O menestrel do Cariri, Abidoral Jamacaru, em ação Foto: Marcos Taveira

Há mais de 60 anos, na Rua Bárbara de Alencar, na cidade do Crato, no Ceará, havia um armarinho. A Casa Abidoral vendia miudezas em geral e também artefatos musicais e folhetos de cordel. O poeta e cantador Patativa do Assaré sempre deixava seus cordéis ali para vender. O sanfoneiro Luiz Gonzaga, quando vinha à terra natal, Exu, a 45 km do Crato, tinha parada obrigatória na Casa Abidoral, assim como os Irmãos Aniceto, da Banda Cabaçal, o lendário Cego Oliveira, e chegando até aos emboladores Caju e Castanha, já nos anos 1990, quando o comércio fechou.

“Eu era menino, nem tinha noção de quanto era importante Luiz Gonzaga, sua capacidade de retratar a alma do povo, o que o povo sente, aquilo com o que o povo se delicia”, conta hoje o filho do proprietário daquela Casa Abidoral – um dos sete filhos a levar adiante o sobrenome incomum do pai (e esse também o nome): Abidoral Jamacaru. “São dois nomes estranhos. Lá no começo eu me sentia diferente dos outros por causa desse nome, mas hoje eu sinto que ele me dá distinção”, conta Abidoral, agora com 75 anos e tendo se tornado (até o final disso aqui, haverá pouca controvérsia acerca disso) um dos artistas mais singulares da música popular do Brasil.

Abidoral é nome de origem árabe. Significa “servo do Senhor”. Já Jamacaru é mais complicado de explicar, é preciso remontar ao século 19. Naquele tempo, houve um movimento revolucionário chamado Confederação do Equador, que se iniciou no dia 2 de julho de 1824, em Olinda, Pernambuco, e tomou outras localidades do Brasil, como o Ceará. A repressão do imperador D. Pedro I ao movimento revoltoso foi dura e violenta. Para escapar à perseguição do império, que executou dezenas de pessoas, algumas famílias passaram a adotar sobrenomes diferentes dos que tinham até então, e foram assim que surgiram os Mororó, os Araripe e os Mandacaru, por exemplo. A família Jamacaru, entretanto, preferiu adotar a grafia dos povos indígenas para o célebre cacto nordestino que “fulora na serra”.

O pai de Abidoral era um seresteiro de mão cheia. A mãe se dedicava “ao hinário religioso”, como ele conta. “Éramos sete, cinco homens e duas mulheres. Entre os meus irmãos, havia uns que tocavam bem melhor que eu, mas foram cuidar da vida econômica deles, deixaram a música de lado. Eu deixei a escola na 5ª série e tive que aprender tudo na oralidade e com a generosidade dos amigos”, ele recorda. A infância entre os cantadores de feira e os artistas que frequentavam a loja do pai deu um empurrão extra para a arte musical, mas ele também jogou futebol em um time amador do Cariri cearense até perto dos 40 anos de idade.

Abidoral faz uma música que ele mesmo define como influenciada por tudo que ouviu no rádio na adolescência (“Isso é minha marca: nenhuma música é igual a outra”): bossa nova, João Gilberto, tropicalismo, rock. Ele usa a letra de uma de suas próprias composições, Menestrel Errante, para definir o papel das influências em sua vida. “Foram tantas as bocas que jogaram em mim palavras/Que um livro sem tamanho engoli/Foram tantas imagens/Que um filme mais sem fim dá pra se criar”, diz a letra.

“Por que não? Se existe todo esse manancial se oferecendo às pessoas? É uma homenagem a esse conhecimento repassado”, diz o artista. Abidoral, que nunca saiu do Crato para viver em outra parte, estava ali fazendo sua música singular em sua cidade, muito tranquilamente (parece um zen budista, fazendo longas caminhadas pelas trilhas e matas da Chapada do Araripe, identificando plantas e animais que povoam suas canções), quando o produtor, cineasta e dramaturgo Luiz Carlos Salatiel o viu cantar e tocar. “Canto de canto em canto. Sou um dos quantos estende a voz por tantos“, canta Abidoral na canção Lá de Dentro.

Já corriam os anos 1980, e Salatiel convidou Abidoral para gravar um disco. Não havia gravadora nem estúdio de porte no Crato, e eles então rumaram para São Paulo, para o Estúdio Vice Versa, que era da dupla Sá e Guarabyra. “Eu não tinha dinheiro para pagar ninguém, era tudo voluntário. Aquilo me emocionou bastante, porque todo mundo que toca no disco eu já admirava”, lembra Abidoral. Estão no hoje cultuadíssimo álbum Avalon (selo OCA, 1985) os créditos para Paulinho Chagas, Luís Brasil, Xico Carlos, Gereba e o Grupo Bendengó, Tiago Araripe, entre uma dezena de outros. O título do disco, ele conta, não saiu de sua cabeça. Foi uma sugestão do produtor, por considerar que havia um clima parecido ao do best-seller As Brumas de Avalon, de Marion Zimmer Bradley. “Eu nem sabia o que era. Confiei neles e aceitei”.

Avalon é um assombro musical. Canções como Pra Ninar o Cariri, Flor do Mamulengo (do compositor juazeirense Luiz Fidélis) e Lá de Dentro se tornaram rapidamente clássicos da música nordestina. Ainda assim, de Avalon para cá, Abidoral só gravou outros três discos: O Peixe (1998, no qual musicou o poema homônimo de Patativa do Assaré), Bárbara (2018) e Abidoral (2019).

Certa vez, logo após ter gravado o primeiro disco, Abidoral encontrou o compositor Francis Valle, que estava acompanhado do famoso Gonzaguinha. Ele o apresentou e Gonzaguinha convocou Abidoral para ir ao Rio procurá-lo, disse que tinha planos para ele. “Aí eu fui para o Rio. Pegava o cartão com o telefone dele, ficava olhando, mas não tinha coragem. Acabei voltando para casa”, conta. “O bestão fui eu de não ter ligado”.

De volta ao amado Cariri, prosseguiu sua carreira tranquila, sem solavancos, admirado por um espectro tão largo que vai do violonista e compositor baiano Roberto Mendes ao cineasta Rosemberg Cariry. Em 2019, após analisar 38 letras do artista, um trabalho de pós-graduação defendido na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) concluiu que o mundo contracultural em que a poesia de Abidoral se insere configura um movimento de informação e memória da região do Cariri. Em 2021, sua canção Lava a Alma, Brasil ganhou o Prêmio Grão de Música, em São Paulo.

No feriado do 7 de Setembro, o bardo esteve em Fortaleza participando do projeto Temporada Autoral, no Theatro José de Alencar, ao lado de Rebeca Câmara, Dalwton Moura e Edmar Gonçalves. “Um Manoel de Barros da Chapada do Araripe”, definiu o violonista e produtor Dalwton Moura, que o acompanhou em Fortaleza e o viu cantar para transeuntes no Passeio Público e na Praça dos Mártires, no centro da cidade, no último domingo. “É um desses artistas de difícil catalogação. O sotaque carregado, a voz rascante, a poética que trafega entre o regional e o urbano são sua singularidade e marca”, diz Tiago Araripe, artista cearense que vive em Lisboa e participou do disco de estreia de Abidoral.

Abidoral não altera seu ritmo de vida por conta dessa ou daquela demanda do mundo. Sente as mudanças e as analisa ao seu estilo mínimo. “Os computadores, os celulares, eu tenho verdadeira aflição. Não sei mexer com nada disso. Mas acho uma coisa legal, mostrou ao mundo que a Terra é pequena, contribuiu para que o homem fique mais humilde. Mas eu não tenho saco para nada disso. Um bestão como eu sofre muito”.

Abidoral então confidencia, muito naturalmente, que nunca se nega a participar das diversas apresentações para as quais é convidado, que isso faz com que se sinta prestigiado. Mas que vive um momento do tipo encruzilhada existencial. “Ultimamente tenho pensado em dar uma parada”, confessa, levemente entristecido, mas sem qualquer tom de mágoa na voz. “Quem me sustenta é um público muito fiel, que me acompanha desde o começo, e alguns amigos que estão também em situação igual à minha”, confidencia. “Não vou deixar de fazer música, mas não vou mais me sujeitar a cantar por determinados cachês que são ridículos. Isso cansa a gente. Não quero tomar o lugar de ninguém, mas não faço música para mim”, diz o Menestrel do Cariri.

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