conhecer mais.

Na capa do disco-manifesto Tropicália ou Panis et Circencis (1968), Torquato é o James Dean à direita de Gal Costa
Na capa do disco-manifesto Tropicália ou Panis et Circencis (1968), Torquato é o James Dean à direita de Gal Costa

PAS: Quer dizer, você foi atrás para você próprio se aprofundar no personagem?

EA: Foi, o interesse era esse, de conhecer, achar que esse cara realmente deve valer conhecer. Porque o que aparecia dele para mim era sempre muito interessante, então certamente não vai dar um filme ruim.

PAS: Voltando atrás um minuto, e o Palácio Monroe? Por que virou seu primeiro tema para um longa-metragem?

EA: Também não foi uma ideia minha, foi uma ideia de um amigo meu, José Eduardo Limongi, que é o diretor de fotografia do filme. Tem até um pouco a ver com o Torquato, é uma história mítica que não se conhece muito bem, um monte de gente fala um monte de coisa, tem uma certa aura. Para a população carioca, o Palácio Monroe faz parte das mitologias da cidade. Eu sou carioca, mas o José Eduardo é paulista, mora aqui no Rio há muitos anos, e só foi encontrar essa história e ouvir falar dela já mais velho. Ele não se relacionou com isso como um mito, mas como uma história que estava mal contada.

Ele não se conformou com as hipóteses todas que botavam na internet, os boatos, achou que tinha um assunto ali. Tem um monte de boatos, um monte de hipóteses, e vai ficar por isso mesmo? Ninguém até hoje sabe por que demoliram? E aí ele ter ficado instigado com isso também me instigou a procurar saber mais sobre a história do palhaço.

PAS: É muito legal que você acaba de fazer um paralelo entre o Palácio Monroe e o Torquato Neto. Na sua cabeça existe esse paralelo então?

EA: (Ri.) Não, acho que foi uma coisa casual, que pensei agora.

PAS: Mas faz todo sentido, você sabe. Você está investigando figuras e histórias sobre as quais existem boatos e versões.

EA: É, e de alguma forma são coisas… Coisas não, pessoas, uma pessoa e um…

PAS: Um edifício.

EA: …Um monumento, que representam muitas coisas e foram extintos, um pela morte, outro pela demolição, num mesmo período. Acabam remetendo até mesmo à mesma época.

PAS: E isso diz respeito à você de alguma maneira? Cruza com a sua vida?

EA: (Silêncio.) Não. Inclusive nem foi uma época que vivi.

PAS: Quantos anos você tem?

EA: Tenho 36 anos. (Silêncio.) Não sei, não sei dizer. Acho que essas questões da morte e das destruições… Isso eu já tinha percebido que os dois filmes trazem muito em comum. É até uma fala que tem no final de Crônica da Demolição: construir e destruir faz parte da natureza humana. A gente também é feito disso.

PAS: É uma frase que Gil usa de outra maneira no filme… (Gil foi parceiro de Torquato em canções como “Minha Senhora” e “Vento de Maio” – essa lançada por Wilson Simonal , de 1966, “Rancho da Rosa Encarnada” – também assinada por Geraldo Vandré -, “Louvação”, “Zabelê”, de 1967,  “Domingou”, “Marginália II”, “Geleia Geral” e “A Coisa Mais Linda Que Existe”, de 1968. O ex-parceiro aparece em Todas as Horas do Fim explicando o afastamento entre ambos como fato “natural” da “vida que constrói e destrói”.)

EA: Pois é, o Gil usa isso, e a gente perseguiu também essa noção no Torquato. A gente percebeu quanto a morte era um dos sentimentos mais vitais da vida dele. No Torquato não há contradição entre vida e morte. Não é assim, “a morte é o fim da vida”, não, a morte faz parte da vida o tempo inteiro. A postura dele de transgressão é posta nessas mortes. Transgredir é também querer matar certas coisas, seja a norma convencional ou seja a si próprio. Ele está sempre se transgredindo, vamos jogar fora o que estávamos fazendoantes e agora vamos nos dedicar a outra coisa. A gente já tinha percebido que essa fala da Crônica da Demolição ecoava também no Torquato.

PAS: Não sou nada especialista em cinema, mas queria conversar um pouco sobre linguagem cinematográfica. Acho que também dá para fazer um paralelo com Torquato, vocês usam uma linguagem que me pareceu original, na forma de usar os depoimentos presentes. Por que é assim?

EA: Não foi uma coisa pré-concebida. Foi algo que foi surgindo ao longo do processo. A gente tinha feito as entrevistas de um jeito mais clássico, os entrevistados falando para a câmera. E na montagem do filme, em determinado momento, a gente percebeu que esses personagens estavam roubando muito a atenção do Torquato. A gente estava querendo chegar mais, achava que o Torquato tinha que aparecer mais. A gente tinha que sentir o torquato, e não estava sentindo. Percebemos que queríamos o Torquato protagonista, não o Torquato assunto. É uma opção que vem desde o princípio do projeto, não vamos entrevistar nenhum especialista, pessoas que não conheceram ele. Então isso já era uma coisa que a gente perseguia, e na montagem, mesmo que estivéssemos só com entrevistas de pessoas que conheceram e podiam falar do Torquato em primeira pessoa, mesmo assim ele ainda estava um pouco assunto. E aí percebemos que a força das entrevistas, com as pessoas podendo falar e olhando para a câmera, roubava a atenção do Torquato. Especialmente Caetano, Gil, Tom Zé, que têm uma presença muito forte. Os caras aparecem e você fica ligado no que eles estão falando, na cara deles, na expressão deles. Então optamos em deixar esses caras coadjuvantes, se Torquato não aparece falando para a câmera, se esse material não existe, as outras pessoas são coadjuvantes do filme dele, então elas também não podem aparecer dessa forma. E aí optamos por manter a fala deles, mas tirar toda a imagem dessas entrevistas e recriá-las, reimaginá-las, criar outra imagem para elas, a partir de referências visuais do Torquato. Ele era muito ligado em cinema, então são as imagens do cinema novo, do cinema marginal, imagens que povoavam o imaginário da época, especialmente para o Torquato, que era fissurado em cinema e estava muito ligado no que estava acontecendo.

PAS: Mas, somando a isso que você está explicando, ao mesmo tempo que trazem Torquato para o presente com os textos dele, vocês envelhecem as imagens dos caras que ainda estão vivos. Vocês não só tornam eles coadjuvantes do filme como levam eles para o passado, de alguma maneira. Por que envelhecer as imagens deles?

EA: É, na verdade isso a gente já tinha feito também na filmagem. Fizemos a filmagem com 5K, uma coisa linda, mas a gente sabia que ia dar um choque essa imagem digital de hoje, com ultrarresolução, e a imagem dos filmes da época. Então levamos para as filmagens uma câmera de super 8, e fazíamos planos da entrevista com essa câmera, para poder suavizar essa diferença. Esses planinhos iam servir como inserts, para jogar um pouco os dias de hoje com a estética da época, que era muito utilizada – Torquato era fissurado no formato super 8. E no final acabou que só o que sobrou foi esse super 8, a gente tirou toda a imagem digital que fez deles e manteve só o super 8, que é a estética daquele período.

PAS: Quer dizer que vai ficar inédito o material de imagem deles falando e dando os depoimentos hoje?

EA: É, isso. A gente apresenta rapidamente cada um com o planinho de super 8. E abre a compreensão também para o imaginário daquele período, abre nossa percepção. O filme fica um pouco mais sensorial. Ele instiga mais a imaginação, né?

PAS: Um momento de choque para mim no filme é a aparição do Moreira Franco como amigo de infância do Torquato. Ele, com aquela imagem envelhecida, dá um curto-circuito total. Como foi botar o “Gato Angorá” no filme?

EA: (Ri.) Pois é. Isso foi uma coisa que a gente descobriu na pesquisa, que o Torquato e o Moreira Franco eram amigos de infância. E eram mesmo, o Torquato tem até um poema que cita lá “Wellington Moreira Franco, meu primeiro amigo”. Eles também tinham essa parceria, eram muito próximos, muito próximos. E acaba que o Moreira tanto traz uma informação sobre a infância dos dois, como cria esse choque, de você pensar como é que a vida encaminhou esses dois amigos de rua, vizinhos de rua, para destinos tão diferentes. É até uma frase acho que do Paulo Leminski, não sei se vou citar corretamente agora, olha as formas que a vida pode tomar. São formas de vida muito radicalmente opostas que saem de uma parceria tão estreita na infância.

PAS: Comentei isso com o amigo jornalista Jotabê Medeiros, ele também levou um susto e falou: “Mas Moreira Franco é carioca”. Fui checar, o cara nasceu no Piauí mesmo, a gente nem estava ligado.

EA: (Ri.) Pois é, ele acabou sendo governador do Rio.

PAS: É uma figura central da política do Rio, com intervenção militar e tudo. Traz uma atualidade muito grande para o filme.

EA: Exatamente.

PAS: Gostei imensamente do filme, mas escrevi um texto para a CartaCapital em que faço duas ressalvas ao filme, espero que respeitosas. A primeira é que a participação feminina no filme é pequena. Tem aquela madrinha, tem uma fala da (viúvaAna Duarte, mas em geral são os homens falando do Torquato. Não tem Gal CostaRita Lee, sei lá mais quem poderia aparecer. O filme não ficou muito centrado no mundo masculino talvez? Qual era o lado feminino do Torquato?

EA: Sim, é, Zé Celso Martinez Corrêa disse “Torquato também era mulher, esse filme também é mulher”. Não, mas realmente isso acontece…

PAS: É lindo o momento em que Gal aparece cantando “Mamãe Coragem” (uma das três parcerias Torquato-Caetano em 1968, além de “Deus Vos Salve Esta Casa Santa”, gravada por Nara Leão, e “Ai de Mim, Copacabana”), mas vocês tentaram falar com ela?

EA: Houve problemas de agendas com algumas pessoas. Muitas entrevistas, inclusive de parceiros importantes, também não entraram na hora da montagem. Não tem o Jards, por exemplo, mas ele aparece em três músicas, abrindo e fechando o filme, tocando com a Gal. A Gal aparece cantando, mas não tem ela falando, por problema de agenda. Mas, de qualquer forma, era também um mundo que era muito masculino. Os principais parceiros e amigos dele eram homens. É uma coisa que tem um limite, onde a gente consegue escapar disso dentro da temática?

PAS: Mas houve uma seleção de quem foi ouvido ou não, ou foi questão circunstancial? Macalé e Gal não falaram porque vocês não quiseram ou porque não deu?

EA: É, não deu. Na verdade o Macalé falou, a gente conseguiu gravar com ele. A Gal a gente não conseguiu.

PAS: Se entrasse todo mundo daria um filme de quatro horas?

EA: Mais da metade das entrevistas que a gente fez a gente não conseguiu incluir no filme…

PAS: É mesmo? Isso vai ficar inédito?

EA: Não sei, acho que não, né? O pessoal da televisão (o Canal Brasil é coprodutor do documentário) falou em fazer alguma coisa com o material, porque tem tanto…

PAS: Outra sensação que o filme me passa é que tem muita declaração inédita, muita surpresa. Isso vale também para o que vocês escolhem destacar da dele próprio (no filme poemas e textos de Torquato são interpretados com talento pelo ator Jesuíta Barbosa), coisas que eu nunca tinha ouvido ou estava esquecido. Que frases dele e que participantes da vida dele colocar são opções de vocês também…

EA: Isso tem muito a ver com a linha narrativa que a gente propõe. A gente acaba não fazendo uma biografia num sentido mais estrito, não estamos querendo narrar uma sucessão de fatos. O objetivo principal é criar um personagem forte. E a gente percebeu que o que nos interessava mais nesse personagem era a relação dele com a morte, uma relação vital com a morte. E aí a seleção de textos é um pouco em função disso. Na verdade veio dele isso, o que mais me marcou na produção dele – que é gigantesca, tem aqueles dois volumes organizados pelo Paulo Roberto PiresTorquatália. A gente foi percebendo como a produção dele é intensa, grande e marcada pela presença da questão da morte. A gente percebeu que realmente isso batia muito fundo nele, não só pelo fato simplesmente de ele ter se suicidado. Ele ter feito tantas revoluções é uma pulsão de morte. A gente organiza o filme para construir esse personagem, essa noção de que ele está sempre se matando e se reinventando como outra pessoa. E a gente organiza as entrevistas em torno desse tema também. A gente não vai ficar narrando fatos, o que a gente mais quer é entender como essas pessoas viram o que aconteceu com a vida dele, que não expliquem, mas ajudem a contar a história desse personagem dentro desse viés.

PAS: A minha segunda ressalva, que é ligada à primeira, e é uma pergunta que lhe faço, é por que vocês não enfrentam a questão da sexualidade de Torquato Neto.

EA: Pois é, o Torquato é o principal protagonista, a gente queria que ele fosse protagonista. E a gente queria que ele falasse, os temas que a gente traz são os temas que ele abordou na sua produção artística. E esse é um tema que surge depois, cercado de um monte de boato, um certo sensacionalismo. Ele não registrou isso em nenhum lugar, sabe? Não registrou em texto, a gente vai ficar falando por ele o que ele sequer falou? Isso caberia a ele, se ele quisesse ter dito, ou se ele quisesse ter registrado.

PAS: Mas também se ele pudesse, na época dele. Talvez fosse trancado ali.

EA: É, acho que fazia parte do contexto da época. O Jorge Salomão fala ali que era um momento de liberação sexual, a gente entende que o contexto daquela época envolvia isso. Mas a gente ficar falando por ele sobre esse assunto, eu achava que era, sei lá, uma coisa um pouco invasiva, sabe? E principalmente por conta disto, a gente resolveu que ele era o protagonista do filme. A gente não pode inventar um texto para ele falar sobre este assunto, ou ter um assunto sobre o qual todo mundo fala, menos ele. Ia ficar uma coisa meio estranho. Acho que faz parte do contexto da época, quem conhece o contexto sabe que eles viviam essa liberação sexual, é falado sobre isso no filme. Mas o que isso significa, e tal, a gente não entra lá na questão… Se ele não botou em texto não tem como a gente falar. Só estamos falando das coisas que ele deixou registradas.

PAS: Entendi a resposta, de alguma maneira você está dizendo que foi ele que escolheu o que seria e o que não seria? É mais ou menos uma reverência ao personagem talvez?

EA: Não, foi a gente que escolheu. É uma escolha nossa pelo fato de que a gente escolheu que o Torquato é protagonista do filme. Como não posso inventar uma cena, uma sequência, um texto, como ele ia aparecer nessa cena? Um protagonista que não fala, sobre o qual os outros falam? É uma escolha nossa. Ele não deixou registrado isso em texto, vou começar a fazer conjecturas sobre essa questão? Tem depoimentos de terceiros, começa a ficar muito sensacionalista. Ele nunca se declarou bissexual, homossexual, qualquer coisa do tipo. Por exemplo, ele marca muito fortemente a relação intensa que tinha com a Ana. Isso está no filme. Aí tem todo um sensacionalismo que vem da biografia, Caetano vai negar, não interessava para a gente chegar nesse sensacionalismo. Inclusive ele não marcou essa angústia em lugar nenhum, então a gente deixou fora, não cabia a gente ficar falando. É invadir um espaço que não é nosso, né?

PAS: Há alguma outra coisa que vocês tenham deixado de fora por esse motivo? Não sei se eu devia perguntar isso…

EA: Não sei. Na verdade tudo que ele não registrou a gente não consegue abordar no filme. Tem um pouco isso. Mas tem muitos outros aspectos da vida dele que também estão de fora porque simplesmente não cabe, uma vida não cabe em uma hora e meia.

PAS: Eu perguntei sem pensar, mas política seria uma dessas coisas? Também não é tão nítido necessariamente pelos textos qual era a posição política dele.

EA: Com relação à política, a atmosfera política está impressa nos textos dele, né? Tem aquele texto “agora não se fala mais, toda palavra agora é uma cilada”… Tem um comentário direto ali sobre o que está acontecendo na atmosfera do AI-5.

PAS: E é fortíssimo, né?

EA: É. Você entende tudo. Mas ele não tece comentários sobre o que está acontecendo no Palácio do Planalto. Isso nunca aconteceu nos textos dele. Tem coisas que aparecem no texto que a gente não coloca também, a discussão sobre direito autoral, questões que a gente achou que não valia a pena abordar. Até porque no âmbito da própria poesia tem uma enorme quantidade de textos muito potentes que também não cabem na duração que a gente tem.

PAS: Sua resposta me instiga, fico pensando. Por que ele se matou? Isso também não deve estar nos textos, então não deve ter sido objetivo de vocês investigar? Ou você acha que está lá de alguma maneira?

EA: Não, a gente não quis investigar isso. Ele deixa, né?, uma carta de suicídio, é o último texto do filme. É um ato muito extremo, na verdade a gente começa o filme falando sobre isso. A linguagem não pode dar sentido neste ato. Tem um mistério. E, como ele é protagonista do filme realmente, depois que ele faz isso acabou o filme. Morreu o protagonista e acabou. Por que eu vou ficar tecendo considerações sobre o que foi, por que aquele ato. A gente tem que entrar na sensibilidade dele, no imaginário dele, é ao que o filme se propõe. Entrar na potência da poesia dele, na potência com que ele viveu a própria vida também. Mas entrar nisso de ficar esmiuçando as razões para um suicídio, isso nos pareceu descabido. O que ele deixou para falar sobre o suicídio foi aquela carta, e pronto. Com essa carta a gente fica no fim do filme.

PAS: Aí então você fez dois filmes diferentes, e investigar por que o Palácio Monroe foi demolido é diferente de investigar por que o Torquato Neto morreu. Aí acaba o paralelo entre os dois?

EA: É, sem dúvida. Cada filme tem sua própria temática, que vai se apresentar em diferentes abordagens, tanto formais como no desenvolvimento da narrativa.

PAS: Desculpa, eu estou pirando aqui, mas eu queria saber por que Torquato Neto foi demolido… E acho inclusive que o filme ajuda nisso, sim.

EA: É, a gente entende, né?, mas a gente não explica. A gente sai do cinema entendendo um pouco. Era uma coisa muito clara ao longo do processo todo, inclusive o nome do filme, Todas as Horas do Fim, esse é o último verso do poema “Cogito”, ou “cógito”. É, digamos, um poema existencial cartesiano. Descartes fala “penso, logo existo”, o “cogito” do Torquato de várias formas ele vai descrevendo, e no final ele fala: “Eu sou como eu sou/ vidente/ e vivo tranquilamente/ todas as horas do fim”. Essa percepção de que a vida para ele eram todas as horas do fim, e que ele vive isso com tranquilidade, nos norteou para entender que a morte faz parte da vida dele inteira, como fonte vital. Em algum momento ela acaba virando, é um jogo muito arriscado, porque ele não vive isso só conceitualmente. A gente está falando conceitualmente, mas ele vivia isso de uma maneira muito sensível, e perigosa, desde algumas tentativas de suicídio. Isso era uma pulsão que estava ali. Uma hora esse jogo pendeu para um lado que era irreversível. Podia também não ter pendido. É por isso que tem um perigo, é daí, dessa pulsão de morte, que vem a intensidade com que ele viveu a vida dele. Por isso acaba o filme entendendo por que ele se mata – entendendo, mas não explicando, por que especificamente naquele dia, o que aconteceu naquele dia. Não, isso não tem explicação. Não dá para explicar o que estava acontecendo na vida dele naquele dia, isso é o real, um ato muito extremo que não dá para ser sintetizado em duas, três, cinco, dez ou 20 frases. É um mistério.

PAS: Mas você, com o mergulho que deu nele, na obra dele, arriscaria uma interpretação sua de por que Torquato é a parte da tropicália que morre primeiro, e tão cedo?

EA: Acho que não é relação com a tropicália, tem a ver com a maneira como ele viveu a vida, com a psique dele. Ele era um cara mais atormentado, tinha essa relação muito direta e umbilical com a morte.

PAS: É para lá da tropicália, não se restringe a ela?

EA: Não, não se restringe a ela. Ele morre cedo porque realmente ele teve essa relação de proximidade com a morte ao longo da vida dele inteira. Acabou entrando numa relação muito arriscada e perigosa. Se tivesse sido um pouquinho mais prudente, tivesse pegado um pouquinho mais leve… Mas a gente não pode julgar, a gente não sabe, né?

PAS: Não. Talvez fosse o que ele queria, e pronto. Senão poderia ser ele o “Gato Angorá” de Michel Temer de hoje em dia…

EA: Imagina.

PAS: Estou só elucubrando…

EA: É, loucura.

PAS: Para terminar, você tem um próximo projeto já? Pode falar qual seria?

EA: Estou fazendo um documentário sobre a tragédia da Samarco em Mariana (MG).

PAS: Sério? Que demais, olha só os temas que o cara escolhe. Tem um fio narrativo, vai.

EA: (Ri.) Pois é, esse é o próximo. Estamos no início do processo de montagem. Ainda demora, porque tem muito material filmado, vai ser um processo um pouquinho longo. Mas espero que ano que vem esteja pronto.

PAS: Mas então você já foi lá, já filmou e tudo?

EA: Já. Fiquei um ano filmando. A gente está focado principalmente na relação da população com a empresa, com o Ministério Público, na reparação dos direitos das pessoas atingidas.

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